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Intertextualidade, citação, plágio, paródia e polifonia em Pierrot le fou

Praticamente em toda a sua obra, em geral, e em Alphaville, em particular, Godard, em Pierrot le fou também usa bastante da intertextualidade, da citação, do plágio e da paródia. Existe, portanto, a presença estruturante de algumas artes e linguagens, (literatura, pintura, cinema e música, principalmente, mas também as histórias em quadrinhos, o rádio, o jornalismo e a propaganda). O uso que ele faz de cada uma destas artes ou técnicas e meios de comunicação é extremamente variado e polifônico.

A literatura aparece de forma múltipla. Por exemplo: frases escritas pelo personagem Ferdinand no seu diário e que tratam, quase sempre, da literatura ou da escritura. A primeira de suas anotações registra exatamente sua decisão de escrever um diário: “Terça-feira: decidi

500

PERLOFF. Radical artifice, p. xiii. “The importance of Cage for postmodern poetics cannot be overestimated, for it was Cage who understood, at least as early as the fifties, that from now on poetry would have to position itself, not vis-à-vis the landscape or the city or this or that political event, but in relation to the media that, like it or not, occupy an increasingly large part of our verbal, visual, and accoustic space.”

501 Citado em PERLOFF. Radical artifice, p. xiv. “Interpenetration and nonobstruction”, “situation of decentering” ,

escrever meu diário502”. Logo em seguida, ele anota: “qual é o ser vivo que, face à natureza, não acredita na força de descrevê-lo através da linguagem...503” No plano anterior da sua mão escrevendo num caderno estas frases, vemos Ferdinand sentado, em frente ao mar, com um papagaio no espaldar da cadeira onde ele está. Passarinhos cantam. Ele tira os olhos do que está escrevendo e vê Marianne saindo do mar, com uma vara, e um peixe atravessado nela. Enquanto escreve as frases citadas acima, os passarinhos continuam a cantar. Através do intertexto, imagético e sonoro, é possível dizer que o personagem está provavelmente pensando e escrevendo uma literatura mimética, que descreva a si próprio e à natureza, e/ou a sua relação com ela; o próprio excesso no intertexto “mimético” sugere uma ironia do diretor em relação a esta possibilidade.

Noutro momento, ele escreve que “a linguagem poética surge das ruínas504”. Só vemos sua mão com a caneta e sons do mar. Numa outra anotação, lemos que “o escritor escolhe apelar para a liberdade dos outros homens505”. Aqui, enquanto ele escreve, somente ouvimos as ondas do mar; no plano seguinte, vemos Marianne correndo, até chegar perto de Ferdinand, que pergunta a ela se havia conseguido os livros que havia pedido. Ela diz que sim e que o autor tem o nome dele; na continuação desta sequência, entregará um livro de Louis-Ferdinand Céline para ele, que o lerá e, posteriormente, ela também: trata-se de Guignol’s Band. A leitura destas passagens, pelos dois personagens, vai proporcionar a possibilidade de repetir o que estão lendo (Ferdinand acaricia os cabelos de Marianne, exatamente como no texto que lê) e, portanto, que

502 “Mardi. J’ai décidé d’écrire mon journal.” GODARD. Spécial Godard: Les Carabiniers, Pierrot le fou et films

“invisibles”, p. 88

503

“Quel est l’être vivant qui, face à la nature, ne croit la force de le décrire par le langage...” Ibidem, p. 88.

504 “le langage poétique surgit des ...uine”504 (talvez ruines? O enquadramento da mão de Ferdinand e do papel no

qual ele escreve não permite ver mais do que isto). GODARD. Spécial Godard: Les Carabiniers, Pierrot le fou et

films “invisibles”, p. 88 .

505 Tradução provável (mais uma vez, não vemos todas as palavras, claramente) de: “...écrivain choisit d’en app...

expressem o que estão sentindo (Marianne lê uma passagem em que a personagem cobra o que foi prometido a ela. Estaria ela fazendo o mesmo?).

