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As acções armadas: a Sé e Beja

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 92-97)

Das eleições de 1958 à herança “fapista”

1. Um novo ciclo de violência (1958 – 1962)

1.3. As acções armadas: a Sé e Beja

Durante o período da campanha eleitoral de 1958, Delgado continuou a manter alguns contactos com elementos da hierarquia das Forças Armadas, descontentes com o regime, de forma a preparar um golpe militar, que esteve prestes a deflagrar mas que acabou por falhar. O objectivo deste golpe seria forçar Salazar à demissão. Esta intenção foi revelada ao general Craveiro Lopes, Presidente da República, em fim de mandato, por um comité de oficiais do Exército. Craveiro Lopes recusa-se a demitir Salazar, mas admitiu a hipótese de forçar a demissão do coronel Santos Costa, ministro da Defesa Nacional. É neste contexto, de instabilidade dentro do exército que aquele comité de oficiais constituiu uma Junta Militar, designada a partir de Julho de 1958 por um Movimento Militar Independente (MMI).

A Junta Militar encetou contactos com unidades militares e com grupos de civis. Humberto Delgado encabeçaria a revolta e 2 de Junho seria a data escolhida, a uma semana das eleições. Contudo, a recusa de solidariedade Craveiro Lopes em apoiar o golpe e a assinatura do acordo com Arlindo Vicente, candidato apoiado pelo Partido Comunista, fizeram abortar o movimento.

As eleições tiveram lugar a 8 de Junho, a fraude era evidente e a repressão agudizou-se. Nos meios militares, aqueles que apoiaram Delgado foram transferidos e dispersos. Todavia, a conspiração prosseguiu, com o MNI, a marcar sucessivamente novas datas: 9 de Agosto, 18 de Dezembro e, por fim, 12 de Março de 1959.

O movimento de 12 de Março, planeado como um golpe militar tinha, igualmente, uma considerável participação de civis, sendo Manuel Serra, oficial da marinha mercante, membro da Juventude Operária Católica, o responsável pelo contingente civil, comandando cerca de 300 homens armados, organizados em pequenos grupos, encarregados de prender figuras do regime e de tomar as estações de rádio e os meios de comunicação mais importantes. O principal grupo civil actuaria no exterior da cripta da Sé de Lisboa, onde estavam armazenadas as armas. As unidades militares revoltosas ficaram encarregadas de neutralizar alguns quartéis chave da capital.

O golpe devia ser desencadeado por volta da meia-noite. Porém, o capitão Carlos Vilhena e José Hipólito dos Santos, outro dos civis envolvidos, não obtiveram a adesão esperada do Trem- Auto. Não seria necessário muito mais tempo para Pastor Fernandes e Costa Santos se dirigirem à Sé com ordem para abortar o movimento. Ao posto de comando dos revoltosos chegara também a

informação que pelo fim da tarde do dia 11de Março, o ministério do Exército tinha sido prevenido pela PIDE sobre a possibilidade de eclosão de uma revolta. Tornaram-se conhecidos muitos pormenores do movimento: os nomes de Manuel Serra e Carlos Vilhena, a hora e locais de concentração, a matrícula dos carros dos revoltosos. Haviam sido dadas ordens para as unidades militares de Lisboa entrarem de prevenção, com a convocação dos seus comandantes e a activação do Dispositivo de Segurança nº 1. Os membros do Governo refugiaram-se no Quartel do Carmo e a GNR fora mandada patrulhar as ruas de Lisboa e Cascais. Temendo-se um derramamento de sangue, aborta-se o golpe militar. Na manhã de 12 de Março foram detidos o capitão Carlos Vilhena e os responsáveis pelos contingentes civis Manuel Serra, Jaime Conde, Fernando Oneto e Francisco Mateus. As prisões de militares e civis implicados na revolta continuam durante mais alguns dias160.

Embora ciente das implicações militares a PIDE pensou que esta seria uma revolta perpetrada por movimentos civis, mais ou menos inorgânicos, que tinham surgido durante a campanha eleitoral do ano anterior. Só mais tarde, e por circunstâncias fortuitas, é que a polícia conseguiu perceber o real alcance e importância da revolta.

