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A primeira vez que o livro Capitale de la douleur é filmado (indistintamente ainda: o nome, na capa, não aparece claramente) é no exato momento que Henri Dickson está morrendo. Antes que isto aconteça, ele, como colega de Lemmy Caution, tenta dar-lhe algumas informações úteis, que talvez somente ele possa dar: “Lemmy... consciência... consciência... Destruir Alpha-60 por ela mesma... ternura, ternura, salvar os que choram... Sim, é isso”419. Ao dizer estas duas últimas palavras (“é isso”), ele aponta para debaixo do travesseiro, onde está sua cabeça, como quem diz, “é isto que tenho a dizer”, mas também, “neste livro você encontrará os segredos que estou tentando te passar”. Lemmy Caution retira o livro do lugar em que ele está, e a partir deste momento ele o acompanhará em todo lugar.

No primeiro plano da seqüência seguinte, já dentro de um táxi, ele está com o livro aberto na frente de seu rosto, lendo-o, e podemos ler claramente a capa: Capitale de la douleur, de Paul Eluard. Que Alphaville é a capital da dor, já desconfiávamos, mas teremos certeza na seqüência seguinte, onde várias pessoas vão ser executadas, por agirem de maneira ilógica. Um destes

418 SCHNEIDER Ladrões de palavras, p. 59. 419 GODARD. Alphaville, 1965. Videolar.

homens, pouco antes de ser metralhado, no trampolim de uma piscina – depois que cai na piscina, ele é esfaqueado por nadadoras de maiô, que fazem desta execução um ritual, verdadeiro balé aquático, uma paródia do estilo Esther Williams – fala o começo de um poema de Eluard: “Basta avançar para viver, ir reto, na direção de quem se ama420”. Este intertexto se esclarece se o comparamos com o texto centralizador do filme: as imagens que Godard nos mostra dos trajetos, em Alphaville – Lemmy Caution andando pelos corredores do hotel, subindo as escadas do “Instituto de Semântica Geral” – são quase sempre circulares ou espirais: ora, o texto-poema de Eluard fala claramente de “ir reto, na direção de quem se ama”. O problema, então, é que em Alphaville não somente os trajetos são circulares, mas também não se conhece o amor, apenas a luxúria.

Isto é uma das coisas que Lemmy Caution vai aprender numa seqüência que se passa no seu quarto de hotel, exatamente no início do que é a terceira parte do filme. A parte desta seqüência que vai nos interessar se inicia quando Lemmy Caution mostra o livro (e a capa, que é filmada) de Capitale de la douleur, e pergunta “ouviu falar deste livro?421”; o plano seguinte é o de Natacha von Braun lendo o título do livro, alto; em seguida, ela olha para cima, para Lemmy Caution, em pé (ela está sentada na cama), e diz “não”, ao que ele diz: “Há palavras sublinhadas”. Natacha o abre e lê o que parece ser um poema do livro: “Vivemos no esquecimento de nossas metamorfoses. Mas o eco que soa o dia todo... este eco fora do tempo, de angústia ou carícia... Estamos perto ou longe de nossa consciência?422”.

420 Ibidem. Segundo Adrian Martin, no ensaio “Recital: three lyrical interludes in Godard”, que está no livro de

TEMPLE/WILIAMS/WITT (Edited by). For ever Godard, p. 264, trata-se do poema “La petite enfance de Dominique”, do livro Le phénix. Em francês, temos: “il suffit d’avancer pour vivre, d’aller droit devant soi vers tous ceux que l’on aime.”

421 GODARD. Alphaville, 1965. Videolar. As referências que farei em seguida aos diálogos e poemas, em português,

são citações das legendas desta cópia.

422 Na verdade, trata-se de uma condensação godardiana, de quatro versos, que ele extraiu do poema “Et notre

No diálogo que se segue entre Natacha e Lemmy, várias coisas vão se esclarecendo. Ela diz que existem palavras ali que ela não entende, o que não é nada estranho, na verdade, pois, como sabemos, em Alphaville algumas palavras são proibidas e somem do dicionário. Ao pronunciar a palavra consciência, Natacha mostra uma ligeira hesitação. Quando ela tenta procurar esta palavra, “consciência”, ela não a encontra, em nenhum dos dois dicionários disponíveis, um deles a última versão do dia, trazido por um garçom do hotel. Donde sua conclusão: “portanto, aqui ninguém mais sabe o que quer dizer a palavra consciência”.