Em várias partes do filme, Ferdinand e Marianne dizem um para o outro, ou para nós, espectadores (são muitos os momentos em que Ferdinand e Marianne, encarando frontalmente a câmera, nos tomam a nós, espectadores, como testemunhas), como uma frase de Marianne, “nunca perguntar o que vem primeiro, as palavras ou as coisas, e o que virá em seguida506”; citações as mais diversas de escritores e poetas (os nomes são legião, a maior parte deles ligados ao romance – ou à ficção; alguns poetas também comparecem, sem esquecer que vários escritores mais conhecidos pelos seus romances ou contos, também escreveram poesia: James Joyce, Honoré de Balzac, Charles Baudelaire, Marcel Proust, F. Scott Fitzgerald, Edgar Allan Poe, Jules Verne, Louis Ferdinand Céline, Robert Browning, Georges Bataille, William Faulkner, Joseph Conrad, Robert Louis Stevenson, Jack London, Federico García Lorca, Raymond Chandler e Élie Faure). Mas eles não são meros nomes burocraticamente citados e listados: ressoam poeticamente na estrutura do filme, entrando sempre em situação, dando sentido às experiências que os personagens estão vivendo. Em Pierrot le fou, por exemplo, para caracterizar como se move a narrativa na terceira parte do filme, quando eles vão executar uma ação complicada, que inclui a morte de vários gângsteres, Ferdinand e Marianne nos dizem que, na ação daquela seqüência, “existe um pequeno porto, como nos romances de Conrad” (Ferdinand)507; “um barco à vela, como nos romances de Stevenson” (Marianne)508; “um velho bordel, como nos romances de

Faulkner” (Ferdinand)509; “um cara que ficou bilionário, como num romance de Jack London”

506 Ibidem, p. 84. “Ne jamais demander ce qui fut d’abord, les mots ou les choses, et ce qui viendra ensuite.”

Prefiguração de “Les mots et les choses”, de Michel Foucault, que é de 1966? (Pierrot le fou foi filmado em 1965). É bom lembrar que Pierrot começa com uma longa citação de Élie Faure analisando Velásquez; o livro de Foucault começa com uma análise de um quadro deste pintor espanhol, “Las Meninas”.

507 “Y a un petit port, comme dans les romans de Conrad.” Ibidem, p. 101. 508 “Un bateau à voile, comme dans les romans de Stevenson.” Ibidem, p. 101. 509 “Un ancien bordel, comme dans les romans de Faulkner.” Ibidem, p. 101.

(Marianne)510; “existem muitos acontecimentos juntos; dois caras que quebraram meu rosto, como num romance de Raymond Chandler” (Ferdinand)511. Os nomes dos autores e os detalhes citados de suas obras acrescentam detalhes concretos, presentes, na sua maior parte, nas imagens correspondentes do filme (um porto, um barco, o que poderia ser um milionário, etc.), e mudam ou confirmam a ação que está acontecendo.

Vários títulos de romances são citados de maneira indireta: Voyage au bout de la nuit512, por exemplo, escandido como um diálogo, por Ferdinand e Marianne. Algumas siglas, palavras ou frases aparecem escritas em muros, ou imóveis (TOTAL513, SS514, Danger de Mort515);

Em vários momentos, algumas idéias para romances são articuladas pelos personagens. Por exemplo, quando Marianne diz para Ferdinand: “sabe o que você deveria escrever como romance? (...) Alguém passeia por Paris, e de repente vê a morte. Então, ele parte rapidamente para o sul para evitar o encontro com ela, pois acha que não é ainda a sua hora. (...) E então dirige com toda rapidez, toda a noite, e chegando de manhã perto do mar, ele bate num caminhão e morre, exatamente no momento em que acreditava ter escapado da morte516”. No plano anterior a esta idéia de romance, Marianne vê um anão que a persegue e provavelmente fica com medo de morrer (na verdade, duas seqüências depois, parece que ela o matou). No plano imediatamente

510 “Un type qui est devenu milliardaire, comme dans les romans de Jack London.” Ibidem, p. 101.

511 “Y a trop d’événements à la fois; y a deux tipes qui m’ont cassé la figure, comme dans un roman de Raymond

Chandler.” Ibidem, p. 102.

512 Ibidem, p. 86. Num diàlogo em off, Marianne diz a Ferdinand: “En tout cas tu m’as dit qu’on irait jusqu’au bout.

Ferdinand responde: “Au bout de la nuit, oui.” “em todo caso, você disse que iríamos até o fim”. “até o fim da noite, sim”. Quando Ferdinand responde, o plano escurece um pouco; no plano seguinte, já é noite, e os dois estão deitados na praia, enroscados um no outro. A versão do roteiro completo é diferente. Marianne: “De toute façon, tu m’as dit qu’on verrait à la fin du voyage.” Ferdinand: “Oui. Le Voyage au Bout de la Nuit.” Me parece que minha citação está correta, no entanto.

