• Nenhum resultado encontrado

Francisco Martins Rodrigues, o derrube violento do regime e o dissídio sino soviético

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 107-111)

Das eleições de 1958 à herança “fapista”

2. O movimento “marxista-leninista” e o “fapismo”

2.1. Francisco Martins Rodrigues, o derrube violento do regime e o dissídio sino soviético

O Partido Comunista Português mantinha relações com o Partido Comunista da China. No entanto, apenas em 1958 uma delegação do PCP se tinha deslocado a este país. Alexandre Castanheira, membro do Comité Central do partido, que integrou a comitiva que se deslocou à China, refere que o périplo incluía visitas a obras públicas, a fábricas e à Ópera de Pequim. O interlocutor chinês terá sido Kang Sheng que deu indicações sobre como conduzir a luta nas colónias, referindo que a luta armada era justificada nesse caso. Em relação à situação política em Portugal, Alexandre Castanheira não tem dúvidas que os chineses duvidavam da eficácia do PCP em derrubar a ditadura e fazer uma revolução socialista:“não acreditavam sequer na eficácia da luta dos comunistas portugueses e incitam-nos a levar para Portugal a orientação de atingir rapidamente a libertação do país a partir da luta armada”198

No início da década de 60, pouco ou nada se sabia em Portugal sobre o diferendo que opunha a China à URSS, como era bastante grande o desconhecimento relativamente à revolução chinesa. Ocasionalmente, o Avante! trazia artigos de propaganda sobre as realizações do comunismo chinês, mas nada que se comparasse com os artigos sobre a União Soviética ou o PCUS. Circulavam textos de Mao e de outros dirigentes chineses, traduzidos do francês por funcionários do partido ou em edições brasileiras, embora raros199.

Segundo Pacheco Pereira, o PCP via o comunismo chinês como “uma variante do soviético, mais atrasado e mais «camponês», exótico e longínquo”. As especificidades teóricas da obra de

198CASTANHEIRA, Alexandre, 2003, Outrar-se ou a Longa Invenção de Mim, Porto, Companhia das Letras, pág. 101,

102

Mao Tsé-Tung, da história do PCC e da revolução chinesa não eram conhecidas.200.

O PCP foi apanhado pelo conflito sino-soviético num momento crítico da sua história, quando, após a fuga de Peniche de Janeiro de 1960, Cunhal empreendia a crítica à direcção de Júlio Fogaça e à “via da solução pacífica para o problema político português”. Em pleno consulado Khrutchoviano, as posições de Cunhal colocavam-no mais do lado das teses chinesas do que das soviéticas e, por isso, a necessidade de um certo equilíbrio entre a crítica ao “desvio de direita” em Portugal e a defesa da linha da “coexistência pacífica” defendida para o movimento comunista mundial pela União Soviética201.

Apesar da escassa informação que chegava a Portugal, através dos materiais soviéticos e franceses era possível, pelo menos para uma pequena parte dos dirigentes comunistas, ter conhecimento e acompanhar a evolução do conflito sino-soviético, quanto mais não fosse através da audição da Rádio Moscovo.

Em Setembro de 1960, o PCP publica no Militante o primeiro documento oficial em que é referido, ainda que indirectamente, o conflito sino-soviético, intitulado Três Problemas de

Actualidade, e que terá sido escrito por Álvaro Cunhal, afirmando designadamente que a linha da

“coexistência pacífica” permite “o prosseguimento vitorioso da construção do comunismo e do socialismo, para a libertação dos povos das colónias e dependentes, para o progresso do movimento operário internacional e para a luta geral contra o imperialismo”. Ao mesmo tempo, critica explicitamente os que defendem a via do conflito internacional, afirmando que este “levaria amplas massas populares a desinteressarem-se da luta contra a corrida aos armamentos e a aceitarem como fatalidade a política belicista quando a luta pela Paz é uma tarefa primordial na hora presente”. O texto acaba por se revelar um exercício que oscilava entre a possibilidade da transição ser pacífica e o reconhecimento que não se deve afastar a hipótese de recorrer a meios violentos, uma vez que, no caso português, não se perspectivava que o regime pudesse ser derrubado por via pacífica num curto espaço de tempo:

“Acreditar que a via pacífica para o derrubamento do fascismo é não só possível como a mais provável, espalhar ideias acerca das vias legais e constitucionais para derrubar um regime que nem sequer respeita a sua constituição e as suas leis, é semear perigosas ilusões, diminuir a vontade combativa das massas populares à passividade e ao oportunismo. A crença na desagregação inevitável do fascismo a curto prazo, numa «desagregação irreversível do fascismo» favorece tais ilusões e constitui um factor prejudicial para o desenvolvimento do movimento democrático e popular”202.