Natacha diz também a Lemmy Caution que “tenho medo, pois conheço essa palavra, sem nunca tê-la visto ou lido”. Ele pergunta: “que palavra?”. Natacha: “o consciência”. Lemmy Caution: “a consciência” (como podemos ver, em Alphaville, assim como em toda a sua obra, Godard – e seus personagens, também – estão sempre atrás do sentido e significação das palavras). Do que ela tem medo, logo teremos uma idéia. Quando ela diz que existem palavras que ela não compreende, Lemmy Caution, com o livro na mão, lê alguns títulos de poemas para ela: “e isso: ‘A morte na conversação’, ‘Morrer de não morrer’, ‘Para cair na armadilha’, ‘Os homens que mudam’. Logo em seguida, ela lê mais um poema, seus dois versos iniciais, este sim de Capitale de la douleur: “Teus olhos vieram de um país arbitrário, onde ninguém jamais soube o que é um olhar423”. Quando ela lê este poema que fala de olhos e do olhar, é importante ressaltar a imagem que nos é mostrada: grande plano de Anna Karina; entre o primeiro e o segundo versos, e também no final do segundo, ela levanta os olhos (para olhar Lemmy Caution), e abre seus olhos enormes, interrogadores, visivelmente inseguros, mas parecendo no caminho de descobrir algo. Quando Lemmy lhe pergunta, depois desta leitura, “não sabe mesmo o que é?”,

tout le long du jour/Cet écho hors du temps d’angoisse ou de caresses/Sommes-nous près ou loin de notre conscience.” Citado em TEMPLE/WILLIAMS/WITT. For Ever Godard, p. 265.

423 ELUARD. Capitale de la douleur, pag. 51. “Tes yeux sont revenus d’un pays arbitraire/Où nul n’a jamais su ce

sua resposta é ambígua: “isso me lembra algo, mas não sei o quê”. A ambigüidade fica mais evidente no plano seguinte: enquanto na trilha sonora ouvimos sua voz em off, dizendo exatamente “mas não sei o quê”, a câmera passeia por um poema de Capitale de la douleur, por breves instantes, “Nudité de la vérité424”. O plano é tão curto que somente o título e a epígrafe inicial são legíveis: e esta última é exatamente “Je le sais bien425”. Embora ela continuamente fale da sua dúvida, do seu não conhecimento, ao jogar intertextualmente a epígrafe do poema com o diálogo do filme, a encenação godardiana mostra que Natacha von Braun “sabe” a “verdade”. Apenas não se lembra dela, ainda.

É a atuação de Lemmy Caution nesta seqüência que a ajuda a se lembrar de tudo. Ao fazê- la ler um livro de poesia, ele a faz ler palavras que ela acha que não conhece; na verdade, ele a faz relembrar de algumas palavras esquecidas; ao relembrar essas palavras, aos poucos, e com muita hesitação, parte do seu passado retorna, um pouco como o episódio da madeleine em À la recherche du temps perdu426. Assim como uma taça de chá e uma madalena fazem o Narrador se lembrar de todo o seu passado, a busca da palavra “consciência” (mas também a procura de outras palavras) faz Natacha se lembrar de toda a sua vida, de passar a ser outra pessoa, de desejar um outro universo. Lemmy Caution, ao usar a poesia com este objetivo, de fazer Natacha se lembrar, de transformar em dia o que até então era noite e esquecimento, faz lembrar o que Blanchot escreveu sobre o mito de Orfeu e Eurídice: “quando Orfeu desce em busca de Eurídice, a arte é a potência pela qual a noite se abre427”. Enquanto Orfeu, no mito grego, é músico/poeta e utiliza a música para tentar libertar Eurídice, Lemmy Caution, embora não seja um poeta, usa da

424 “Nudez da verdade”. 425 “Bem o sei”.

426 PROUST. À la recherche du temps perdu, pp. 44-47. Tradução brasileira: PROUST. Em busca do tempo perdido.

Volume I, No caminho de Swann, pp. 45-47.

poesia para conseguir fazê-la lembrar, isto é, libertar-se do “esquecimento” programado de Alphaville.