513 Ibidem, p. 80. Logo depois de mostrar esta palavra, que é o nome de um posto de gasolina, tanto Marianne como

Ferdinand recitam-na, acrescentando, Tendre est la nuit (Ferdinand), e “c’était um roman d’amour” (Marianne, “isso era um romance de amor”). Eles estão falando de Suave é a noite (Tender is the night), de F. Scott Fitzgerald.

514

Ibidem, p. 92.

515 “Perigo de Morte.” Ibidem, p. 94.

516 “Tu sais ce que tu devrais écrire comme roman? (...) Quelqu’un qui se promène dans Paris, et tout d’un coup il

voit la mort. Alors, il part tout de suite dans le Midi pour éviter de la rencontrer, parce qu’il trouve que ce n’est pas encore son heure. (...) Et alors, il roule toute la nuit à toute vitesse, et en arrivant le matin au bord de la mer, il rentre dans un camion, et il meurt, juste au moment où il croyait que la mort avait perdu son trace.” Ibidem, p. 94.

posterior, vemos um aviso na praia, “perigo de morte”: Pierrot e Marianne passam por ele, igualmente. Será esta idéia de romance simplesmente uma projeção, uma antecipação de uma situação que ela está vivendo naquele instante? Num outro momento, ao ouvir uma notícia de rádio sobre a guerra do Vietnã, que fala de 115 vietcongs mortos, Marianne comenta que não se sabe nada deles, eles são absolutamente anônimos, e completa: “o que é triste, é que a vida e o romance são diferentes. Gostaria que eles fossem parecidos, tudo claro, lógico, organizado, mas não são517”.

Até mesmo poemas são escritos pelos personagens (ver abaixo). Pouco depois que Marianne encontra o anão, e que ela e Ferdinand passam pela placa “perigo de morte”, uma seqüência se organiza com várias referências literárias e poéticas. Como escreveram Guigues/Leutrat, toda uma seqüência “é construída sobre a frase de Paul Valéry que coloca o problema da narração romanesca: “a marquesa saiu às cinco horas518”. Pouco depois de encontrar o anão e passar pela placa “perigo de morte”, Marianne canta “tudo vai muito mal, senhora

marquesa519”. O bar para o qual Ferdinand se dirige, em seguida, se chama “Bar Dancing de la

Marquise”. Marianne diz para ele, pouco antes de sair com o anão, que eles se verão daí a cinco

minutos. Na seqüência seguinte, ouvimos a voz de Pierrot escandir o poema de Federico Garcia Lorca “O sangue, não quero vê-lo. Ah, que terríveis cinco horas da tarde520”. Embora em off Ferdinand diga que não quer ver o sangue, a imagem que “ilustra” este poema é o personagem

517 “Ce qui me rend triste, c’est que la vie et le roman c’est différent. Je voudrais que ce soit pareil, clair, logique,

organisé, mais ça ne l’est pas.” Ibidem, p. 76.

518 “(...) est construite sur la frase de Paul Valéry qui pose le problème de la narration romanesque: “La marquise

sortit à cinq heures”. GUIGUES/LEUTRAT. GODARD, simple comme bonjour, p. 76.

519 “Tout va très mal, madame la marquise.” Ibidem, p. 76. GUIGUES/LEUTRAT não colocam na sua citação a

palavra “madame”. Embora neste momento existam vários sons se sobrepondo, como é comum em Godard, acho que ela canta a palavra “madame”. O roteiro do filme simplesmente não registra esta passagem, muito provavelmente pela sobreposição de sons.

dirigindo-se e sentando-se em uma linha de trem de ferro. Ouvimos vários apitos, fortes. Somente no último minuto, ele foge do trem.

No final do filme, com uma fileira de bananas de dinamite enroladas em seu rosto, quando ele acende a mecha, pouco depois ele se arrepende e tenta apagá-la com as mãos e não consegue. Acontece a explosão e ele é reduzido a pedaços, mas um momento antes, houve a dúvida, vontade de continuar vivendo, como na cena do trem. Numa outra seqüência, ele anota no seu caderno que “o erotismo (...) é a aprovação da vida, até mesmo na morte521”. No final deste plano, depois de tê-la escrito, ele risca a palavra “mort”: ainda aqui, podemos observar sua dúvida e ambigüidade quanto à palavra morte, mas também quanto ao fato (realidade) do morrer. Que, pode-se dizer, é também observável num resumo que Ferdinand faz do conto de Poe, “William Wilson”: “Ele encontrou seu duplo na rua. Ele o procurou em todos os lugares para matá-lo. Uma vez que conseguiu, percebeu que tinha sido a ele próprio que ele havia matado, e o que restava, era seu duplo522”. Quanto ao seu duplo, Ferdinand é chamado a todo o momento de “Pierrot”, por Marianne. Estamos diante de uma aprovação da vida, mesmo na morte?

