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Na lista de nomes presentes em Biarritz, faltava um nome importante, aliás o quinto membro da turma de Jean-Luc Godard: Eric Rohmer (seu verdadeiro nome era Maurice Schérer). Sendo o mais velho deles todos, foi ele quem verdadeiramente deu nome (involuntariamente) ao grupo, quando escreviam nos Cahiers du Cinéma, defendiam o cinema americano e a politique des auteurs: até mesmo os amigos e mestres (Bazin e Astruc) os chamavam ironicamente de a “gang Schérer”, pois localizavam as idéias de Rohmer nos textos de seus jovens amigos.

Eric Rohmer era o exemplo típico do intelectual, pensador e professor que o sistema de ensino francês teria formado, talvez ao longo dos séculos, mas que certamente formou no século vinte, na área do cinema. Professor de literatura, ensinava num liceu fora de Paris. Em 1946 publicara um romance; pouco depois, estava escrevendo na revista Les Temps Modernes, sobre cinema, mas também na Revue du Cinéma. Eric Rohmer costuma dizer que adotou esse pseudônimo para não escandalizar sua mãe com seu trabalho na área cinematográfica; seu biógrafo afirma que o verdadeiro motivo fora o fato de professores sérios de literatura não

poderem brincar com o cinema, naquela época72. Mas o fato é que, formado em letras, professor de literatura, escrevendo em revistas prestigiosas, escritor, muito cedo ele apaixonou-se pelo cinema e impôs-se como tarefa o trabalho de aprendê-lo, ensiná-lo e escrever sobre ele. Começou a programar e a discutir os filmes no “Ciné-Club du Quartier Latin”; ao mesmo tempo, cuidava de uma publicação regular, o Bulletin du Ciné-Club du Quartier Latin, que em 1949 se transformou numa revista, a Gazette du Cinéma. De vida curta (cinco números), esta revista lançou na crítica de cinema o jovem Jean-Luc Godard, publicou um pequeno texto de Paul Valéry e um ensaio importante de Jean-Paul Sartre (em dois números sucessivos, Le cinéma n’est pas une mauvaise école, uma aula inaugural que ele, recém formado em filosofia pela École Normale Supérieure, dera num liceu de Le Havre, vinte anos antes, onde argumentava que o cinema era a arte moderna por excelência, por causa de sua enorme audiência e de sua particular relação com o tempo e espaço: o cinema podia mostrar uma simultaneidade de eventos, o que não era possível em outras artes). Ainda pouco conhecido, esse texto é um belo exemplo, segundo MacCabe73, dos escritos de Sartre sobre cinema.

Romancista, cineclubista, crítico e ensaísta de cinema – tendo escrito em revistas especializadas e estando na origem de uma delas, a Gazette du Cinéma – e, numa fase posterior, cineasta: eis aí um resumo que, no todo, ou em parte, é o currículo de inúmeros intelectuais e artistas franceses, chegando mesmo a constituir uma tradição naquele país. Tendo sido inventado por dois franceses, os irmãos Lumière, o cinema muito cedo contou com o entusiasmo e o interesse intelectual de vários escritores, poetas e romancistas, ao contrário do que se verificou no resto do mundo, Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, países nos quais o cinema era tido

72 MACCABE. Godard, portrait of the artist at seventy, p. 9. 73 Ibidem, p. 57.

como industrializado, cru, insensível e pouco sofisticado pelos seus artistas e intelectuais74. O preconceito contra o cinema também existia na França, junto aos literatos (principalmente os mais acadêmicos, mas não somente); mas desde muito cedo, vários deles, na maioria pertencentes a alguma vanguarda, foram atraídos pela arte das imagens em movimento. Como o poeta modernista Guillaume Apollinaire, por exemplo, que foi o primeiro a abrir sua revista, Les Soirées de Paris, a uma coluna sobre o cinema, ainda antes da Primeira Guerra Mundial.

O exemplo mais claro, e talvez fundador, dessa tradição, foi Louis Delluc (1890/1924). Poeta, romancista, ele começou escrevendo sobre teatro numa revista. Em 1915 descobriu a nova arte, e abandonou tudo para escrever sobre e fazer cinema. Primeiramente, escreveu crítica de cinema num semanário, a partir de 1917; e redigiu uma coluna regular em Paris-Midi; em 1920 abriu sua própria revista, Le journal du ciné-club; ainda insatisfeito, criou Cinéa, em 1921, publicação de alto nível, que ele abriu para as melhores cabeças da época, segundo Claude Beylie75. Finalmente, dirigiu alguns filmes importantes, da chamada vanguarda francesa: Fièvre (1921), La femme de nulle part (1922) e L’inondation (1924).

