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Nos seus trabalhos, Robert Stam, James Naremore198 e Brian McFarlane199 concluíram, persuasivamente, que a adaptação é um fenômeno generalizado. Adapta-se de todos sistemas semióticos para outros sistemas semióticos: da literatura para o cinema, mas também do cinema para a literatura; da televisão, histórias em quadrinhos e da mitologia, para o cinema; da literatura, cinema e poesia para o teatro, e para a música (ópera); da mitologia, narrações de viagens, narrações bíblicas, épicos literários, para o romance, e assim sucessivamente: segundo Stam, o romance começa canibalizando todos esses gêneros:

O romance começou orquestrando uma diversidade polifônica de materiais – ficções corteses, literatura de viagem, alegoria, livros de adivinhações e brincadeiras – numa nova forma narrativa, repetidamente saqueando ou anexando artes vizinhas, criando novos híbridos como os romances poéticos, romances dramáticos, romances cinemáticos e romances jornalísticos200.

Nessa passagem, Stam chega até mesmo a equacionar o romance e o filme como “canibalizadores consistentes” de diversos gêneros e mídias201. A diferença é que o cinema levou esse processo –

poderíamos dizer, de deglutição – ao paroxismo202. Mas ele simplesmente acentuou e radicalizou um

processo que o romance começara. Estendendo uma frase feliz de Stam, quando nos referimos a quase qualquer obra da literatura ou do cinema, podemos falar de um intertexto infinitamente permutável, que alimenta e é alimentado infinitamente203.

198 Na introdução ao livro Film adaptation, que editou, ele discutiu com rigor muitas das questões que ainda

precisam ser discutidas quanto ao tema adaptação. Reunião de artigos sobre o tema, é lá que se encontra o seminal ensaio de Robert Stam, inúmeras vezes citado neste capítulo de minha tese.

199 No seu livro Novel to filme, na primeira parte, ele discorre teoricamente o tema da adaptação. Na segunda parte,

faz um estudo de cinco filmes, adaptações cinematográficas de alguns romances: The Scarlet Letter (1926), Random

Harvest (1942), Great Expectations (1946), Daisy Miller (1974), Cape Fear (1991).

200 Ver em NAREMORE. Film adaptation, p. 61. “The novel began by orchestrating a polyphonic diversity of

materials – courtly fictions, travel literature, allegory, and jestbooks – into a new narrative form, repeatedly plundering or annexing neighboring arts, creating novel hybrids such as poetic novels, dramatic novels, cinematic novels, and journalistic novels.”

201 Ibidem, p. 61. “Both novel and film have consistently cannibalized other genres and media.” 202 Ibidem, p. 61. “...the cinema carries this cannibalization to its paroxysm.”

203 Ibidem, p. 57. “The text feeds on and is fed into an infinitely permutating intertext…” Para uma discussão do

Quando se adapta de uma linguagem para outra, portanto, é possível pensar que essas linguagens tenham algumas características em comum, que podem ser mais facilmente aproximadas; e que talvez elas tenham algumas outras características nas quais elas se distinguem uma da outra, mas que de alguma maneira podem ser transfiguradas, transcriadas ou transmutadas na linguagem receptora. O que aproxima e o que distingue a linguagem literária da linguagem cinematográfica?

Como escreveu Italo Calvino, respondendo a algumas perguntas da revista Cahiers du Cinéma, muito provavelmente a linguagem cinematográfica tem, entre seus antepassados, a arte dos contadores de história e os romances populares do século dezenove, sendo que estes três tipos de narrativa (resumindo, cinema, mitologia, e romance popular) têm em comum a precedência da imagem em relação à “maneira de escrever”. Escreveu ele que

Para achar os elementos comuns a uma série de palavras escritas (como o romance) e uma série de fotogramas em movimento (como o cinema) precisamos examinar esse fluxo de palavras ou fotogramas e isolar a urdidura particular de imagens narrativas que – mesmo antes da literatura e o romance existirem – era próprio da tradição oral (mito, fábula, conto folclórico, canção épica, lendas dos santos e dos mártires, contos eróticos, etc). O cinema tem sua origem, em parte, na arte do contador de histórias (...) e, em parte, na literatura popular do século dezenove (romance de aventuras, romance gótico, romance policial, romance de amor, romance social), no qual as séries sucessivas de imagens têm uma relação com a maneira de escrever204.