A literatura, isto é, a palavra, em Pierrot le fou, é portando lida, falada, recitada, filmada, escrita, criada, recriada (ver abaixo), dialogada. É bom ressaltar, desde já, que a poesia não é apenas escrita ou citada, ela é dita, falada, recitada, escandida, salmodiada. Como chamou a atenção Octavio Paz, aqui a poesia volta aos seus começos:

Vale a pena deter-se na utilização dos novos meios de comunicação na transmissão da poesia. Essas mídias fazem possível, como todos sabemos, a volta da poesia oral, a combinação da palavra escrita e falada, o regresso da

521 GODARD. Spécial Godard: Les Carabiniers, Pierrot le fou et films “invisibles”, p. 90. “L´érotisme (...) il est

l’approbation de la vie jus... ...ns la mort”. Mais uma vez, devido ao enquadramento, algumas palavras só podemos ler pela metade. É bom notar que Ferdinand risca a palavra “mort”, no final deste plano. Esta frase é, aliás, uma citação: “Puede decirse del erotismo que es la aprobación da la vida hasta en la muerte”. BATAILLE. El erotismo, p. 23

522 “Il avait croisé son double dans la rue. Il l’a cherché partout pour le tuer. Une fois que ça a été fait, il s’est aperçu

que c’était lui-même qu’il avait tué, et que ce qui restait, c’était son double.” GODARD. Spécial Godard: Les

poesia como festa, cerimônia, jogo e ato coletivo. Em sua origem, a poesia foi palavra falada e ouvida por uma coletividade. (...) Agora voltamos outra vez à palavra falada...523 [...] A técnica muda a poesia e a mudará mais e mais. Não

poderia ser de outro modo [...] Mas essas mudanças, por mais profundas que pareçam, não a desnaturalizam. Ao contrário, devolvem-na à sua origem, ao que foi no princípio: palavra falada, compartilhada por um grupo524.

Pode-se dizer que o uso da literatura, no filme, é realizado de uma maneira decididamente polifônica na obra de Godard: são muitos os textos literários que entram na composição de suas fitas. E esses textos não somente entram em diálogo intertextual com as imagens que os “ilustram” como também dialogam com outros textos do filme e outras imagens, criando assim toda uma ambigüidade de sentido. Uma seqüência pode descrever o perigo que correm Marianne e Pierrot, o que eles fazem, como reagem, mas por outro lado, para chegar aí, Godard realiza toda uma polifonia de textos, que só fazem sentido se confrontados uns aos outros; mas eles se criticam uns aos outros, uma das características da lírica moderna.

Mas não é somente a literatura que entra neste concerto. Os personagens cantam, além de alguns diálogos (Marie-Claire Ropars-Wuilleumier escreveu que “o novo cinema fez da palavra um objeto poético, musical ou sonoro525”) as palavras de pelo menos duas canções (e dançam, também: “Minha linha da sorte526” e “Nunca te disse que te amarei sempre527”). Ferdinand, logo no início do filme, fala da Quinta Sinfonia, de Beethoven (que logo aparece na trilha sonora); Raymond Devos interpreta e canta um número musical cuja letra tem ligações claras com a

523 PAZ. El signo y el garabato, p. 17. “[...] vale la pena detener-se en la utilización de los nuevos medios de

comunicación en la transmissión de la poesía. Esos medios hacen posible, como todos sabemos, la vuelta a la poesía oral, la combinación de palabra escrita y palabra hablada, el regreso de la poesía como fiesta, ceremonia, juego y acto coletivo. En su origen la poesía fue palabra hablada y oída por una colectividad. [...] Ahora volvemos outra vez a la palabra hablada...”

524 PAZ. El signo y el garabato, p. 19. “[...] la técnica cambia a la poesía y la cambiará más y más. No podía ser de

otro modo [...] Pero esos cambios, por más profundos que nos parezcan, no la desnaturalizan. Al contrario, la devuelven a su origen, a lo que fue al principio: palabra hablada, compartida por un grupo.”

525 “Le nouveau cinéma a fait de la parole um objet poétique, musical ou sonore.” ROPARS-WUILLEUMIER.

L’écran de la mémoire, p. 14.