Escritor, romancista, poeta e dramaturgo, crítico, artista gráfico, Jean Cocteau (1889/1963), o diretor do “Festival du Film Maudit”, era um outro exemplo dessa tradição em ação. Depois de publicar uma vasta obra literária, começara a dirigir filmes em 1930, com Le sang d’un poète. Sua obra cinematográfica inclui fitas como La belle et la bête, Les parents terribles, Orphée, e Le testament d’Orphée (l961), seu último filme. A propósito de seu primeiro filme, Jean-Luc Godard escreveu que “a poesia é um ofício de homem e, por conseqüência, um trabalho mortalmente perigoso76”. Sobre seu cinema, afirmou, numa entrevista que “Cocteau

74 MACCABE. Godard, a portrait of the artist at seventy, p. 42. 75 BEYLIE. Dictionnaire du cinéma, Larousse, p. 175.

76 GODARD. Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, tome 1, p. 252. … la poésie est um métier d´homme et, par

executava figuras livres em exercícios impostos. Eu admirava, nele, mais o cineasta que o escritor77”. Citações de seus livros e filmes, na obra godardiana, encontraremos, posteriormente,

em O pequeno soldado (1960) e História(s) do Cinema (1998), respectivamente.

Um outro nome, também extremamente significativo, é o de André Malraux, que depois de vários romances importantes, Les Conquerants (1928) e La condition humaine (1936), por exemplo, escreveu um ensaio sobre o cinema (em 1941), Esquisse d’une psychologie du cinéma, onde afirmava que “o filme e o romance modernos se valem das mesmas leis78. Em 1945 lançaria um filme, realizado na Espanha conflagrada, que dirigira em 1939: Espoir. Os escritos de André Malraux sobre a filosofia e a arte em geral influenciaram grandemente a obra de André Bazin e Godard (“Eu ia esquecer Malraux, seu Esquisse d’une psychlogie du cinéma, sua Psychologie de l’art, Les Noyers D’Altenburg e depois A condição humana, um tipo de romance desacreditado, mas que me parece que não foi igualado. Seu artigo crítico sobre Faulkner é igualmente inesquecível79”). Alguns outros cineastas franceses tiveram uma obra literária anterior aos seus filmes, e foram importantes para Jean-Luc Godard: Marcel Pagnol e Sacha Guitry80.

Eric Rohmer, portanto, ao passar da literatura para o cinema, não estava sozinho: seguia uma tradição honrada e honrosa. Ao mesmo tempo companheiro e figura paterna, dava dinheiro para seus amigos (para eles andarem de metrô, trem, irem ao cinema e comerem, etc), mas exigia recibo de tudo, até mesmo de armazém: Godard se lembra que o salário de Rohmer era um meio

77 GODARD. Jean-luc Godard par Jean-Luc Godard, tome 2, p. 433. “Cocteau exécutait des figures libres dans des

exercices imposés. J’admirais encore plus le cinéaste que l’écrivain en lui”.

78 AMENGUAL. Dictionnaire du Cinéma, Larousse, p. 419. “…film et roman moderne relèvent des mêmes lois.” 79 GODARD. Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, tome 2, p. 432. “J’allais oublier Malraux, son Esquisse d’une

psychlogie du cinéma, sa Psychologie de l’art, Les Noyers D’Altenburg et puis La Condition Humaine, un tipe de roman décrié mais qui me parait inégalé. Son article critique sur Faulkner est également inoubliable.”

80 Num programa de televisão em que conversa com Marguerite Duras, Godard disse que “na Nouvelle Vague,

fomos sensíveis mais do que outros a este “bando dos quatro”, únicos no mundo: Pagnol, Guitry, Cocteau, Duras, esses escritores que fizeram cinema. Eles são mais escritores que cineastas, mas eles conseguiram assim mesmo fazer filmes em igualdade com os cineastas.” GODARD. Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, tome 2, pp. 140 e

142. “…à la Nouvelle Vague, on a été sensibles plus que d’autres à cette “bande des quatre”, unique au monde: Pagnol, Guitry, Cocteau, Duras, ces écrivains qui ont fait du cinéma. Ils sont plus écrivains que cinéastes, mais ils sont quand même parvenus à faire des films à égalité avec les cinéastes.”

de subsistência para o grupo de amigos. Ele se lembra sempre de Godard como o mais bem vestido deles todos, e alguém que estava sempre com um livro debaixo do braço, usualmente algum romance de Balzac81.