O MMI revelava-se uma estrutura hierarquizada, de certa envergadura, com trabalho de reflexão anterior, objectivos definidos, uma rede de contactos em unidades militares espalhadas pelo país e com ligações a altas patentes militares. Fala-se da cumplicidade de oficiais superiores do regime, entre elas o ex-Presidente da República Craveiro Lopes e o Presidente do Supremo Tribunal Militar, o general Frederico Lopes da Silva161.

Com o fracasso do golpe da Sé assistiu-se ao exílio de numerosos membros da oposição, directa ou indirectamente envolvidos, nestes acontecimentos, entre os quais o próprio Humberto Delgado, ainda refugiado na Embaixada do Brasil, mas também de Henrique Galvão, Manuel Serra e Luís Calafate. Esta oposição no exterior, exilada sobretudo no Brasil, na Venezuela e em Marrocos, revelou-se bastante activa e determinada a conspirar.

Será o grupo da oposição ligado a Delgado e agora congregado no MNI que, conjuntamente com elementos da oposição espanhola, formará o Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), em Janeiro de 1960, cuja acção mais espectacular será o assalto ao paquete Santa Maria. O DRIL foi, segundo D.L. Raby, “a expressão orgânica de um movimento revolucionário luso- espanhol com ramificações internacionais de certa importância”, com apoio de Cuba, do México, da Venezuela e da Jugoslávia162. O grupo de espanhóis e portugueses que se juntaram no DRIL comungava de um profundo descontentamento com o imobilismo da luta da oposição e manifestava

160Cf: MARTINS, Susana, 2008, “O Golpe da Sé é desarticulado”, in PAÇO, António Simões do, (Coord.), 2011, Os

anosde Salazar, Lisboa, Planeta DiAgostini, vol. 16, p. 31 a 42

161Cf: MARTINS, Susana, 2008, “O Golpe da Sé é desarticulado”, in PAÇO, António Simões do, (Coord.), 2011, Os

anosde Salazar, Lisboa, Planeta DiAgostini, vol. 16, p. 42 a 43

disposição para iniciar a acção armada e directa.

Em Fevereiro de 1960, ocorreram, em Espanha, os primeiros atentados reivindicados pelo DRIL. É por esta altura que Henrique Galvão (delegado plenipotenciário de Humberto Delgado) começou a preparar a Operação Dulcineia. O plano consistia no desvio de um navio para chegar à ilha espanhola de Fernando Pó, no Golfo da Guiné, onde seria possível apoderar-se de um navio de guerra e de armamento, e seguir para Angola, onde se ligariam a um movimento insurreccional local e proclamariam um governo revolucionário.

A 20 de Janeiro de 1961, vinte operacionais conseguiram entrar armados no paquete Santa

Maria, disfarçando-se de passageiros ou tripulantes. No dia seguinte, em Curaçau, entraram os

restantes quatro elementos do comando operacional. O navio foi tomado apenas com um incidente, em que após uma troca de tiros morreu um oficial e foi ferido gravemente outro, o que obrigou o navio a fazer uma escala na ilha de Santa Luzia para facilitar a assistência humanitária para tratamento do ferido. Seguiu para águas internacionais com o objectivo de chegar a África, e o nome do paquete foi mudado para Santa Liberdade163.

Entretanto, o governo português iniciou uma campanha de condenação da operação, apelidando-a de acto de pirataria e invocando a NATO para pressionar a França, a Inglaterra e os EUA a agir em retaliação. A França recusou liminarmente o pedido mas a Inglaterra e os Estados Unidos chegaram a enviar vasos de guerra e aviação para interceptar o navio sequestrado. Contudo, a contestação da oposição trabalhista, na Inglaterra, obrigou o governo conservador a retirar, e o Presidente Kennedy recuou na ordem de abordagem ao paquete.

O assalto ao Santa Maria teve grande impacto na imprensa internacional e, à condenação inicial da acção, seguiu-se a leitura política do acontecimento, favorável aos sequestradores. Começaram as negociações entre o governo de Kennedy e os ocupantes revolucionários para permitir o desembarque dos passageiros. O navio continuou em águas internacionais, ao largo de Recife, à espera que o presidente brasileiro Kubitchek de Oliveira cessasse funções e tomasse posse Jânio Quadros, que era simpatizante das pretensões dos revolucionários. A 1 de Fevereiro, depois da sua posse, começaram as negociações. A 2 de Fevereiro, deu-se o desembarque dos passageiros e da tripulação e, no dia seguinte, os activistas chegaram a um acordo com as autoridades brasileiras para entregar o navio em troca de asilo político.