526 “Ma ligne de chance.” GODARD. Spécial Godard: Les Carabiniers, Pierrot le fou, et films “invisibles”, p. 93. 527 “Jamais je ne t’ai dit que je t’aimerai toujours.” Ibidem, p. 78.

aventura de Ferdinand e Marianne (“Você me ama? Ela me disse: não!528”) além, é claro, da belíssima música do filme, composta por Antoine Duhamel. Os personagens muitas vezes ouvem rádio, que não por acaso fala da Guerra do Vietnã (o filme foi realizado em 1965) assim como o cinema (um jornal de atualidades que Ferdinand vê numa sessão de cinema). A televisão, ao contrário, está ausente de Pierrot le fou, embora o personagem Ferdinand, no início do filme, diga ter trabalhado nesta mídia e ter pedido demissão: parece que essa movimentação foi recente, pois na primeira seqüência ele vai a uma festa e seu sogro o apresentará a possíveis empregadores (é sua esposa quem o diz). Como ele sai rapidamente dessa festa, este contacto não é mostrado. Mas é sintomático – em relação à obra de Godard – que o personagem principal tenha abandonado seu trabalho na televisão voluntariamente: neste momento (1965) Godard ainda não tinha trabalhado com a televisão; a visão que ele tem da mídia é somente crítica, embora até mesmo antes desta data ele tenha manifestado, em entrevistas, o desejo de trabalhar na televisão, com noticiários (esse interesse godardiano está ligado ao seu amor pelo documentário, no cinema, um amor aprendido com seus mestres, André Bazin e Roberto Rossellini).

O cinema como linguagem, é claro, está onipresente no filme. Samuel Fuller nos dá uma definição concisa do que ele é, logo no começo (“um filme é como um campo batalha. Amor, ódio, ação, violência e morte. Numa palavra, emoção529”); o trecho de um curta de Godard (Le grand escroc) é exibido na mesma sessão em que Ferdinand vê o jornal de atualidades; vários filmes são citados através das ações dos personagens (um exemplo: quando Ferdinand joga o carro que está dirigindo no rio Loire, o diretor está lembrando Ruby Gentry, de King Vidor);

528 “Est-ce que vous m’aimez?” Et elle m’avait dit “Non!”. Ibidem, p. 106. De uma certa maneira, Pierrot le fou pode

ser classificado, entre outras coisas, como um filme musical, não só pelos números musicais cantados, dançados e interpretados, mas também pela musicalidade da trilha sonora falada.

529 “A film is like a battleground; Love... Hate... Action... Violence... and Death. In one word, emotion.” Ibidem, p.

75. O cinema, aqui, é definido e explicado por uma série de palavras. E por um cineasta (muito apreciado por JLG e pela “gang Schérer”, que escreveu sobre ele, o entrevistou e o defendeu repetidas vezes, nos “Cahiers du Cinéma”) e roteirista que, antes de fazer cinema, escreveu alguns livros policiais.

outros, são citados nominalmente, através de diálogos, como Johnny Guitar530 e Pépé le Moko531; cineastas, todos eles, líricos e modernos, como também Kenji Mizoguchi; este último está presente na belíssima seqüência final de Pierrot le fou, na panorâmica que liga o mar, o sol e um poema de Rimbaud (“A etrernidade”), sussurrado pelas vozes dos dois amantes, Ferdinand e Marianne, já então mortos. Em Contos da lua vaga, pálida e misteriosa depois da chuva, Mizoguchi, também na seqüência final, nos mostrava o diálogo, realisticamente improvável, mas poeticamente perfeito, entre o marido (vivo) e sua mulher, já morta, um fantasma, portanto; num primeiro momento, ela recebe-o na casa deles, e Genjuro pensa que ela está viva; no dia seguinte, ele conversa com ela, ajoelhado diante da sepultura dela: somente ouvimos sua voz e a de Genjuro. Godard certamente pensou em Mizoguchi532, quando articulou a narração falada de Pierrot: os dois amantes, já mortos, é que escandem essa narrativa.

Vários são os momentos em que os personagens assumem suas personae de atores, e se dirigem ao público (em um desses diálogos, Ferdinand, que está dirigindo um carro, vira-se – a câmera está colocada atrás dele – e se dirige a nós, espectadores; Marianne pergunta com quem ele está falando, e ele responde: “ao espectador!533”. Ela também olha para trás.

A pintura, como sempre em sua obra, tem um lugar especial: Marie-Claire Ropars-