Lemmy Caution continua, no resto desta seqüência, a jogar com ela: lembrando palavras e frases e fazendo-a lembrar do passado através de palavras e frases; como ele diz, fazendo-a ficar atenta e se lembrar das “mensagens secretas” (uma fala eminentemente ambígua, pois ele está fazendo referência às “mensagens” da poesia, é claro, mas devemos nos lembrar, aqui, que ele é um agente secreto). Desta maneira, ficamos sabendo, aos poucos, por ela mesma, que ela nasceu nos “países exteriores” (em “Nueva York”). A partir desse momento, ela diz com toda certeza, pegando Capitale de la douleur, que

Sei que livro é esse. Quando chegamos de Nueva York, havia um senhor conosco [ela e o pai, Leonard Nosfératu]. Escrevia coisas assim. Não sei o que lhe aconteceu. Aqui vivem em bairros malditos. Acabam se matando. Às vezes, eu sei que Alpha-60 os utiliza [...] porque são pessoas que escrevem coisas incompreensíveis. Agora eu sei. Antigamente chamava-se “poesia”. Acredita-se que são segredos, mas no final não é nada. Quando o controle tem uma hora livre em seu programa, ele registra coisas assim. Ele classifica e codifica. Como tudo, nunca se sabe. [Lemmy Caution responde: sempre há utilidade] Absolutamente, somos muito organizados.

“Agora eu sei”: a partir daí, a lembrança de quem ela foi (e é), proporcionada pela lembrança de algumas palavras submergidas na sua memória, faz de Natacha uma outra pessoa. Logo em seguida ela manifesta um desejo: “queria ir com você aos países exteriores”. Mas ainda tem medo: “mas tenho medo. Desde que o vi, não sou mais normal”. Exatamente: quando ela diz “sei que livro é este”, a primeira frase do “Thème d’amour”, do filme, é ouvida. Godard nos indica, aqui, que ela começa a sentir algo, mas ainda não tem a “palavra” para este sentimento. Até o final, ela estará à procura desta palavra: quando estão fugindo de Alpha-60 e de Alphaville, e Natacha está algo prostrada (falta eletricidade, que parece ser o alimento principal dos

habitantes daquela cidade), Lemmy diz a ela: “pense na palavra amor”: e esta palavra, depois de alguns segundos, dá forças a Natacha, que se anima e mostra a ele o caminho.

Mais uma vez, Lemmy Caution vai, de alguma maneira, fazê-la lembrar. Quando ele diz estar apaixonado, ela pergunta do que se trata. Ele acaricia seus cabelos e seu corpo. Ela diz: “Isso eu sei o que é. É volúpia”. Caution responde: “Não, a volúpia é uma conseqüência. Ela não existe sem o amor”. A pergunta dela, “e o amor, o que é?” vai gerar uma seqüência onde a poesia, as palavras, a música, as imagens, o claro e o escuro, as evoluções corporais e a coreografia dos personagens, quer dizer, o cinema, chegam a uma síntese absolutamente reveladora.

A própria Natacha responde à pergunta que ela mesma fizera (“e o amor, o que é?”) com o que parece ser a leitura de um poema de Capitale de la douleur (quando ela termina de escandir esse poema, o plano imediatamente posterior é dela encostada nos vidros de uma janela, segurando exatamente este livro, o que reforça essa impressão). Na verdade, trata-se de um poema “escrito” e condensado pelo próprio Godard: para isto ele usou versos de toda a obra poética de Eluard. O poema é o seguinte:

Tua voz, teus olhos... tuas mãos, teus lábios, Nossos silêncios, nossas palavras... A luz que vai embora... A luz que volta... Um só sorriso por nós dois. Por necessidade de saber, vi a noite criar o dia... sem que mudássemos de aparências. Oh, bem amada de todos e bem-amada de um só... em silêncio sua boca promete ser feliz. Quanto mais longe, diz o ódio... quanto mais perto, diz o amor... Pela carícia, deixamos nossa infância. Vejo cada vez melhor a forma humana... como um diálogo de amantes. O coração tem uma só boca. Todas as coisas ao acaso. Todas as palavras ditas, impensadas. Os sentimentos à deriva. Os homens giram na cidade. O olhar, a palavra. E o fato que eu te amo. Tudo está em movimento. Basta avançar para viver. Seguir em linha reta, na direção de tudo o que amamos. Eu ia em sua direção. Eu ia na direção da luz. Se você sorri, é para melhor me invadir. Os raios de seus braços entreabrindo a névoa428.