200PEREIRA, Pacheco, 2008, O um dividiu-se em dois, Lisboa, Altheia Editores, pág. 125

201PEREIRA, Pacheco, 2008, O um dividiu-se em dois, Lisboa, Altheia Editores

202A COMISSÃO POLÍTICA DO COMITÉ CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÊS, “Três Problemas

A posição não era fácil. Tratava-se de compatibilizar a correcção do “desvio de direita” com o alinhamento com os soviéticos, aspecto absolutamente essencial para o PCP se manter na sua esfera de influência. Por isso, o Partido Comunista participa na Conferência de Moscovo em Novembro/Dezembro de 1960, e em Março de 1961 divulga um documento sobre os resultados dessa Conferência, em que se reafirma a fidelidade ao PCUS sem que nenhuma referência seja feita ao PC da China. Sobre a via para o derrube do regime, o documento admite a possibilidade da passagem ao socialismo se poder verificar por via pacífica e parlamentar, mas salienta-se que em Portugal ainda não estão definidas as condições dessa passagem, embora se adiantasse que essa possibilidade era praticamente impossível e que “as massas populares terão de recorrer à violência a fim de destruir o aparelho estatal salazarista que se apoia num forte aparelho repressivo e armado”203.

No ano seguinte, em 1961, Álvaro Cunhal saia do país e instalava-se em Moscovo e as suas posições passaram a reflectir uma maior aproximação à União Soviética. Em Outubro desse ano, Cunhal participou no XXII Congresso do PCUS e no seu discurso fez um rasgado elogio ao PCUS e à URSS, reafirmando o apoio do PCP à política externa da União Soviética. De acordo com Pacheco Pereira, “a razão pela qual Cunhal faz tão rasgado elogio às posições soviéticas não pode ser dissociada das dúvidas existentes no movimento comunista mundial pró-soviético da sua ortodoxia, e do «Krutchevismo» do PCP”204.

Estas dúvidas eram reais e o facto de Álvaro Cunhal ter visto recusada a publicação de textos seus em revistas do movimento comunista internacional parecem confirmá-las. Anos mais tarde, Álvaro Cunhal comentará a este respeito:

“Em relação à luta revolucionária, a acção revolucionária, a perspectiva revolucionária de uma insurreição armada contra o fascismo, não só houve intenso debate interno no nosso país como houve debate e incompreensão internacional. Quero dizer-vos que escrevi mais que um artigo para jornais de outros partidos comunistas e como falava em levantamento popular armado, a censura interna dos jornais, incluindo o Pravda soviético, cortava esta expressão. Estávamos na época em que se apontava a solução pacífica para tudo e naturalmente que a nossa linha revolucionária não era compreendida”205

No entanto, em Janeiro de 1963, o PCP aprovava a primeira declaração crítica em relação ao PC da China e durante esse ano as posições anti-chinesas foram crescendo de tom. Nas reuniões e congressos dos vários partidos comunistas que se foram realizando ao longo desse ano, os

203O COMITÉ CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA PORTUGUÊS, Sobre a Conferência dos 81 Partidos

Comunistas e Operários em Moscovo, Março de 1961, in PEREIRA, Pacheco, 2008, O um dividiu-se em dois, Lisboa, Alêtheia Editores, p. 145

204PEREIRA, Pacheco, 2008, O um dividiu-se em dois, Lisboa, Alêtheia Editores, p. 145

delegados portugueses não deixarão mais de incluir nos seus discursos e mensagens referências criticas ao PC da China.

