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A Odisséia, Le mépris e a oralidade

Sempre se soube que a Odisséia era o produto de uma civilização oral: sem dúvida, ela registra, coloca em evidência a oralidade dos gregos, sua sociabilidade eminentemente narrativa e oral. As fórmulas que Homero usa são da poesia oral (“Atena, de olhos brilhantes”, “Zeus, amontoador de nuvens”, “Aurora de róseos dedos”, “Penélope, a mais sensata das mulheres”, etc.), repetidas inúmeras vezes; existem várias assembléias, nas diversas cortes, que se assentam para se banquetear e ouvir um aedo: parece que o único modelo de narração que a Odisséia conhece e, portanto reproduz, é oral. Segundo Tzvetan Todorov, “a Odisséia não é então uma narração, no primeiro grau, mas uma narração de narrações, ela consiste na relação de narrações que os personagens se fazem291”. Neste modelo, a Odisséia era tida como uma obra escrita, ainda que registrando as produções de uma rica cultura oral, que informava as criações de seus aedos; entre eles, evidentemente, Homero.

No século vinte, uma quantidade cada vez maior de estudiosos passou a afirmar que ela havia sido composta oralmente, e registrada por escrito, posteriormente. Uma discussão que nunca foi resolvida até hoje – Homero foi um autor individual ou coletivo? – fortalecia a tese da

291 TODOROV. Poétique de la prose, p. 28-29. “L’Odyssée n’est donc pas un récit, au premier degré, mais un récit

oralidade, pois é mais fácil imaginar gerações de aedos acrescentando trechos a uma narrativa oral preexistente do que escritores alterando uma obra já escrita, embora isso não fosse impossível, evidentemente. Atualmente, os especialistas dizem que é impossível decidir se ela foi composta oralmente ou escrita diretamente: não existem provas suficientes nem definitivas para afirmar qualquer das duas possibilidades. Mas o mínimo que podemos dizer é que ela é um testemunho imperecível da importância da oralidade nas culturas e nas linguagens humanas. A Odisséia é, também, uma prova de que, no mínimo, podemos falar de uma ligação fundamental, eu diria mesmo, vital, entre a oralidade e a literatura.

Em Le mépris, a abertura do filme, melhor dizendo, os seus créditos – como é comum na obra de Jean-Luc Godard292 – caracteriza, encapsula e define uma particularidade essencial dessa fita (e que, num certo sentido, antecipa como se desenvolveria a obra godardiana): sua oralidade. De fato: em vez de escrever (e filmar) o nome dos atores, dos produtores, do fotógrafo, do diretor, isto é, da equipe técnica que realizou a fita, como acontece com a quase unanimidade dos filmes produzidos no mundo inteiro, Godard realizou os créditos oralmente, ele próprio, com uma voz pausada e solene (sublinhada pela música lancinante de Georges Delerue). Essa não foi a primeira vez que isso aconteceu no cinema (créditos falados, em vez de escritos), mas esse tipo de crédito é extremamente raro293.

A seqüência que vem imediatamente depois, de Paul e Camille, na cama (ela completamente nua) continua esse caráter oral, de uma maneira bem marcada: trata-se de uma enumeração das partes do corpo de Camille (as coxas, os pés, os seios, etc), feita por ela mesma, sempre com algumas perguntas acopladas: você acha bonitos os meus seios (ou outra parte

292 Ver, a propósito, a análise, no capítulo 4, sobre a abertura e os créditos de Pierrot le fou.

293 Os créditos de O processo (1962), de Orson Welles, por exemplo, são orais, e estão no fim do filme; os de

Soberba (The magnificent Ambersons, 1942), do mesmo autor, a mesma coisa. Fahrenheit 451, de 1966 (posterior ao filme de Godard, portanto), de François Truffaut, possui, também, créditos falados. Como se vê, pouquíssimos exemplos conhecidos.

qualquer do seu corpo)? Você gosta deles? Paul sempre responde, a cada pergunta, com uma marcação bem articulada: sim, Camille, muito. Ao final dessa enumeração, ele diz de uma maneira bem escandida: “eu te amo totalmente, ternamente, tragicamente294”. Na seqüência imediatamente posterior a essa, vemos o produtor, Jeremiah Prokosch, saindo do que deve ser um estúdio onde está escrito, em italiano, “Teatro 6” e, do alto de seu improvisado palco, olhando para cima – Paul Javal e Francesca Vanini, secretária, estão bem abaixo, de costas para a câmera, e escutam atentamente o seu discurso; em grande parte dessa seqüência Prokosch está em posição superior, somente descendo desse palco no fim da seqüência – declama teatral e emocionadamente um longo texto, que é traduzido, para o francês, por Francesca: “Only yesterday, there were kings here... Kings and queens, warriors and lovers... All kind of real human beings... All the real human emotions…295”. Em Le mépris, portanto, as três primeiras seqüências têm um caráter de oralidade muito forte: é como se Godard conscientemente quisesse marcar (e demarcar) algo.

