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Das eleições de 1958 à herança “fapista”

2. O movimento “marxista-leninista” e o “fapismo”

2.2. A FAP/CMLP

Depois da reunião do Comité Central do PCP, de 1963, Martins Rodrigues foi destituído da Comissão Executiva do CC, mas mantido no Comité Central, passando a ser encarado como um dirigente que defendia posições erradas mas a quem era dada a hipótese de reflectir e reconsiderar.

210MADEIRA, João, O efeito Martins Rodrigues e o desvio esquerdista de Maio de 1964 no PCP, comunicação

apresentada no “Colóquio Os Comunistas em Portugal 1921-2008”, PO/BMRR, Novembro de 2008

211Nesta reunião do Comité Central, a primeira que se realizava fora de Portugal, estiveram presentes Álvaro Cunhal,

Francisco Martins Rodrigues, Francisco Miguel, Sérgio Vilarigues, Joaquim Gomes, Pedro Ramos de Almeida e Veiga de Oliveira.

212“A Situação no Movimento Comunista Internacional”, Avante!, nº 334, Outubro de 1963, p. 1

Martins Rodrigues mostrou vontade de regressar ao país e assumir funções partidárias no interior, mesmo que admitisse não ter condições para integrar organismos executivos. Porém, o Comité Central mostrou-se intransigente na oposição ao seu regresso e foi mandado para Paris, onde ficou incumbido de controlar a organização partidária nesta cidade214.

Aqui, iniciou uma série de contactos com trabalhadores imigrados, jovens estudantes e desertores da guerra colonial, iniciando uma série de contactos com militantes jovens, mais radicais, apoiando-se designadamente em Humberto Belo215, oficial miliciano que havia desertado. Iniciou também contactos com a Argélia, onde se sediava a FPLN e onde se haviam instalado militantes em ruptura com o partido, como Rui d'Espiney, um quadro estudantil que tivera um papel activo na crise académica e nas manifestações de 1962 como fundador e dirigente da Comissão Pró- Associação dos Liceus e João Pulido Valente, médico que havia saído de Portugal em virtude de pender sobre ele um mandado de captura referentes a um processo de crime comum. Martins Rodrigues decidiu então abandonar o partido e saiu das instalações que lhe haviam sido atribuídas, levando consigo a máquina de escrever, colecções de imprensa e alguns relatórios, razão pela qual viria a ser acusado de roubo216.

Estava assim consumada a primeira e mais importante dissidência política e ideológica no Partido Comunista Português, de forma individual, voluntarista, sem base de apoio orgânico, sem quaisquer ligações no interior do país, alinhando-se com o lado chinês no dissídio do movimento comunista internacional, querendo polarizar a pulsão radical que borbulhava nos sectores operários e estudantis do interior mas com os quais não tinha contactos. Historicamente, Francisco Martins Rodrigues colocava-se na raiz da mais importância dissidência política, organizativa e ideológica ocorrida no seio do Partido Comunista Português durante o período de clandestinidade.

Em Janeiro de 1964, Francisco Martins Rodrigues foi expulso do PCP através de uma circular do Comité Central que o acusava de abandono das instalações partidárias, roubo de material e documentação confidencial do partido e de acções divisionistas. Expulso do PCP, Martins Rodrigues, sem dispor de uma base de apoio que o tivesse acompanhado, necessita de divulgar as suas posições políticas de modo a agrupar o mais rapidamente possível o que podia ser agrupado.

O documento Luta Pacífica e Luta Armada no Nosso Movimento, de 1963, constitui o documento de sistematização do corpo de críticas que vinha fazendo ao PCP, particularmente entre 1962 e a reunião do Comité Central de Agosto do ano seguinte. Como se tratasse de uma longa

214MADEIRA, João, O efeito Martins Rodrigues e o desvio esquerdista de Maio de 1964 no PCP, comunicação

apresentada no “Colóquio Os Comunistas em Portugal 1921-2008”, PO/BMRR, Novembro de 2008

215MADEIRA, João, O efeito Martins Rodrigues e o desvio esquerdista de Maio de 1964 no PCP, comunicação

apresentada no “Colóquio Os Comunistas em Portugal 1921-2008”, PO/BMRR, Novembro de 2008

216MADEIRA, João, O efeito Martins Rodrigues e o desvio esquerdista de Maio de 1964 no PCP, comunicação

carta dirigida ao Comité Central do PCP, subscrita ainda com o seu antigo pseudónimo de

“Campos”, este documento foca-se na questão da luta armada e demarca-se abertamente da linha

seguida pela direcção do partido.