Francisco Martins Rodrigues, membro do Comité Central e da Comissão Executiva do PCP, surgirá como o primeiro “pró-chinês” dentro do Partido Comunista Português, tendo as suas posições evoluído rapidamente, entrando em clara divergência com a orientação do partido. Em Agosto de 1962, Martins Rodrigues, redigiu um documento em que se mostrava bastante severo com o baixo nível político e ideológico dos quadros do partido, com a fragilidade do trabalho em meio operário e com a quase inexistência de trabalho camponês, concluindo que, desde o IV Congresso, o que fora levado à prática foi uma “aliança operário-burguesa”. Por isso, insistia na necessidade de estudar a sociedade portuguesa numa perspectiva de classe, de modo a definir quais as tarefas e a etapa da revolução no estádio de desenvolvimento da luta de classes em Portugal206. Assim, Martins Rodrigues vai pôr em causa a linha do “levantamento nacional”, colocando-se numa posição de discordância com Álvaro Cunhal. Na reunião do Comité Central de Dezembro de 1962, terá defendido a necessidade de o partido construir uma política baseada na análise marxista- leninista da sociedade portuguesa e terá questionado, juntamente com outros elementos, a posição do PCP quanto às divergências no seio do movimento comunista internacional207. Poucas semanas depois, em Janeiro de 1963, numa carta enviada ao Comité Central, insurgia-se contra o facto de ter tomado conhecimento de um documento assinado por aquele órgão de direcção, de que ele próprio fazia parte, pela rádio, pronunciando-se sobre as divergências no movimento comunista internacional. Nesta carta, discordava dos ataques públicos aos partidos chinês e albanês e condenava o seguidismo do PCP em relação ao PCUS208. O Secretariado do PCP responde a esta carta declarando que Martins Rodrigues se estava a colocar numa posição oposta à linha do partido, mas que ainda poderia emendar as suas posições, pelo que lhe é proposta uma conversa com o secretário-geral.

Numa carta de Abril de 1963, Martins Rodrigues voltaria a colocar a ênfase nas questões internacionais, procurando demonstrar que a tese da coexistência pacífica estava a ser deturpada e que os “desvios de direita” se estavam a tornar dominantes no movimento comunista internacional209.

Durante esta fase, Martins Rodrigues procurou desenvolver contactos para formar uma base

206IAN/TT-PIDE/DGS – Pr. 2163 SC CI(2) – Informação, 5 de Março de 1966, fls. 271

207IAN/TT-PIDE/DGS – Pr. 2163 SC CI(2) – Informação, 5 de Março de 1966, fls. 271

208[CAMPOS], Francisco Martins Rodrigues, A Declaração do Comité Central de 19/1. Carta ao CC, 30 de Janeiro de

1963, in MADEIRA, João, 2015, Francisco Martins Rodrigues. Documentos e Papeís da Clandestinidade e da Prisão, Ela por Ela e Abrentes Editoras, p. 58-59

209[CAMPOS], Francisco Martins Rodrigues, Acerca do perigo principal no movimento comunista. Carta ao CC, 6 de

Abril de 1963, in MADEIRA, João, 2015, Francisco Martins Rodrigues. Documentos e Papeís da Clandestinidade e da Prisão, Ela por Ela e Abrentes Editoras, p. 58-59

de apoio. Como membro da Comissão Executiva, controlava o sector dos “arredores de Lisboa”, a cuja troika dirigente pertencia Ângelo Veloso, com quem discutiu algumas das preocupações que o assaltavam em relação à linha do partido. Nitidamente, terá havido uma considerável identidade de opiniões que levou Ângelo Veloso a escrever duas cartas ao Comité Central, pelas quais foi severamente criticado210.

A reunião do Comité Central, de Agosto de 1963,211 realizada em Moscovo, era o momento ideal para se discutir a divergência que se vinha travando entre Martins Rodrigues e o Secretariado do PCP. Nesta reunião, Francisco Martins Rodrigues é confrontado com um informe de Álvaro Cunhal, intitulado A Situação no Movimento Comunista Internacional, no qual se declara que a unidade no seio do movimento comunista internacional é precária e a culpa é do Partido Comunista da China que combate a linha política orientadora da União Soviética, levando a cabo uma actividade cisionista, seguindo-se a reafirmação do apoio à linha da “coexistência pacífica”:

“A coexistência pacífica é um factor do desenvolvimento de todo o processo revolucionário mundial, porque nas condições de coexistência pacífica, prossegue vitoriosamente a construção do comunismo e do socialismo, torna-se cada vez mais poderosa e influente a grande criação e fortaleza da classe operária internacional que é o campo socialista, desequilibram-se cada vez mais as forças mundiais em favor do socialismo e desenvolve-se favoravelmente a luta da classe operária nos países capitalistas contra a reacção, contra o fascismo, pela democracia, pelo socialismo e a luta dos povos ainda submetidos ao jugo colonial pela sua independência” 212.

Nas críticas que faz ao Partido Comunista da China, Cunhal acusa-o de não reconhecer a autoridade e o prestígio do PCUS, de ter uma posição dogmática e sectária e afirma: “discordamos dos nossos camaradas chineses, criticamos a sua actuação e orientação, mas continuamos a considerar o PCC como um partido irmão do nosso, um grande e glorioso partido dum grande e glorioso povo”, embora reconheça que será difícil restabelecer a unidade ideológica no movimento comunista213.

No documento Luta Armada em Portugal (1970-1974) (páginas 107-111)