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A transformação da sociedade

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 40-46)

Capítulo I O Mundo em Mudança

4. A transformação da sociedade

Uma das maiores transformações sociais que ocorreu entre os anos 60 e os anos 80 foi o declínio acentuado do campesinato. Esta diminuição da população agrícola deveu-se à mecanização da agricultura e à saída da população do campo para a cidade. Isto pode ser constatado na Europa, onde milhares de pessoas vindas dos campos desaguaram nas cidades e nas suas periferias, engrossando os sectores da indústria, das obras e dos trabalhos indiferenciados mas também na América Latina e Islão Ocidental. Apenas três regiões do globo continuaram a ser predominantemente agrícolas: a África Subsariana, o Sul e o Sudeste da Ásia Continental e a China. Mas mesmo estas regiões sofriam as pressões do desenvolvimento económico dos países vizinhos.

O mundo desta segunda metade do século XX era, sobretudo, urbano. Nos países do chamado Terceiro Mundo multiplicavam-se as cidades com milhões de habitantes, como Jacarta, Manila, Cairo, Cidade do México ou São Paulo. Nos países desenvolvidos, pelo contrário, as grandes cidades já tinham atingido o seu auge e a fuga dava-se para os subúrbios, criando-se novas cidades na periferia enquanto os centros das velhas cidades se tornavam cada vez mais vazios. A

56HOBSBAWM, Eric, 2011, A Era dos Extremos. História Breve do século XX (1914-1991), Editorial Presença, Lisboa,

necessidade de criar ligações rápidas entre a periferia, onde as pessoas habitavam, e os centros das cidades, onde trabalhavam, levou a uma nova revolução no transporte com a construção de sistemas de autocarros e metros cada vez mais rápidos e eficazes57.

Ao mesmo tempo, cresciam as profissões que exigiam um nível de educação secundária ou superior, o que multiplicou a procura de vagas nestes níveis de ensino. Nos anos 60, os estudantes tinham-se tornado uma força social e e política muito mais importante do que alguma vez tinham sido. As famílias faziam um esforço acrescido para mandar os seus filhos para a universidade pois esta era uma forma de ascensão social e de proporcionar melhores condições de vida aos seus descendentes. A sociedade terciarizava-se em detrimento dos sectores primário e secundário que iam perdendo o seu peso na economia.

Estas massas de jovens estudantes e professores viviam em permanente contacto entre si nas cidades universitárias, eram transnacionais, movimentando-se e comunicando ideias e experiências, aderiam mais facilmente às novas tecnologias e, como se viu em 1968, eram capazes de dar expressão internacional ao descontentamento político e social que sentiam. As manifestações estudantis de 1968 tiveram o seu epicentro em Paris mas ocorreram um pouco por todo o mundo. Porém, a população estudantil ainda não era suficientemente significativa para fazer qualquer tipo de revolução. Assim, o mais significativo da sua acção foi a capacidade de expandir as suas reivindicações e de provocar ondas de agitação noutros sectores sociais, como os operários, que eram mais inflamáveis. Os estudantes conseguiram estimular outros grupos a reivindicar mais do que o que estavam acostumados, daí a onda de greves operárias por maiores salários e melhores condições de trabalho.

Importante é tentar compreender porque razão estes grupos de estudantes, que viviam numa sociedade de abundância, e que tinham perspectivas futuras, se sentiram atraídos perlo radicalismo político. Primeiro, porque esta massa de estudantes desaguou em universidades que não estavam física, organizacional e intelectualmente preparadas para tal fluxo, o que os levou a perceber que era necessário mudar algo no ensino e que isso só se conseguiria com o recurso a demonstrações de descontentamento, a greves, à agitação. Depois, porque ir para a universidade deixou de ser visto como um privilégio especial, levando a que jovens adultos que não tinham essa oportunidade se sentissem ressentidos, não apenas com a universidade mas com qualquer tipo de autoridade, o que os fazia inclinar-se para a esquerda. Outra razão, é que para estes jovens, o mundo da II Guerra Mundial e o pós-guerra era uma experiência pela qual não tinham passado, daí que as suas insatisfações, as suas criticas (próprias do fosso de gerações) não fosse amortecida pela consciência

