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Alexandre Astruc, membro do júri de Biarritz, pertencia a essa mesma tradição: a dos escritores-cineastas. No dia 30 de março de 1948, a revista L’Écran Français publicou, no número 144, um texto de sua autoria, que faria escola, intitulado “Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo”. O autor deste ensaio, que gradualmente adquiriu características de manifesto de uma geração, e de um certo tipo de cinema, tinha escrito, também, um romance, Les vacances (publicado em 1945, pela Gallimard), era crítico literário – tendo colaborado, também, no Les Temps Modernes, a revista de Jean-Paul Sartre, mentor de vários críticos e teóricos de cinema na França, como se verá; o nome da revista era uma homenagem a Chaplin e a um de seus filmes, Tempos Modernos (Modern Times, 1936) – e, posteriormente, de cinema. Num dos primeiros parágrafos do seu texto, Astruc afirmava que

Depois de ter sido sucessivamente uma atração de feira, um divertimento análogo ao teatro de boulevard, ou o meio de preservar as imagens da época, ele [o cinema] se torna pouco a pouco uma linguagem. Uma linguagem, quer dizer, uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir seu pensamento, por mais abstrato que ele seja, ou traduzir suas obsessões exatamente como acontece hoje no ensaio e no romance. É por isso que chamo essa nova época do cinema como a época da câmera-caneta82.

81 MACCABE. Godard, a portrait of the artist at seventy, p. 55. 82

ASTRUC. The birth of a new avant-garde: la caméra-stylo, in GRAHAM. New wave, pp.17/18. “After having been successively a fairground attraction, an amusement analogous to boulevard theatre, or a means of preserving the images of an era, it is gradually becoming a language. By language, I mean a form which and by which an artist can express his thoughts, however abstract they may be, or translate his obsessions exactly as he does in the contemporary essay or novel. That is why I would like to call this new age of cinema the age of caméra-stylo (camera-pen).”

Um pouco mais adiante, ele diz: “... o cinema gradualmente se livrará do que é visual, da imagem pela imagem, das imediatas e concretas demandas da narrativa, para se transformar num meio de escritura tão flexível e sutil como a linguagem escrita83”. Em seguida, fala das possibilidades expressivas desse cinema:

A mais filosófica meditação sobre a produção humana, psicologia, metafísica, idéias e paixões são perfeitamente cabíveis no cinema. [...] idéias contemporâneas e filosóficas são tais que somente o cinema pode fazer justiça a elas84.

Resumindo, ele diz que “breve será possível escrever idéias diretamente no filme85” e que “o diretor/autor escreverá com a câmera como um escritor escreve com sua caneta86”.Ao afirmar que este cinema ainda não existe, Astruc diz, com uma certeza espantosa: “os filmes virão, eles verão a luz do dia...” mas conclui, “pois embora saibamos o que queremos, não sabemos quando nem como será possível fazê-lo87”.

Dificilmente superestimaríamos esse texto/manifesto se disséssemos que ele antecipa com exatidão as novidades que acontecerão no cinema francês daí a dez anos. E que, por extensão, prevê, de maneira surpreendente, um certo cinema literário, que se desenhará a partir da Nouvelle Vague, e mais radicalmente ainda, da obra de Jean-Luc Godard. Pouco depois de escrever que “não sabemos quando nem como será possível fazê-lo”, Astruc estava tentando praticar esse cinema que defendia. Em 48 e 49, realizou dois curtas-metragens, Aller et Retour e Ulysse ou les mauvaises rencontres. Em 53, filmou o média-metragem Le rideau crimoisi, baseado em Barbey

83 Ibidem, p. 18. “...the cinema will gradually break free from the tyranny of what is visual, from image for its own

sake, from the immediate and concrete demands of the narrative, to become a means of writing just as flexible and subtle as the written language.”

84 Ibidem, p. 19. “The most philosophical meditation on human production, pschology, metaphysics, ideas, and

passions lie well within its province. [...] contemporary ideas and philosophies of life are such that only the cinema can do justice to them.”

85 Ibidem, p. 19. “...it will soon be possible to write ideas directly on film...”

86 Ibidem, p. 22. “The film-maker/author writes with his camera as a writer writes with his pen”.

87 Ibidem, p. 22. The films will come, they will see the light of day […] for although we know what we want, we do

d’Aurevilly. Em 55, dirigiu o longa Les mauvaises rencontres, baseado num romance de Cécil Saint-Laurent. Em 57, filmou Une vie, baseado em Guy de Maupassant. Os primeiros filmes ele dirigiu antes das primeiras obras da Nouvelle Vague; Une vie foi contemporâneo das primeiras fitas deste movimento. Em 61, filmaria seu único roteiro original, até então, La proie pour l’ombre. Em 62 dirigiria L’Éducation sentimentale, inspirado em Gustave Flaubert.