Martins Rodrigues considerava que a luta armada era o caminho de luta mais eficaz para derrubar o regime e passar ao socialismo, entendendo que estavam criadas em Portugal condições para o efeito: (I) o país vivia, desde 1961, uma guerra colonial sem fim á vista e que estava a precipitar “rapidamente a crise política, económica e diplomática da ditadura”; (II) tinha aumentado as manifestações populares de desagrado perante o aumento das más condições de vida; (III) já tinha sido ensaiada a primeira acção armada com o assalto ao Quartel de Beja, em 1962; (IV) a “pequena-burguesia” e os estudantes deixaram de acreditar numa saída constitucional e “orientam- se no sentido da insurreição armada” A grande crítica que dirigia ao PCP é que, tendo o partido consciência que o regime atravessava uma grave crise, não retirava daí as conclusões teóricas e práticas necessárias e continuava a afirmar que, apesar da conjuntura favorável, não estavam criadas as “necessárias condições que permitam levar o movimento a etapas superiores”217. Para a Direcção do Partido Comunista, só a luta de massas pode levar ao derrube do regime, enquanto Martins Rodrigues entende que a guerra colonial agudizou a luta de classes em Portugal e radicalizou a luta do proletariado que reclama passar a formas de luta mais radicais e violentas.

Para o ex-dirigente do PCP não se trata de subalternizar a importância da luta de massas, que continua a ser importante, sendo indispensável que se multiplicassem grandes acções de massas, greves, manifestações, comícios e choques com o aparelho repressivo fascista. No entanto, estas deviam ser impulsionadas e apoiadas pela acção armada e o partido devia saber combinar as acções violentas com as acções pacíficas.

Em Luta Pacífica e Luta Armada estabelecem-se as principais orientações e procedimentos para desencadear acções revolucionárias de cunho violento, considerando premente “dominar a táctica de luta militar começando pelas pequenas acções, forjar os quadros, a disciplina, a aptidão para o combate, aprender a bater-se”218. Do mesmo que se tornava necessário estudar cuidadosamente as experiências revolucionárias de outros povos, aprender com os seus sucessos e os seus erros, elaborar uma estratégia e uma táctica, criar quadros, obter armas e outros materiais.

São pequenos os caudais que permitem dar corpo à Frente de Acção Popular (FAP). Quando Martins Rodrigues, por exemplo, estabeleceu contacto com Rui d’Espiney, este era já ao tempo um militante em ruptura com o PCP, mas que não tivera qualquer contacto anterior com o ex-dirigente

217RODRIGUES, Francisco Martins, 1974, Luta Pacífica e Luta Armada no nosso movimento, Lisboa, Edições Unidade Popular, p.

5-9

218RODRIGUES, Francisco Martins, 1974, Luta Pacífica e Luta Armada no nosso movimento, Lisboa, Edições Unidade Popular, p.

do PCP. Encontrava-se na Argélia por se ter visto na contingência de ter de sair do país, pressionado pela polícia que o procurava prender. No rescaldo das movimentações operárias e estudantis de 1962, também Rui d’Espiney, reclamando maior radicalização, havia com outros jovens, ainda militantes do PCP, como o seu irmão José Luís d'Espiney e o seu primo, Manuel Claro, começado a a reunir informalmente para discutir o problema da passagem a novas formas de luta mais violentas, tendo decidido formar um grupo, a que deram o nome de Movimento de Libertação Nacional (MLN)219, sem contudo abandonarem o Partido.

Em princípios de 1963, Rui D'Espiney e Manuel Claro saíram clandestinamente do país e José Luís D'Espiney ficou encarregado de, no interior, estabelecer contactos e aliciar novos elementos para o MLN. No entanto, pouca coisa foi feita. Foram aliciados alguns elementos mas o MLN na prática estava parado. Em meados deste ano Rui D'Espiney era contactado, por carta, pelo irmão que lhe pedia para ir a Paris para assentarem as orientações que deveriam dar o movimento220.

No entanto, quando em Fevereiro de 1964, José Luís d’Espiney partiu para Paris, já o processo de constituição da FAP estava em curso e tem por isso um encontro com Francisco Martins Rodrigues, que lhe deu orientações para regressar a Portugal e começar a formar no país pequenos grupos de 3 a 4 elementos que estivessem dispostos a enveredar pela acção armada e a encabeçar acções de agitação popular, grupos que se passariam a designar Grupos de Acção Popular (GAP).

Rui d'Espiney e João Pulido Valente haviam, por motivos e por vias diferentes, saído de Portugal, no Outono de 1963, e acabaram por se encontrar ambos em Argel, onde fizeram parte da Junta de Acção Patriótica dos Portugueses na Argélia (JAPPA), que defendia abertamente a necessidade da luta armada para derrubar a ditadura. É na capital argelina que tomaram conhecimento do documento Luta Pacífica e Luta Armada que lhes foi enviado de Paris por Manuel Claro e com o qual concordaram, aderindo a este processo de diferenciação orgânica à esquerda do PCP. Este reagrupamento prosseguiu sempre na base do aliciamento de jovens que haviam desertado da guerra colonial ou de ex-militantes do PCP.