57FURTADO, Peter (Direc.), REIS, António (Direc. Da edição portuguesa), 1995, História do Século XX, Lisboa, Alfa,

de estar a viver tempos de impressionantes melhoramentos. Eles pensavam que o mundo podia ser diferente e melhor e estavam dispostos a lutar por isso58. Havia uma maior predisposição dos jovens, sobretudo dos intelectuais, para a luta, que lhes era dada pelo desligamento da produção e pela generalidade dos acesso à cultura, que os levava a pensar e criticar a sociedade em que viviam

Ao mesmo tempo, assiste-se na classe operária a mudanças dentro do processo de produção e na sua própria consciência de classe. As velhas indústrias do século XIX e inícios do século XX começaram a desaparecer e a dar lugar a novas indústrias, baseadas na alta tecnologia, espalhadas por uma região ou cidade e que trabalhavam em rede. A velha cidade industrial, dominada por uma grande fábrica estava a começar a desaparecer.

A combinação de décadas de pleno emprego e uma sociedade de consumo de massas transformou a vida dos operários dos países desenvolvidos. Os operários passaram a ter disponível rendimentos que lhes permitiam aceder a bens de consumo antes considerados privilégios dos ricos: televisão, câmaras fotográficas, telefone, produtos de beleza, carros, etc. O acesso a este consumo de massas fez com que a consciências que os operários tinham de ser uma classe unida e singular começasse a esbater-se. Até à Segunda Guerra Mundial sentiam-se unidos pela segregação social, pelo estilo de vida diferente, pela limitação das oportunidades de vida (muito dificilmente o filho de um operário iria para a universidade, nem se esperava que ele continuasse a escola depois de concluir a escolaridade obrigatória) e, pela colectividade (pensavam que os trabalhadores como eles só podiam alterar as coisas através da acção colectiva). Com o desenvolvimento económico que se seguiu à Segunda Guerra Mundial esta coesão de classe foi-se esbatendo, pois foram perdendo a noção que eram pobres à medida que iam conseguindo aceder, melhor ou pior, aos mesmos produtos que as outras classes sociais59.

Nesta altura começou-se também a sentir uma diferenciação dentro do operariado. Havia o topo da classe operária, constituída por trabalhadores especializados que se adaptaram mais facilmente às mudanças tecnológicas e à modernização da produção e que ganhavam muito mais que os restantes. Simultaneamente, no pós-guerra, os Estados europeus mais afectados pela guerra começaram a patrocinar a imigração de mão-de-obra que era escassa nos seus próprios países. Estes imigrantes entraram no mesmo mercado de trabalho e com os mesmos direitos que os cidadãos dos países para onde emigraram, o que gerou um clima de tensão e de divisão.

Podemos assim concluir que as mudanças na estrutura de produção, o aparecimento da sociedade de bem-estar e de consumo, a fronteira cada vez mais difusa entre trabalho manual e não

58FURTADO, Peter (Direc.), REIS, António (Direc. Da edição portuguesa), 1995, História do Século XX, Lisboa, Alfa,

vol. 7

59FURTADO, Peter (Direc.), REIS, António (Direc. Da edição portuguesa), 1995, História do Século XX, Lisboa, Alfa,

manual esbateram contornos que antes eram claros do proletariado.

Uma grande mudança que transformou a sociedade foi o papel cada vez mais importante das mulheres na sociedade. No pós-guerra as mulheres entraram de forma impressionante no mercado de trabalho e nas universidades, o que faz reflorescer os movimentos feministas, a partir sobretudo dos anos 60. É preciso referir que inicialmente estes movimentos feministas pertenciam essencialmente ao ambiente das mulheres da classe média, educadas, intelectualizadas mas aos poucos o feminismo começou a espalhar-se pela outras classes sociais. Há uma mudança no papel desempenhado pelas mulheres na sociedade. Embora a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho e nas universidades nem sempre tenha significado uma mudança nas relações entre os sexos, quer na esfera pública como privada, são inegáveis os sinais de mudança quanto às expectativas que as mulheres começaram a ter de si próprias. Um exemplo, o cada vez maior papel das mulheres na política. Começou a ser possível, e aceite, ter mulheres a chefiar um governo, coisa impensável até 1945. Porém, ainda hoje a percentagem de mulheres na política e nos governos é substancialmente inferior à dos homens.