Como já descrito anteriormente, Fritz Lang escande, por três vezes, poemas de Dante Alighieri, Friedrich Hölderlin e Bertolt Brecht. Na segunda parte do filme, Camille, recita uma verdadeira litania de palavrões296, marcando-os de uma maneira clara, quando Paul diz que não fica bem para ela falar palavras vulgares. Um pouco depois, ela repete inúmeras vezes a expressão “j’irai pas297”, como que ensaiando algo. Um pouco antes, ela narrara a Paul uma história sobre o asno Martin, numa associação que ela faz ao ator Dean Martin, que Paul citara.

294 “Je t’aime totalement, tendrement, tragiquement.” GODARD. Le mépris, p. 16. É interessante ressaltar a

aliteração contida em praticamente todas as palavras dessa frase (somente o “Je” não é parte da aliteração generalizada), o que marca ainda mais a oralidade dessa sequência.

295

“Ainda ontem existiam reis, aqui... Reis e rainhas, guerreiros e amantes... Todos os tipos de verdadeiros seres humanos... Todas as verdadeiras emoções humanas...” GODARD. Le mépris,1992, pp. 16-17.

296 “Trou du cul... putain... merde... nom de Dieu... piège à con... saloperie... bordel...” GODARD. Le mépris,

p. 55.

297 Não irei. GODARD. Le mépris, p. 50. Em Pierrot le fou, Mariane repete, inúmeras vezes, numa sequência,

Na primeira parte, Paul contara a Francesca uma história sobre o mestre indiano Râma Krishna. Numa outra seqüência, Paul lê o trecho de um livro (trata-se de um livro sobre a arte romana, que Prokosch havia lhe emprestado), e logo depois Camille lê, também, dois parágrafos de um livro sobre Fritz Lang298. Num outro momento, na segunda parte (seqüência do apartamento), Paul, ao mesmo tempo em que datilografa um romance policial que está escrevendo, fala esse texto: diferentemente do que seria habitual em Jean-Luc Godard, não vemos as palavras escritas na

página. Por último, mais ou menos na metade do filme, por alguns breves minutos, o casal faz a

narração dialogada de uma seqüência299. Tudo isso, atos de narração e oralidade muito bem marcados.

Num filme que, como venho argumentando, em último caso, é mais uma adaptação intersemiótica da Odisséia que de Il Disprezzo – ele procura mimetizar e traduzir mais os recursos de composição e linguagem da obra homérica do que do livro de Moravia – essa acentuada procura da oralidade tem uma lógica e um sentido bastante apropriados. A palavra escrita, tão citada e tão importante na sua obra, em geral – ela aparece nas mais diversas formas: através de livros, textos, jornais e impressos filmados; inscrições nos mais diversos lugares (paredes, quadros-negros); textos escritos pelos mais diversos personagens, geralmente em folhas de cadernos; mais modernamente, inscrições eletrônicas, nos vídeos que realizou – desaparece quase completamente300 de Le mépris. Num filme que é, entre outras coisas, sobre um roteirista que vai escrever cenas para uma fita, não o vemos (a câmera de Godard não filma nenhum ato de

298 MOULLET. Fritz Lang, 1963. 299

Um pouco no espírito do que acontece em Pierrot le fou. Ver o capítulo 4 desta tese.

300 Na primeira parte, na Cinecità, vemos cartazes de quatro filmes na parede: Psicose (Alfred Hitchcock, 1960),

Hatari (Howard Hawks, 1962), Vanina Vanini (Roberto Rossellini, 1961) e Viver a Vida (Jean-Luc Godard, 1962). Na segunda parte, quando todos vão a um cinema de Roma, ver uma possível interprete para o papel de Nausica, que está fazendo um show no palco, na marquise do cinema o filme em exibição é Viagem à Itália (Roberto Rossellini, 1953).

escritura, como é comum em outros filmes seus) escrever nada, anotar nada. Como já foi dito, ele não escreve uma linha desse roteiro.

Como afirmou Ítalo Calvino, as palavras escritas (romance) e os fotogramas em movimento (cinema) têm em comum as imagens narrativas próprias da narração oral. Oralidade e imagem: a Odisséia e Le mépris são a prova mais evidente dessa verdade. A Grécia Clássica se encontra com a modernidade e o resultado é mutuamente esclarecedor e enriquecedor. Le mépris, uma obra caracteristicamente moderna, é, ao mesmo tempo, por tudo que foi dito, o mais clássico dos filmes de Jean-Luc Godard. E uma das traduções intersemióticas mais originais do clássico homérico: aqui, Homero foi respeitado, no essencial, na escritura, nos processos de composição e na concepção do mundo, quer dizer, foi realmente e de fato traduzido, transfigurado, transmutado. Em outras palavras, como sempre quis Haroldo de Campos, Le mépris é um dos mais contundentes exemplos de transcriação que a arte moderna pode apresentar.

Capítulo 3

Alphaville

Godard pensa que pode se apropriar de tudo, que temos o direito de nos apropriarmos de tudo, se transformarmos estas coisas.

Alain Bergala301

Literatura é tão coletiva como o inconsciente; autoria ou propriedade privada não devem ser respeitadas. Tudo está num livro só [...]