428 Em francês, esta “construção” godardiana pode ser encontrada em TEMPLE/WILLIAMS/WITT. For Ever

Godard, p. 423. “Ta voix, tes yeux, tes mains, tes lèvres. Nos silences, nos paroles. La lumière qui s’en va, la lumière qui revient. Un seul sourire pour nous deux. Pas besoin de savoir. J’ai vu la nuit créer le jour sans que nous changions d’apparence. Ô bien aimée de tous, bien aimée d’un seul. En silence ta bouche a promis d’être heureuse. De loin en loin, dit la haine, de proche en proche dit l’amour. Par la caresse nous sortons de notre enfance. Je vois de mieux en mieux la forme humaine, comme un dialogue d’amoureux. Le coeur n’a qu’une seule bouche. Toutes les choses au hasard, tous les mots dits sans y penser. Les sentiments à la dérive. Les hommes tournent dans la ville. Les regards, la parole. Le fait que je t’aime, tout est en mouvement. Il suffit d’avancer pour vivre, d’aller droit devant soit

Dois minutos de poesia num filme de ficção, lançado comercialmente com algum sucesso: não foi pequeno o tour de force que Godard realizou aqui. Mas isto não é nada. A dificuldade está em descrever com palavras o que certamente usa palavras (e como!), mas também todos os outros recursos disponíveis no cinema: atores, seus gestos, sua coreografia (pois eles literalmente dançam, nesta seqüência, além de fazer toda uma coreografia corporal), música, iluminação (mais forte ou mais fraca, ora dirigida a um personagem, ora a outro), linguagem cinematográfica (os escurecimentos e os “fade in”) e enquadramentos (realçando detalhes – a boca, por exemplo, quando é dito “tua boca” ou gestos, os dois acariciando o rosto um do outro quando é dito que “pelas carícias, saímos de nossa infância”), as muitas correspondências (a luz gradualmente mais forte, que ilumina o rosto de Anna Karina, quando ela diz “vi a noite criar o dia”). O cinema, aqui, é palavra, imagem, música, dança, movimento, luz, gesto, olhar. Exatamente: vários temas retornam, e encontram nesta seqüência a sua perfeita definição e acabamento: os temas da luz que vai e volta, da noite e do dia, o olhar e a palavra, o silêncio e a palavra, o movimento, a linha reta, tudo se complementa em alguns versos que ela diz quase ao final do poema: “Tudo está em movimento. Basta avançar para viver. Seguir em linha reta, na direção de tudo que amamos. Eu ia em sua direção. Eu ia em direção da luz.” Neste poema, os temas são retomados e definidos: sim, Natacha está se movimentando diretamente em relação ao amor e à luz; sim, a partir deste momento ela está claramente em oposição a tudo que Alphaville representa: noite, escuridão,

vers tous ceux que l’on aime. J’allais vers toi. J’allais vers la lumière. Si tu souris, c’est pour mieux m’envahir. Les rayons de tes bras entrouvraient le brouillard.”

No quarto verso, fiz uma correção que achei que era devida: escrevi “nous deux” e não “nos deux”. Com relação à tradução, existe somente algumas poucas divergências: no quinto verso, em francês está escrito “pas besoin de savoir” (“não existe necessidade de saber”), enquanto na legenda temos “por necessidade de saber”. Como não tenho em mãos uma edição das poesias completas de Paul Eluard, fica difícil saber se ele escreveu “pas” ou “par”... Por outro lado, parece que Anna Karina, no filme, diz “par”. “Vers tous ceux que l’on aime”, que foi traduzido por “na direção de tudo que amamos”, eu traduziria como “na direção de todos os que amamos”. Além do mais, falta a tradução de “devant soi”, “diante de si”. “Entrouvraient” seria melhor traduzido por “entreabriam”, não “entreabrindo”.

esquecimento, desamor, tirania política. Exatamente como afirmou Marie-Claire Ropars- Wuilleumier: “[...] o poema de Eluard, muito longe de ser ilustrado, aparece recriado429”.