Inicialmente, as questões que preocupavam os movimentos feministas eram a luta pela igualdade, pelo tratamento igual, pela igualdade de oportunidades que pressupunha a inexistência de diferenças significativas entre homens e mulheres. Mas para a maioria das mulheres do mundo era óbvio que a sua inferioridade social se devia a uma questão de género e as suas preocupações baseavam-se mais nas diferenças entre os géneros que na igualdade60.

Além disso, nos meios menos favorecidos, a entrada da mulher no mercado de trabalho era uma necessidade económica. O orçamento limitado e a progressiva escolarização dos filhos levavam as mulheres a sair de casa para trabalhar. Como é referido por Louise Tilly e Joan Scott “no passado os filhos trabalhavam para que as mães pudessem ficar em casa a cumprir as necessidades domésticas e reprodutivas. Agora, quando as famílias precisavam de rendimentos extra, as mães trabalhavam no lugar dos filhos”61.

Para as mulheres da classe média a entrada no mercado de trabalho tinha uma carga ideológica muito maior, pois a sua saída da esfera do lar representava, sobretudo, uma emancipação, a procura da sua liberdade e autonomia, o transformar de si própria numa pessoa por direito próprio. É evidente que, à medida que se foram tornando mais vulgares os lares da classe média com dois rendimentos, os orçamentos familiares começaram a ser calculados com base nesses dois salários e o salário da mulher passou a ser visto como essencial para equilibrar o orçamento doméstico.

60Para a maioria das mulheres, sobretudo as mais pobres, era mais premente a resolução de questões como a facilidade

de acesso a métodos contraceptivos que evitasses a gravidez indesejada, o acesso a licença de maternidade ou protecção contra o assédio sexual e a violação.

Contudo, como mostrou o aumento do número de casamentos em que os dois cônjuges tinham de se deslocar diariamente para longe de casa devido ao seu trabalho, generalizou-se a ideia que a mulher também tinha direito a ter uma carreira e a decidir onde exercê-la62.

Nos países desenvolvidos, o feminismo da classe média alastrou rapidamente a outras classes sociais, sobretudo porque suscitava questões que interessavam a todas as mulheres. Generalizou-se a sensação que chegara a hora da libertação feminina.

Simultaneamente, verificava-se uma mudança na estrutura familiar tradicional. Até meados do século XX, a maioria da humanidade partilhava um mesmo conceito de estrutura familiar: a família estava baseada num casamento formal; a superioridade do marido em relação à esposa, dos pais em relação aos filhos e das gerações mais velhas relativamente às mais novas. A partir desta altura, esta estrutura familiar começou a mudar com grande rapidez, sobretudo nos países ocidentais. Um dos sintomas desta mudança foi o aumento do número de divórcios, que em países como a França e a Bélgica triplicou entre 1970 e 1985. Mesmo em países católicos, como a Itália, verifica-se um aumento significativo dos divórcios após 1970, ano em que o divórcio se tornou permitido e legal, um direito referendado em 197463.

A partir dos anos 60, os comportamentos sexuais começaram a alterar-se significativamente: as mulheres ganharam mais liberdade sexual; as práticas homossexuais começam a ser mais toleradas; o acesso a métodos anticoncepcionais vulgarizou-se, o que libertou as mulheres de uma gravidez indesejada; o aborto tornou-se legal em vários países; e o casamento tornou-se muito mais instável.

Se o declínio da família tradicional e o aumento dos divórcios indicava uma crise na relação entre os sexos, o aparecimento de uma cultura juvenil especifica e extraordinariamente forte indicava uma crise entre gerações.

Os jovens foram os agentes dos principais acontecimentos políticos dos anos 60 e 70.

A cultura juvenil tornou-se dominante na economia de mercado, pois era uma massa com poder de compra, ávida de novidades e com facilidade de adaptação às mudanças tecnológicas.

Uma outra peculiaridade desta cultura juvenil é o seu cosmopolitismo. Os jovens partilhavam as mesmas referências culturais, ouviam a mesma música, viam os mesmos filmes, vestiam-se da mesma forma, tinha, o mesmo estilo de vida. Havia uma esmagadora hegemonia cultural dos EUA, difundida através da Grã-Bretanha que se tornou a intermediária cultural. A cultura juvenil difundia-se através dos discos, da rádio, dos livros, da televisão, do cinema, do turismo juvenil, das universidades, da moda.