No momento, retenhamos a ligação (relação), preciosa, que estabelece Calvino entre imagens narrativas, a tradição oral e a literatura popular. Não é por outra razão que Brian McFarlane, tentando distinguir o que pode e o que não pode ser transferido de uma linguagem

204 CALVINO. The literature machine, pp. 74-75. “To find the elements common to a series of written words (such

as a novel) and a series of moving photograms (such as film) we must examine this flow of words or photograms and isolate the particular chain of narrative images that – even before literature and novel came into existence – was proper to the oral tradition (myth, fable, folk tale, epic song, legends of saints and martyrs, bawdy tales, etc.). The cinema is derived partly from the storyteller’s art […] and partly from the popular literature of the nineteenth century (adventure story, Gothic novel, detective story, love story, romantic novel, social novel), in which the series of successive images has a bearing on the way of writing.”

para outra, afirmou que é “aquilo que pode ser transferido de uma mídia para outra (essencialmente, narrativa)...205”

Mas é somente a narrativa que pode ser adaptada? Estudando essas relações entre literatura e cinema, McFarlane relaciona as conclusões a que chegaram dois estudiosos, Alain Spiegel206 e Keith Cohen207, e que têm extrema relevância para o que estamos analisando. Dizem esses autores que alguns escritores que apareceram, significativamente, no final do século dezenove e início do século vinte – quando o cinema estava sendo inventado e começava sua trajetória – tais como Gustave Flaubert, Henry James, Joseph Conrad, Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf tinham em comum algo muito importante:

... essa ênfase na descrição das superfícies e no comportamento de objetos e figuras tira alguma importância da voz narrativa do autor e dessa maneira nós aprendemos a ler a ostensivamente não mediada linguagem visual do romance do fim do século dezenove, de uma maneira que antecipa a experiência do cinema, que necessariamente apresenta estas superfícies físicas208.

Em outras palavras, esses romancistas mudam o paradigma do romance exatamente quando o cinema estava aparecendo, e tendem a “mostrar como os eventos se desenvolvem dramaticamente em vez de contá-los209”: influência do cinema sobre a literatura, da literatura sobre o cinema, ou uma armação do zeitgeist, do espírito (ou gênio) da época, que vai ressoar primeiro na literatura, e depois no cinema, ou talvez, nos dois, mais ou menos no mesmo tempo? McFarlane acrescenta que Henry James e Conrad vão

205 McFARLANE. Novel to film, p. vii. “…that which can be transferred from one medium to another (essentially,

narrative)…”

206 No livro Fiction and the camera eye. 207 No livro Film and fiction.

208

McFARLANE. Novel to film, p. 5. “…this stress on the physical surfaces and behaviours of objects and figures is to de-emphasize the author’s personal narrating voice so that we learn to read ostensibly unmediated visual languages of the later nineteenth-century novel in a way that anticipates the viewer’s experience of film which necessarily presents those physical surfaces.”

209 COHEN. Film and Fiction, p. 5, citado em McFARLANE, Novel to film, p. 5. “Showing how the events unfold

… antecipar o cinema na sua capacidade de “decompor” uma cena, alterando o ponto de vista para focar mais detidamente nos vários aspectos de um objeto, tratando de explorar o campo visual através de sua fragmentação, em vez de apresentá-lo cenograficamente ...210.