Ao final, alguns destes temas retornam, em imagens e palavras. No Ford Galaxy, Natacha é impedida de olhar para trás por Lemmy Caution, como Orfeu no mito grego (Orfeu e Eurídice) e na narrativa bíblica (Lot e sua mulher). As luzes iluminam os fugitivos e os vidros do carro. Natacha diz a ele: “está me olhando de uma maneira estranha. Parece que espera que eu diga algo”. Às suas duas frases, ele responde “sim”. Ela retruca: “não sei o que dizer. São palavras que eu não conheço. Não me ensinaram. Ajude-me.” Caution: “Impossível, princesa. Deve chegar aí sozinha, e será salva. Senão estará perdida, como os mortos de Alphaville”.

Mais uma vez, a última no filme, Natacha é obrigada a se lembrar de algumas palavras. Durante toda a fita ela caminhou para esse conhecimento, mas ainda não o adquiriu de todo. Em vários momentos da fita, ela sente algo, mas não sabe que nome dar a esse sentimento, qual palavra usar, e sente medo. Ela não consegue ainda ligar as palavras às coisas com segurança. Num esforço enorme, hesitantemente, ela consegue aos poucos articular essas palavras. Ela é desencantada como num conto de fadas: a última fala dela, e do filme, é “eu te amo”; esta frase, ela diz gaguejando, levando algum tempo para articulá-la, como se fosse uma criança aprendendo a falar. Quando ela termina de dizer, seu rosto é o de uma pessoa que descobriu o mundo, ao descobrir os sentimentos que existem nele e as palavras que os descrevem. Com a fala reconquistada e com as palavras finalmente articuladas e liberadas, Alphaville chega ao fim, numa afirmação absolutamente sem ambigüidade, algo totalmente incomum na obra de Jean-Luc Godard.

429 [...] le poème d’Éluard, bien loin d’être illustré, apparait recrée. ROPARS-WUILLEUMIER. L’écran de la

Capítulo 4

Pierrot le fou

Ele cita um pouco Rimbaud em Pierrot le fou, mas, no final das contas, Rimbaud é ele. Ele tem menos necessidade da poesia, pois a poesia é ele.

Alain Bergala430

(...) você me fala com as palavras e eu te olho com os sentimentos.

Jean-Luc Godard, Pierrot le fou431

A tela é uma página múltipla e que engendra outras páginas: muro, coluna, marco. Imenso e único lenço, sobre o qual poderia escrever-se um texto...

Octavio Paz, El signo y el garabato432

430 Entrevista ao autor, Paris, 06/12/2005. Revista Devires, número 4, 2007.

431 GODARD. Pierrot le fou, p. 89. A maior parte, ou quase todas as citações que farei deste filme extrairei do

roteiro completo do filme, publicado por L’Avant-Scène, número 171/172. Ver GODARD. Spécial Godard: Les

carabiniers, Pierrot le fou et films “invisibles”, p. 89. Roteiro completo (1976), extraído e estabelecido depois da montagem defintiva do filme (1976). No entanto, existem algumas discordâncias em alguns diálogos, entre esta versão do roteiro e o que escutei desses mesmos diálogos. Em todos os casos, indicarei qual éa divergência. A cópia que usei para analisar o filme é uma cópia vídeo, americana, com legendas em inglês, de Image Entertainment TM Inc., gravada de um Laser Disc.

432 “La pantalla es una página múlplice y que engendra otras páginas: muro, columna o estela. Inmenso lienzo único

I. Considerações preliminares

Pode-se dizer que a primeira “imagem”433 de O demonio das onze horas434 (1965) – décimo longa-metragem de Jean-Luc Godard – é a de vogais e consoantes (letras, na verdade), que aparecem num ritmo regular, na ordem alfabética, sobre um fundo negro, até compor as

palavras que integram os créditos. Neste plano, que dura um minuto e três segundos, os créditos

vão aparecendo em sete linhas sucessivas e verticais, que poderiam ser aproximadas aos “versos” de um poema, até que possamos ler o seguinte:

JEAN-PAUL BELMONDO ET ANNA KARINA DANS PIERROT LE FOU UN FILM DE JEAN-LUC GODARD

Todas as palavras desses créditos aparecem na cor vermelha, exceto “Pierrot le fou”, em azul: primeira aproximação com o poema “Vogais”, onde Rimbaud, onde dá cores a essas letras (haverá outras, no filme, como descreveremos em seguida). No final deste plano, todas as palavras desaparecem, exceto o título. Esse último desaparece também, restando somente as duas