O assalto ao Santa Maria chamou a atenção mundial para os propósitos da oposição portuguesa, principalmente, a ligada a Delgado e a Galvão. Mostrou também o isolamento a que estava sujeito o regime salazarista na cena política internacional e colocou de forma insofismável a

163Cf: CASTRO, Pedro Jorge, 2010, O inimigo nº 1 de Salazar: Henrique Galvão, o líder do ataque ao Santa Maria e

questão da luta armada como uma via para derrubar a ditadura164.

Mas o fracasso da Operação Dulcineia agudizou também as divergências entre Delgado e Galvão. Estávamos perante duas perspectivas diferentes do rumo que deveria levar o combate contra a ditadura. Henrique Galvão fazia do assalto ao Santa Maria uma vitória, um grande momento do movimento revolucionário português que tinha aberto novas perspectivas na luta contra o regime que, segundo ele, deveria passar por mais acções de carácter espectacular que pusesse a luta contra o regime no centro das atenções mundiais. Para Delgado, o assalto ao Santa

Maria tinha sido um fracasso militar e continuava a acreditar que o regime só poderia cair com um

golpe militar. O general sempre teve como estratégia a realização de golpes militares, o envolvimento das forças armadas na queda do regime e não estava disposto a abdicar desta sua visão, rejeitando a hipótese de enveredar por acções revolucionárias perpetradas apenas por elementos civis. Delgado repudiava que a Operação Dulcineia tivesse criado novas hipóteses revolucionárias e tencionava relançar o seu plano de realizar uma revolta militar em Portugal, apesar de três revoltas por si planeadas terem falhado. Por seu lado, Galvão continuava a defender que a Operação Dulcineia tinha aberto novas perspectivas revolucionárias à oposição portuguesa, que estas deviam ser utilizadas para fazer novas acções contra o regime que não fossem golpes militares, que até aí sempre tinham sido gorados165. Estava consumada a divisão entre Galvão e Delgado, em torno da questão da via para o derrube do regime.

O fracasso da Operação Dulcineia e as divergências com Delgado levaram a oposição ligada a Henrique Galvão a pensar em outras acções para provocar o derrube da ditadura. Galvão planeia com Hermínio da Palma Inácio a Operação Vagô, o desvio um avião da TAP que fazia a ligação Casablanca-Lisboa, naquela que é considerada a primeira acção de “pirataria aérea” internacional, que se destinava a lançar panfletos políticos sobre Lisboa e várias cidades do sul do país.

Ainda que a ideia de preparação do assalto a um quartel no interior do país pertencesse ao grupo de Delgado, não se descartava completamente a possibilidade de articulação entre ambos os planos. Apesar de os dois chefes estarem em completo desacordo, os membros dos grupos de cada um deles continuavam a ter ligações e consideravam que os planos do desvio do avião e do assalto a um quartel militar deviam estar articulados. Assim, sem que Delgado ou Galvão tenham conhecimento, Manuel Serra encontrou-se com elementos ligados a Galvão, como Camilo Mortágua e Palma Inácio, entre outros, e começaram a delinear a articulação dos dois planos166.

164MOTA, Francisco Teixeira, 2011, Henrique Galvão: Um Heroi Português, Alfragide, Oficina do Livro, p.

165ROSA, Frederico Delgado, 2008, Humberto Delgado: Biografia do General Sem Medo, Lisboa, Esfera dos Livros, p.

887-889

166ROSA, Frederico Delgado, 2008, Humberto Delgado: Biografia do General Sem Medo, Lisboa, Esfera dos Livros, p.

A ideia era que o desvio do avião se fizesse no mesmo dia do assalto e que os panfletos lançados deveriam apelar a um amplo movimento de massas que apoiasse os revoltosos. Porém, a vinda de Manuel Serra para Portugal, vindo de Marrocos, as dificuldades de comunicação que se estabeleceram entre os dois grupos e a agudização das divergências entre Delgado e Galvão, ambos em Marrocos, levaram a que o desvio do avião se realizasse a 13 de Novembro, véspera das eleições, sem que houvesse a indicação de que se iria realizar o pronunciamento militar.

