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Na verdade, a má fama do plágio (“plagiar é botar seu nome num corpo estranho339”) é relativamente recente. Na antigüidade, e mesmo durante as eras clássicas, copiar um bom modelo não só era permitido, como até mesmo aconselhado:

Os séculos dezesseis e dezessete davam ênfase aos modelos dignos de serem imitados e apresentavam autores contentes de terem produzido coisas bem feitas [...] a imitação é o prazer da meia-palavra, homenagem prestada à grandeza do modelo e, simultaneamente, ao talento do imitador340.

A qualidade deveria ser reproduzida, imitada, copiada, traduzida, até mesmo plagiada. Com o fetichismo da novidade, do revolucionário, da vanguarda, os séculos dezenove e parte do vinte, passam a valorizar a invenção, o nunca antes escrito ou pensado: “os séculos dezenove e vinte defendem antes, sob a forma romântica ou realista, a idéia de uma literatura proveniente de si mesma ou da realidade, mas não da literatura anterior341”. Vale lembrar que Joyce, o exemplo mais típico da literatura de vanguarda, do “novo”, usou o esquema da Odisséia para criar seu Ulisses.

Atualmente, o plágio e a citação, esta última definida como

escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação. A citação representa a prática primeira do texto, o fundamento da leitura e da escrita 342,

recuperaram seus direitos de cidadania no texto literário. Não são poucos, e nem sem importância, os autores que defendem a idéia de que a literatura é, na melhor das hipóteses, diálogo de textos. Lautréamont, por exemplo: “O plágio é necessário. O progresso o implica. Ele

339 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, 339. 340 Ibidem, p. 44.

341 Ibidem, p. 44.

cerca de perto a frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma idéia falsa, a substitui com a idéia justa343”. Ou, mais claramente ainda, Giraudoux (bastante citado na obra de Godard): “O plágio está na base de todas as literaturas, excetuada a primeira que, aliás, é desconhecida344”. Com o que concordaria Jorge Luis Borges, citando Bacon, que está citando, a Bíblia e Platão (que estariam citando exatamente quem?): “Salomão disse, não existe nada de novo sobre a Terra. Platão, então, imaginou que todo conhecimento é recordação; e Salomão disse que toda novidade não é senão esquecimento345”. Na verdade, ao escrever o fictício “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, Borges estava antecipando346, como é de seu feitio, com surpreendente precisão, a posição dos teóricos atuais sobre plágio, citação, intertextualidade: “não existe o conceito de plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obras de um só autor, que é intemporal e é anônimo347”.

Michel Schneider, em seu Ladrões de palavras, finalmente, chega a uma conclusão que é, por ora, ao que parece, definitiva: o plágio é apenas mais um procedimento da criação literária, o “velho” dando origem ao “novo”, a literatura se espelhando (Borges, novamente...) infinitamente: “pouco a pouco, sob o nome sapiente de intertextualidade, o plágio voltou a ser alguma coisa que não é mais uma fatalidade, mas sim um procedimento de escritura como outro qualquer, às vezes reivindicado como o único348”. Na verdade, o livro de Schneider bem poderia ter o subtítulo de “elogio ao plágio”, tal a quantidade de afirmações e raciocínios que ele desenvolve, procurando não somente absolver este procedimento, mas, na verdade, enobrecê-lo. Primeiramente, ele se pergunta várias vezes quem escreve, eu ou o outro? O que é meu, caracteriza uma novidade ou é

343 Citado em SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 146. 344 Citado em SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 444.

345 “Solomon saith: There is no new thing upon the earth. So that as Plato had an imagination: that all knowledge

was but remembrance; so Solomon giveth his sentence, that all novelty is but oblivion.” Citado em BORGES. Obras

completas, p. 533.

346 Em 1944, data da publicação de Ficciones, que contém “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius.

347 “No existe el concepto de plagio: se ha establecido que todas las obras son obra de un solo autor, que es

intemporal y es anónimo.” BORGES. Obras completas, p. 439.

rastro do outro em mim? Como ele próprio escreveu, “qual é a parte de nós que nos é própria e não um traço do outro em nós?349”, ou “o autor é sempre o outro350”. Num determinado momento, ele chega à conclusão de que talvez seja impossível estabelecer o que é de cada um na literatura, de estabelecer o que é próprio: “é inútil querer separar o teu do meu, porque um está no outro, só existe pelo e para o outro, um é o outro351”. Maurice Blanchot, como de costume, é mais radical ainda: quem fala, quando falo, é o mundo: “se eu falo, é o mundo que se fala352”. Alguém, ou algo, fala em nós.

Mas o que finalmente decide tudo, para Schneider, no seu livro, é o fato de que a linguagem faz o homem e não o inverso: “a língua fala em nós, fora de qualquer propriedade353”. Na verdade, a escritura não sabe quem se expressa nela: “a escritura é amnésica. Não sabe de onde vem. Quem fala nela354”. Não somos proprietários da linguagem. O escritor Hofmannsthal deixa muito claro quem tem este poder: “em geral, as palavras não estão em poder dos homens, mas os homens em poder das palavras. As palavras não se entregam”355. Quem metaforizou tudo isto com perfeição foi, mais uma vez, Jorge Luis Borges, no seu texto “Pierre Menard, autor del Quijote.” Neste pequeno conto, um autor francês “não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote356”. Borges completa: “sua admirável ambição era produzir umas páginas

que coincidissem - palavra por palavra, e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes357”. No limite, para Borges, neste conto, repetir as palavras do outro é, essencialmente, se constituir num autor, mas atenção: no único autor existente de textos literários, não individualizado, a

349 Ibidem, p. 17. 350 Ibidem, p. 365. 351 Ibidem, p. 372.

352 BLANCHOT. O espaço literário, p. 17. 353

SCHNEIDER Ladrões de palavras, p. 78.

354 Ibidem, p. 100. 355 Ibidem, p. 376.

356 No quería componer otro Quijote – lo cual es fácil – sino el Quijote. BORGES. Obras Completas, p. 446. 357 “Su admirable ambición era producir unas páginas que coincidieran – palabras por palabras, líneas por líneas –

linguagem mesma, ou então, quem propriamente dita tudo, quer dizer, o Espírito. Segundo Blanchot, quem escreve, não tem qualquer autoridade; escrever é, na verdade, testemunhar o que ouvi de outrem, ou que pergunto ao outro:

O que se escreve entrega aquele que deve escrever a uma afirmação sobre a qual ele carece de autoridade [...] Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu, quebrar a relação que, fazendo-me falar para “ti”, dá-me a palavra no entendimento que essa palavra recebe de ti, porquanto ela te interpela, é a interpelação que começa em mim porque termina em ti358”.

O que foi dito com relação ao plágio, com mais razão ainda pode ser dito sobre a citação. Como escreveu Compagnon, “a citação é contato, fricção, corpo a corpo [..] A citação é um corpo estranho em meu texto, porque ela não me pertence, porque me aproprio dela359”, me aproprio dela para comentá-la, inová-la, lê-la novamente, enfim, reescrevê-la. Pois, como afirmou Georg Otte, falando do conceito de citação em Benjamin, “a síntese inesperada entre o fragmento citado e o texto presente é um indício para o fato de este último não ser inteiramente novo, assim como o texto citado não ser ‘coisa do passado’360”. Passado e presente que, se encontrando, criam um novo texto e uma nova significação.