Esta radicalização à esquerda do PCP fez-se por influência das posições chinesas e do dissídio sino-soviético, mas também não se pode negligenciar a influência da Revolução Cubana. Por todo o mundo eram divulgadas as imagens de um grupo de jovens guerrilheiros, destemidos e aventureiros, que haviam conseguido derrubar uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos numa pequena ilha do Caribe. Difunde-se, assim, a ideia que era possível derrubar um regime através da luta armada, desde que se conseguisse formar um pequeno grupo de guerrilheiros que estivessem

219IANTT/ PIDE-DGS, Pr. 1561/64 SC-PC, Vol. 1, U.I: 5677-5678 – Auto de declarações de Rui d'Espiney, fl. 117-120; Entrevista

Rui d'Espiney, Setúbal, 10 de Fevereiro de 2012

dispostos a lutar, pois de seguida, eles iriam receber o apoio da população que compreenderia a justeza da sua luta, tal como aconteceu em Cuba. Estes ecos da Revolução Cubana também chegaram a Portugal e são vários aqueles que consideravam que se devia utilizar o mesmo método no nosso país, pois só com acções armadas seria possível derrubar o regime: se fora possível em Cuba também seria possível em Portugal. Rui d'Espiney corrobora justamente que existiam influências castristas na FAP. Grande parte dos militantes da FAP eram jovens que tinham recebido os ecos da Revolução Cubana e que se sentiam entusiasmados com ela. Na crise académica de 62 e nas manifestações do 1º e 8 de Maio desse ano, aqueles que pediam armas na rua, sentiam o pulsar revolucionário de Mao mas também de Fidel Casto e de Che Guevara221. A Revolução cubana foi uma revolução feita através de acções de guerrilha e não através do movimento das massas. Os militantes da FAP sentiam que em Portugal também se poderia passar o mesmo, também seria possível derrubar o regime através de acções violentas que fossem apoiadas pelas massas. Nesta ideia percebe-se a influência da teoria do foquismo222, que teve origem na Revolução Cubana.

A FAP tinha como principal objectivo preparar a passagem para a luta armada, preparando os seus militantes para a acção directa. Inicialmente, mantinham alguma expectativa na evolução das posições do PCP223, pelo que decidiram formar primeiro uma “frente antifascista” e só depois a organização “marxista-leninista”, a vanguarda, o que invertia no plano teórico a precedência do processo224.

Do núcleo dirigente da FAP faziam parte Francisco Martins Rodrigues, Rui d'Espiney, João Pulido Valente, Humberto Belo, Custódio Lourenço e Manuel Claro. Havia núcleos da FAP na França, na Bélgica, na Suíça e na Argélia, circunscrevendo-se a sua organização no interior praticamente só a núcleos estudantis e a raríssimos e débeis grupos de operários, principalmente na margem Sul225.

Ainda que o Comité Marxista Leninista Português ( CMLP) se tivesse sido formado em Abril-Maio de 64, na prática as duas organizações não se distinguiam, coincidindo organicamente. Para além da edição do jornal Revolução Popular e do Acção Popular, pela FAP, a Direcção do CMLP e o Secretariado da FAP confundem-se na sua actividade.

221Entrevista Rui d'Espiney, Setúbal, 10 de Fevereiro de 2012

222O foquismo é uma teoria revolucionária inspirada por Che Guevara e desenvolvida por Régis Debray. Foi adoptada

nos anos 60 pelos grupos armados de esquerda e consistia, basicamente, em criar focos (daí o nome) de revolução no mundo, como forma de enfraquecer o imperialismo. A premissa era de que a criação de múltiplos focos de guerrilha rural dificultava a acção repressora por parte das forças armadas governamentais. Um pequeno foco que iniciasse as acções de guerrilha poderia fazer a revolução expandir-se rapidamente, provocando o levantamento das massas e a derrocada do regime.

223“Editorial: As nossas tarefas actuais”, Revolução Popular, nº 2, s.d

224CARDINA, Miguel, 2011, Margem de Certa Maneira: O Maoismo em Portugal (1964-1974), Lisboa, Tinta-da-

China, p. 42

As preocupações com o desencadeamento da luta violenta e o alinhamento com o partido Comunista Chinês e o Partido do Trabalho da Albânia, cujos países Francisco Martins Rodrigues iria visitar no verão de 1964, constituem eixos visíveis de doutrinação por parte da FAP/CMLP.

Em finais deste ano iniciaram-se os preparativos para instalar uma direcção do CMLP no interior do país. Para isso, foram enviados para Portugal Manuel Claro e João Pulido Valente, que começaram por contactar pessoas conhecidas, muitas das quais ainda com ligações ao PCP. É desta forma que o Partido Comunista sabe da estadia destes dois dirigentes do CMLP em Portugal e divulga a sua presença nas páginas do Avante!, num artigo intitulado “Cuidado com eles”. Neste artigo é referido que Manuel Claro e João Pulido Valente foram expulsos do PCP por “actividades cisionistas e aventureiristas” e que “têm procurado militantes do Partido que conhecem, junto dos quais espalham calunias contra a linha do Partido e contra a sua Direcção”226. Para o CMLP a informação dada no Avante! colocava estes militantes “em risco de serem presos e possivelmente assassinados”227.

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 111-116)