Norman O. Brown302

I. Considerações iniciais

Em toda a sua obra, de diversas maneiras, e usando diferentes estratégias, Jean-Luc Godard usou repetidamente procedimentos de apropriação, diálogo, comentário, glosa, paródia, talvez, até mesmo plágio. Em Alphaville (nono longa-metragem, realizado em 1965) não foi diferente: nesta obra, Godard usa uma grande quantidade de textos, principalmente literários, mas não somente. Como não poderia deixar de ser, o cinema também aparece. A primeira fala do filme, dita pela voz rouca e pausada de Alpha-60, o computador todo-poderoso de Alphaville, é exatamente um texto de Jorge Luis Borges, segundo parágrafo de seu ensaio “Formas de una

301 Entrevista ao autor, Paris, 06/12/2005. Revista Devires.

302 BROWN. Apocalypse and/or Metamorphosis, p. 21. “Literature is a collective as the unconscious; private

leyenda”. Esta frase, como veremos, introduz, justifica e comenta o filme com alguma exatidão. “Formas de una leyenda” foi publicado no livro Otras inquisiociones303, e Godard fez um uso liberal de outras colocações e textos deste livro, principalmente o ensaio “Nueva refutación del tiempo”. Borges vai ressoar ao longo de todo filme, nos diálogos dos personagens (principalmente Natacha von Braun) e nas falas e aulas de Alpha-60, no meio e no fim do filme: a idéia que o supercomputador faz do tempo é borgiana; por vezes, como veremos, ele usa Schopenhauer, via Borges. Início, meio, fim: quase que se poderia dizer que Alphaville é um longo comentário do livro Otras inquisiciones e, por extensão, da obra de Jorge Luis Borges. Ou, talvez, um diálogo com Borges, que ele já citara na abertura de Tempo de Guerra304, e que vai

usar novamente em Historia(s) do cinema?

O mesmo poderia ser dito sobre o poeta e a poesia de Paul Eluard. A capa de seu livro, Capitale de la douleur (1926), aparece em diferentes momentos; uma longa seqüência, já no final da fita, cita uma série de títulos de poemas deste livro; um destes poemas, “Nudité de la vérité”, aparece, filmado; nesta mesma seqüência, um poema é escandido por Natacha von Braun, fruto da reunião (feita por Godard) de vários versos de diferentes poemas do autor. Além do mais, esse livro, quer dizer, a poesia, o brincar e o jogar com as palavras, são usados pelo personagem principal, Lemmy Caution, para tentar fazer com que Natacha von Braun lembre-se de frases (palavras), cidades esquecidas e reprimidas em Alphaville (um estado totalitário, que proíbe algumas palavras regularmente, assim como as emoções associadas a essas palavras).

303 A tradução francesa, Enquêtes, é de 1957.

304 GODARD. Les Carabiniers, Pierrot le fou et les films “invisibles”, p. 11 (roteiro). 1963. O quinto longa-

metragem de Godard se abre com o seguinte texto de Borges: “Plus cela va, plus je vais vers la simplicité. J’utilise les métaphores les plus usées. Au fond, c’est cela qui est éternel: les étoiles ressemblent à des yeux, par exemple, où la mort est comme le sommeil”. “Quanto mais o tempo passa, mais eu vou em direção à simplicidade. Utilizo as metáforas mais usadas. No fundo, é isto que é eterno: as estrelas se parecem com os olhos, por exemplo, ou a morte é como o sono”. Comentário de Liandrat-Guigues/Leutrat: “É notável que a frase-epígrafe de Carabiniers não seja encontrável em Borges, ela parece ser uma interpretação condensada”. “Il est remarquable que la phrase en exergue des Carabiniers ne se trouve pas chez Borges dont elle semble proposer une interprétation condensée.” Godard atribui uma citação errônea a Borges, o criador do próprio conceito...

Diversos outros escritores (ou obras) comparecem, são citados e usados em Alphaville. É o caso, também, de Louis-Ferdinand Céline (e seu Voyage au bout de la nuit)305, Madame La

Fayette, Gustave Flaubert, Raymond Chandler, Arthur Schopenhauer, Blaise Pascal, Henri Bergson, etc. etc. As citações de frases e idéias borgianas são ditas pelo supercomputador sem que seu nome apareça, um procedimento que Godard vai usar cada vez mais na sua obra306; outras, como acontece com Capitale de la douleur, são claramente atribuídas a Paul Eluard. Alguns filmes são também lembrados: Nosferatu, de Murnau, e Le jour se lève, de Marcel Carné, e Ruby Gentry, de King Vidor. Alguns gêneros (literários e/ou cinematográficos) são usados (e subvertidos). Com relação a todas estas obras, estamos falando de comentário, diálogo, citação ou plágio? Ou poderíamos falar de dialogismo e de intertextualidade, conceitos que estavam sendo traduzidos (da obra de Mikhail Bakhtine) e/ou criados (por Julia Kristeva, para esclarecer exatamente a obra de Bakhtine) mais ou menos naquele momento da realização de Alphaville (1965), na França?