Seria interessante chamar a atenção para esse procedimento (fragmentação do espaço) descrito por McFarlane, como sendo a maneira nova de James e Conrad mostrarem um cenário: ele coincide com a estética do cinema mais moderno (posterior, diríamos, a Cidadão Kane, 1942, de Orson Welles). O cinema clássico, por exemplo, tendia a mostrar o cenário todo, no início de uma sequência, um pouco como os romancistas do século dezoito e início do século dezenove, para somente depois, no prosseguimento da cena e da sequência, mostrar detalhes do cenário (e fragmentá-lo, portanto). Já Alfred Hitchcock, um cineasta decididamente moderno, vai dizer a Truffaut que “muitos cineastas são conscientes do palco do estúdio todo e da atmosfera da filmagem, quando eles deviam ter somente um pensamento na cabeça: o que aparecerá na tela211”. Na mesma entrevista, ele diz que “é sempre a questão de escolher o enquadramento da imagem em função das finalidades dramáticas e da emoção, e não simplesmente com a intenção de mostrar o cenário212”: Hitchcock estava se referindo a uma sequência que havia filmado, de um prisioneiro entrando numa delegacia, toda ela filmada com planos mais próximos do prisioneiro, sem fazer um plano mais geral, que mostrasse a delegacia toda. “O plano geral poderá ser útil num momento dramático, por que gastá-lo?213”. Nas duas afirmações, Hitchcock está chamando a atenção exatamente para o detalhe, para o fragmento, o elemento emocional

210 Ibidem, p. 5. “...anticipate he cinema in their capacity for ‘decomposing’ a scene, for altering point of view so as

to focus more sharply on various aspects of an object, for exploring a visual field by fragmenting it rather than by presenting it scenographically…”

211 TRUFFAUT. Le cinéma selon Hitchcock, p. 202. “…beacoup de cinéastes sont conscients du plateau entier et de

l’atmosphère du tournage, alors qu’ils ne devraient avoir qu’une seule pensée en tête: ce qui apparaîtra sur l’écran.” Grifo meu.

212 Ibidem, p. 164. “C’est toujours la question de choisir la taille des images en fonction des buts dramatiques et de

l’émotion, et non pas simplement dans le dessein de montrer le décor.”

213 TRUFFAUT. Le cinéma selon Hitchcock, p. 164. “Le plan général pourra être très utile dans un moment

importante no filme, naquele momento, o que vai ser filmado e, portanto mostrado. Como se vê, não se pode falar em “influências” imediatas de uma arte na outra (como aliás argumenta César Guimarães; ver abaixo).

Como escreveram Stam, Naremore e McFarlane, a grande mudança da narratividade do romance no final do século dezenove vai dar mais ou menos a mesma ênfase na apresentação do que está sendo observado, do observador, e do que este pensa e faz, a partir do que ele vê: o que se procura, neste tipo de romance, é mostrar certas relações, determinadas pelo olhar e pelo sempre mutante ponto de vista; aqui, o escritor evitaria se interpor com a escritura entre o mostrado e o leitor, o que dificultaria mais a adaptação. O olhar214 e os muitos pontos de vista, e a

relação desses detalhes com a narração: isso é profundamente cinematográfico, mas ao que parece, não era menos literário, o que facilitou, e muito, a apropriação desses processos pelo cinema, se apropriação houve. Mais uma vez: precedência de uma linguagem sobre a outra, ou a manifestação do zeitgeist nessas duas linguagens, cinema e literatura? Provavelmente, todas essas coisas ao mesmo tempo: os estudiosos vão falar, sim, da influência da linguagem literária no cinema, mas vão dizer também que

... a ficção modernista e o cinema de arte internacional influenciaram fortemente um ao outro – como pode ser visto na trilogia USA, que John Dos Passos começou pouco depois de encontrar Eisenstein e de ler as teorias soviéticas da montagem. Eventualmente, o cinema foi teorizado como a “maneira de ver” dominante no mundo moderno e como a condição que a maioria das artes visuais e literárias aspiravam. O crítico cultural Arnold Hauser certa vez colocou toda a arte do século vinte, incluindo algumas coisas, como a pintura cubista e