O desvio do avião teve bastante repercussão a nível interno e externo e demonstrava, mais uma vez, que a oposição ao regime estava activa e disposta a enveredar por acções mais radicais e violentas para derrubar o regime.

Manuel Serra estava no interior do país desde Junho de 1961, com uma credencial de Humberto Delgado que fazia dele seu representante para preparar a operação, encetar os primeiros contactos e aferir as condições para levar a cabo a revolta. Era a preparação da Operação Ikaro. Em seis meses reatou ligações com os sectores conspirativos da oposição, aglutinou militantes comunistas e ex-comunistas ligados a Edmundo Pedro e Fernando Piteira Santos, socialistas, católicos e militares.

Apesar de o PCP ter-se sempre formalmente demarcado desta iniciativa, como aliás também da Revolta da Sé, muitos militantes, à revelia da sua direcção, acabariam por participar. Sem abdicar desta posição, o Partido Comunista foi, no entanto, acompanhando de perto os respectivos processos preparatórios e as sanções em relação aos seus militantes que participaram em Beja foram tomadas imediatamente após a tentativa militar167.

Depois do assalto ao quartel, que contaria com cumplicidades militares no seu interior, sairiam colunas mistas armadas com vista à neutralização das forças policiais e da propagação do movimento aos regimentos vizinhos, seguindo-se a ocupação da maior área possível do território nacional, de forma a conseguirem derrubar o regime. A região inicialmente escolhida era o Algarve, que do ponto de vista estratégico permitia libertar uma região do país e oferecia a vantagem de ser a região mais indicada para o desembarque de Humberto Delgado vindo de Marrocos. Mas, em Agosto, começaram a correr rumores que o governo sabia da existência deste plano o que originou uma quebra de predisposição nos sectores envolvidos, levando à alteração dos planos, tendo sido escolhida a região do Alentejo para pólo de irradiação do movimento. A partir daí o que se pretendia era ocupar o Quartel de Beja e tomar a cidade; enviar colunas civis para sul, cortando os acessos ao Algarve; dinamitar os pontos de acesso ao norte da cidade; permitir a entrada de Delgado, vindo de Marrocos; e galvanizar a participação popular e os apoios militares168.

167Sobre o assalto ao Quartel de Beja ver: PEDRO, Edmundo, 2011, Memórias. Um combate pela liberdade, Lisboa,

Âncora, Vol. II, p. 311-363; e SANTOS, José Hipólito dos, 2012, A Revolta de Beja, Lisboa, Âncora Editora

Delgado, impaciente, não esperou o desencadear o golpe para entrar no país. A 30 de Dezembro de 1961, um dia antes de se desencadear a revolta, entrou clandestinamente em Portugal e contactou Carlos Vilhena, que decidiu esconder da rede clandestina a presença do general no país. Assim, é com desconhecimento absoluto do paradeiro de Delgado que Manuel Serra decidiu avançar com a acção.

As portas do quartel foram abertas pelos militares alinhados com a conspiração, de modo a que grupos de militares e civis tomem as instalações e neutralizem o comandante do quartel. O capitão Varela Gomes liderava o grupo militar. Quando se preparava para entrar no gabinete onde estava o major Calapez, comandante do quartel, este disparou e Varela Gomes foi gravemente ferido. Um alerta do governo tinha deixado as unidades de prevenção. Gerou-se a desorientação e os planos iniciais foram-se desmoronando. Humberto Delgado, ao chegar a Beja, compreendeu o fracasso do golpe e retirou-se para o Norte. Parte dos protagonistas civis e militares do golpe acabariam detidos em vários pontos do país, abortando por completo a acção. O golpe falhou, sobretudo, devido à falta de coordenação e ao facto de os revoltosos terem subestimado a resistência das forças fiéis ao regime169.

O falhanço do golpe de Beja significou o desmoronamento do projecto de golpe militar com ramificações dentro do regime que Delgado tinha concebido desde as eleições de 1958. O início da guerra colonial, as mudanças nas chefias militares e a prisão dos oficiais implicados na revolta de Beja fez com que restasse a Delgado apenas o apoio dos oficiais de patente intermédia, que eram aqueles que tinham participado na sua campanha para as eleições presidenciais de 1958.

A revolta de Beja, derrotada, seria a última das tentativas revolucionárias de Delgado e o último dos pronunciamentos militares até ao 25 de Abril.

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 92-97)