62Cf: TILLY, Louise e SCOTT, Joan W., 1987, Woman, work and family, Londres, 2ª ediçãoCf: TILLY, Louise e

SCOTT, Joan W., 1987, Woman, work and family, Londres, 2ª edição

A cultura juvenil produziu uma revolução nos costumes e nos modos de estar. A partir de meados dos anos 50, os jovens das classes alta e média começaram a adoptar como modelos a música, as roupas e a forma de falar das classes baixas urbanas. O rock irrompeu da cultura negra dos EUA para se tornar um fenómeno de massas entre os jovens brancos; os jeans, utilizados pelos operários, tornaram-se a nova farda da juventude; o calão utilizado pelos operários e pelas classes mais baixas tornou-se recorrente na linguagem juvenil. Podemos dizer que se dá uma viragem para o popular e o estilo informal nos gostos dos jovens da classe média e alta.

Simultaneamente, assistiu-se a uma libertação sexual, com os jovens a encarar as práticas sexuais heterossexuais e homossexuais com muito maior liberdade e com menos preconceitos. Comportamentos até então considerados como inaceitáveis ou desviantes começaram a ganhar visibilidade.

As drogas espalharam-se e o seu uso era um gesto de rebelião contra a autoridade pois na maioria das sociedades o seu consumo era proibido.

A cultura juvenil provocou uma revolução cultural mas também aumentou o fosso entre gerações. Os pais percebiam que o mundo estava a mudar mas muitas vezes não conseguiam acompanhar essa mudança vertiginosa o que trouxe conflitos entre gerações.

De toda esta mudança resultava uma espécie de inquietação e revolta contra o mundo instalado e centro de diferenciação social, o mundo da abundância, do emprego certo, dos políticos e dos sindicatos. Existiam sementes de revolta que germinavam sobretudo na juventude que sentiam necessidade de recusar o sistema de hierarquias e os valores da geração anterior.

Estas transformações também se fizeram sentir em Portugal, ainda que um pouco mais tardiamente, desenvolvendo-se, essencialmente, durante os anos de 1968-1974, aproveitando a relativa abertura proporcionada pelo marcelismo. Esta demora ocorreu devido a um conjunto de factores: atraso na recuperação demográfica, o fraco desenvolvimento urbano, as limitações à afirmação da classe média, o carácter reduzido da população juvenil e os fortes entraves, formais e informais, colocados à afirmação da generalidade das práticas e e dos valores de ruptura que se afirmavam internacionalmente64. Além disso, a guerra colonial colocava aos jovens do sexo masculino como horizonte de futuros três anos de serviço militar e, na maioria dos casos, a partida para o cenário de guerra. As raparigas, por outro lado viam adiados os seus projectos de futuro.

No entanto, eram visíveis algumas mudanças, sobretudo nas principais cidades, Lisboa e Porto, onde se fazia sentir um certo cosmopolitismo, e em Coimbra, no seio do meio estudantil. Aliás, o meio académico era mais permeável às mudanças e impulsionador das fracturas

64ESTANQUE, Elísio, BEBIANO, Rui, 2007, Do Activismo à Indiferença. Movimentos Estudantis em Coimbra,

geracionais. O universo estudantil da época ia-se alargando devido à chegada de “grandes” contigentes de novos estudantes provenientes da classe média e da pequena-burguesia urbana e rural, e ao aumento do número de mulheres, bastante activas no meio académico, cultural e associativo. Estes novos estudantes tinham anseios e aspirações para o futuro que não se coadunavam com o imobilismo da universidade e da sociedade, em geral, provocando choques culturais. Neste contexto, recolhendo as influências dos movimentos de contestação juvenis que percorriam grande parte do mundo e a relativa abertura da “primavera marcelista”, a iniciativa estudantil teve novo impulso durante o ano de 1969, dando origem a um dos maiores momentos de contestação contra a ditadura e a guerra colonial65.

Assim, apesar de tardiamente em relação a outros países, também a sociedade portuguesa se ia transformando.

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 40-46)