The Waste land, sob a rubrica de “a era do filme”. Num livro influente escrito em 1950, o crítico francês Claude-Edmonde Magny propôs que o período entre as duas guerras mundiais foi a “era do romance americano”, e que os escritores americanos mais importantes, especialmente Hemingway e Faulkner, foram guiados por uma estética do cinema. Mais recentemente, os críticos americanos Alan Spiegel e Keith Cohen escreveram livros argumentando que a literatura

214 Nicholas Ray, na década de cinqüenta, vai dizer que a câmera detecta a “melodia do olhar”. Ver em

modernista como um todo – especialmente os escritos de Flaubert, Proust, Joyce, Conrad e Woolf – é fundamentalmente “cinemática” na sua forma215.

César Guimarães, num livro de 1997, Imagens da memória, entre o legível e o visível216 ao que tudo indica, concorda com algumas dessas colocações, mas as qualifica. Num primeiro momento, ele escreve que

Se nos seus primeiros tempos o cinema encontrou na literatura um certo modelo narrativo que lhe permitiu contar histórias através de imagens, mais tarde a poesia e a ficção, impulsionadas inicialmente pela agitação das vanguardas modernistas, assimilarão, por meio da analogia, procedimentos e temas característicos do cinema217”.

Para logo em seguida, afirmar: “esse circuito de mão dupla, aparentemente correto, possui, entretanto, alguns pressupostos que devem ser criticados218”. Partindo para essa crítica,

ele mostra, convincentemente, que o primeiro cinema (que vai até 1915) vai ser mais determinado pelos espetáculos de circo, os números de feira, o music hall, o vaudeville americano, do que propriamente pela narratividade do romance. Essa influência da literatura na narração cinematográfica começa com Griffith, por volta de 1915. É por isso que Guimarães concluiu que

é preciso, pois, relativizar a coincidência temporal das determinações que colocaram o cinema e a literatura em contato. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o cinema dos primeiros tempos não foi influenciado pela literatura que lhe era contemporânea, assim como, já na década de 20, alguns romances, embora já sofrendo os efeitos do regime das imagens-movimento, não

215 NAREMORE. Film adaptation, p. 5. “...modernist fiction and the international art cinema strongly influenced one

another – as can be seen in John Dos Passos’s USA trilogy, which Dos Passos began shortly after meeting Eisenstein and reading the Soviet theories of montage. Eventually the cinema was theorized as the dominant “way of seeing” in the modern world and as a condition toward which most of the visual and literary arts aspired. Cultural critic Arnold Hauser once placed the whole of twentieth-century art, including such things as Cubist paintings and poems like The waste land, under the evocative rubric of “the film age.” In an influential book written in the 1950s, French critic Claude-Edmonde Magny proposed that the period between the two world wars had been “the age of the American novel” and that leading American writers, especially Hemingway and Faulkner, had been guided by a “film aesthetic”. More recently, American critics Alan Spiegel and Keith Cohen have each written books arguing that modernist literature as whole – especially the writings of Flaubert, Proust, James, Conrad, Joyce, and Woolf – is fundamentally “cinematic” in its form.”

216 Portanto anterior ao livro de Naremore, que é de 2000. 217 GUIMARÃES. Imagens da memória, p. 108.

se restringiram a incorporar, passivamente, os procedimentos dos filmes que lhe eram contemporâneos. Será preciso, pois, introduzir a noção de descontinuidade temporal entre as determinações e, em seguida, graduar a sua força, afastando a noção demasiado genérica de “influência219”.

Segundo César Guimarães, portanto, mesmo levando em conta a “descontinuidade temporal” dessas “determinações”, poder-se-ia falar, já na década de 20, de romances que estariam “sofrendo os efeitos do regime das imagens-movimento” (não passivamente, ele acrescenta). Essa transferência de procedimentos que, como ele afirma, é criativa, não-passiva, poderia incluir a literatura de Faulkner e Hemingway, por exemplo, que publicaram suas primeiras obras exatamente na década de 20, no país onde o cinema mais se desenvolveu e mais determinou os hábitos e a visão das pessoas?