Em outubro de 64, no número 150 da revista italiana Filmcritica, Astruc dava um passo atrás em relação ao seu manifesto. Falando dos cineastas da Nouvelle Vague, ele dizia: “o que me surpreendeu é que me dei conta do fato que o que interessava mais a esses jovens era o aspecto literário, não o profundamente cinematográfico88”. Que cineastas se interessem mais pelo aspecto

literário, é verdadeiramente positivo: aumenta sua capacidade de compreender, criar novidade e também de estender os recursos de expressão até então existentes, no cinema. Mas de uma maneira geral, os cineastas dos quais estava falando (entre eles, Jean-Luc Godard) tinham sim uma preocupação essencialmente cinematográfica, mas amavam a literatura tanto como o cinema, e não tinham preconceitos. Mais: achavam que podiam transportar certos procedimentos da literatura para o cinema, fazendo esse último ganhar alguns recursos a mais em termos de linguagem.

Numa outra passagem da mesma entrevista, ele afirmava que no seu manifesto de 48 “dava a impressão de que se poderia fazer um filme do mesmo modo que se escreve um livro; isso é falso: trata-se de duas artes completamente diferentes89” Elas certamente são diferentes;

mas o que fazia a novidade do seu manifesto era o tipo de proximidade/cumplicidade/colaboração que ele propunha. Portanto, sua entrevista de 64 era um passo atrás em relação ao seu

88 ASTRUC. Intervista con Alexandre Astruc, IN filmcritica,150, Ottobre 1964 p. 534. “...ciò che mi há sorpreso è

che mi son reso conto del fatto che quel che interessava di più questi giovani era lo aspetto letterario, non quello profondamente cinematografico”.

89 Ibidem, p. 541. “...davo l’impressione che si potesse fare un film nello stesso modo in cui si scrive un libro; questo

texto/manifesto. Em 1961, no número 116 do Cahiers du Cinéma, ele já havia dito que ‘o cinema ainda é uma arte clássica90”. A passagem para a realização parecia haver desradicalizado a concepção cinematográfica de Astruc: em 1961, com a Nouvelle Vague já tendo produzido várias obras radicais, ele não se dava conta de que o cinema havia mudado profundamente e que, se ainda era clássico, já passara a ser moderno, até mesmo antes do movimento que ajudara a aparecer, prevendo-o.

Em 1959, o cinema francês produziu Hiroshima, meu amor, roteiro da escritora Marguerite Duras; em 61, O ano passado em Marienbad, roteiro do romancista Alain Robbe- Grillet. Aqui, tínhamos dois dos melhores exemplos do que a união entre o cinema e a literatura podia produzir: dois grandes escritores, dois roteiros extremamente originais e um diretor primariamente voltado para a literatura, Alain Resnais (que sempre adotou a estratégia e a prática de convidar escritores para escrever seus roteiros, em vez de adaptar romances dos escritores com os quais trabalhou), que conseguiram urdir, entretecer e criar um cinema que era parceiro da literatura, ou uma literatura que era parceira do cinema; mas, certamente, estamos falando de uma literatura cinematograficamente oral. Tanto nos diálogos, como na narração em off, tínhamos verdadeiros poemas, recitados com precisão pelos personagens, em monólogos e diálogos que eram alguns dos melhores exemplos desta união quase impossível. Mas, nestes dois casos, tratava-se do roteiro de um escritor, com a direção cabendo a um cineasta, Alain Resnais, uma colaboração única, quase impossível.

Logo depois dessas experiências, Robbe-Grillet e Marguerite Duras, em grande parte devido à experiência positiva com as fitas de Resnais, passaram a dirigir filmes, além de continuarem a escrever romances. Robbe-Grillet dirigiu sua primeira obra em 63, com

90 RIVETTE/ROHMER, Entretien avec Alexandre Astruc, Cahiers du Cinéma, Février 1961, número 116, p. 11. “...

L’immortelle (da qual escreveu também o roteiro). Marguerite Duras estreou como diretora em 66. A obra cinematográfica de Robbe-Grillet, em termos de qualidade, nem de longe se aproxima da sua literatura; no caso de Marguerite Duras, muitos vêem na sua produção fílmica parte importante da sua obra considerada como um todo. Até hoje os dois são mais conhecidos como escritores importantes, não exatamente como cineastas. Em todo caso, a identificação/atividade primeira dos dois é com a literatura.

Alexandre Astruc, Eric Rohmer, Louis Delluc, André Malraux, Marcel Pagnol, Sacha Guitry, Jean Cocteau, Alain Robbe-Grillet e Marguerite Duras91 pertencem, então, a uma importantíssima tradição francesa, pouco ou nada observável em outros países92: a dos escritores

e romancistas que, num determinado momento, ou até mesmo definitivamente (entre os nomes anteriormente citados, caso somente de Eric Rohmer), passaram a ser unicamente cineastas. Na França, com sua longa tradição vanguardista, de invenções e estudos interdisciplinares, aos escritores sempre foi relativamente fácil trocar a caneta pela câmera.