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Situação de base semelhante (roteirista, sua mulher, produtor, diretor que discutem uma possível adaptação da Odisséia) e mesmo alguns discursos de personagens adaptados tal e qual, no filme: num primeiro momento, parece que Il disprezzo seria praticamente a mesma obra que Le mépris. Tão logo afirmamos isso, nos damos conta das diferenças do que parece o mesmo, isto é, da tradução intersemiótica: a nacionalidade dos personagens; as posições que adotam quanto ao tipo de adaptação que querem fazer da Odisséia; e o fato, de grande importância, que no filme não se fala de uma hipótese de “interpretação” da Odisséia: a de que os pretendentes estavam em Ítaca antes da partida de Ulisses, e que este teria aconselhado a Penélope a não “desgostar” os pretendentes: em Le mépris, a hipótese de interpretação é que Penélope foi infiel (ou que não ama o marido); não se discute “quando”; e essa hipótese é do produtor (até quase o final, apoiado pelo roteirista, mas com uma pequena diferença, como se viu). Mas aparecem outras diferenças: a secretária do produtor, que não existe no romance de Moravia; e uma diferença no tempo da narração, que é radical. No romance, o trabalho do roteirista com o produtor, e as situações em que Emília, sua mulher, começa a desconfiar que ele deseja que ela se entregue ao produtor, duram alguns meses, ou algumas semanas; no filme, toda a ação se passa em dois dias. Concentração do tempo e do espaço: a ação, no filme, se passa na Cinecitá (estúdio), casa de Prokosch em Roma (primeira parte), apartamento de Paul e Camille (segunda parte, com uma ocasional e pequena ida a um cinema nesta segunda parte) e Capri (terceira parte); não existe, no romance, o que chamei de concentração temporal (da ação), nem mesmo de espaço.

A “inscrição da diferença no mesmo” (conforme a fórmula de Haroldo de Campos para a tradução, algo extensivo à adaptação, como vimos) continua em outras instâncias, na relação romance-filme. No romance de Moravia, existem apenas as discussões que precedem a escritura do roteiro; nem uma linha deste chega a ser escrita, ao que tudo indica. Na fita de Godard, um filme já está sendo feito, por Fritz Lang; o produtor, Jeremy Prokosch, insatisfeito, quer acrescentar algumas cenas, mudar o roteiro e, portanto, o filme. Qual é a concepção exata de Lang quanto à adaptação que está fazendo? O que podemos nós, espectadores da obra de Godard, depreender do que Lang estaria fazendo no seu filme, através das poucas evidências que temos?

Embora Lang queira fazer um filme o mais próximo possível de Homero – ele diz, num diálogo que “acho idiota transformar o personagem de Ulisses. Ele não é um neurótico moderno, ele era um homem simples, astucioso e ousado234” – o filme que ele está fazendo, a julgar por dois detalhes, não segue exatamente a epopéia grega original. O último plano que Lang filma, no fim de O desprezo, é uma situação que não existe na Odisséia, “o primeiro olhar de Ulisses quando ele revê sua pátria”, principalmente como é encenado: de um ponto no mar (de um navio ou ilha), ele vê Ítaca (parece que esta é a idéia do plano). Ora, quando Odisseu chega em Ítaca, trazido pelos féaces, ele está dormindo; quando acorda, não reconhece sua pátria: “...o ilustre Ulisses despertou do sono, em sua terra natal, sem que todavia a reconhecesse. [...] Mas chorava pela pátria, arrastando-se ao longo da praia do rumoroso mar235”. Ele simplesmente não está acordado para testemunhar sua própria chegada ao seu reino.

Numa outra passagem, parece que a Penélope do filme de Lang testemunha a matança dos pretendentes: ela vê Odisseu lançar uma flecha que atravessa a garganta de um deles. Descrição de Homero: “Ulisses disparou e a flecha feriu Antino na garganta, e a ponta se lhe cravou no

234 GODARD. Le mépris, p. 72. “Moi, je trouve idiot de transformer le personage d´Ulysse. Ce n´est pas un nevrosé

moderne, c’était un homme simple, astucieux et hardi.”

delicado pescoço236”. Detalhe: enquanto ocorre a matança dos pretendentes, Penélope está dormindo, na Odisséia homérica. Duas modificações importantes, mas como escreveu o ensaísta inglês Robin Wood, falando de uma outra adaptação “o diretor tem o direito de usar o que quiser do romance, seja de Mickey Spillane ou Tolstoy, e fazer dele o que lhe interessar237”: é exatamente o que Lang faz na ficção que é seu filme, e do qual só temos alguns poucos detalhes e algumas intenções.

Quanto às intenções, logo no início do filme de Godard, quando o diretor, o roteirista e o produtor estão vendo o copião, alguns dos planos já rodados da fita, Fritz Lang comenta: “Aqui temos a luta dos indivíduos contra as circunstâncias, o eterno problema dos velhos gregos. [...] É a luta contra os deuses, a luta de Prometeu e Ulisses238”. Aqui, muito claramente, Lang aproxima Odisseu de Prometeu; esse último se rebelou contra os deuses, roubando o fogo para dá-lo aos homens, e padece um suplício eterno, imposto por esses mesmos deuses.

Rigorosamente falando, este não é o Odisseu de Homero. Embora perseguido por Posídon, ele é amado por Palas Atena. Nestor, no canto III da Odisséia, dirá a Telêmaco:

Oxalá Atena de olhos brilhantes te dispensasse o mesmo amor e desvelo que concedeu ao glorioso Ulisses, no país dos troianos, onde nós, os Aqueus, sofríamos privações. Pois nunca vi que os deuses amassem alguém de modo tão manifesto, como Palas Atena o protegia239

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O próprio Zeus, influenciado por Atena, o protege. Seria preciso reconhecer, também, que ele é bastante piedoso, obedecendo sempre a todos os rituais e oferecendo todas as libações, sacrifícios e hecatombes que são necessárias para propiciar os deuses. Numa de suas aventuras,

236 Ibidem, p. 197.

237 WOOD. The wings of the dove, p. 8. “The film-maker has every right to take what s/he wants from a novel (be it

Mickey Spillane or Tolstoy) and make of it whatever suits her or his interests.”

238 GODARD. Le mépris, p. 21. “Here it’s the fight of individuals against circumstances, the eternal problem of the

old Greeks. It’s the fight against the gods, the fight of Prometheus and Ulysses.” Nessa passagem, o roteiro está em desacordo com o que ouvimos no filme, no que se refere a uma palavra: Fritz Lang diz eternal, o roteiro registra

total. Registrei o que ouvi no filme, nessa instância.

ele obedece às injunções dos deuses, e sai ileso; todos os seus companheiros de viagem, que ainda estão com ele, não obedecem ao aviso dos deuses, comem do gado do sol, e morrem todos. Nisto ele representa adequadamente os gregos antigos. O filho de Nestor, Pisístrato, reconhecendo a necessária relação, para os gregos, entre os homens e os deuses, dirá ao filho de Odisseu, Telêmaco, que “todos os homens têm necessidade dos deuses240”; nos momentos em que teve necessidade de ajuda, Atena sempre aparecia para ajudar Odisseu. Ele luta realmente contra um deus, Posídon, mas é amado por outros, e favorecido por praticamente todos eles.

No livro de Moravia, Rheingold – como pensa e discorre Ricardo Molteni – teria uma concepção psicológica que tornava os deuses “desnecessários”, pois a

psicologia, como é óbvio, exclui manifestamente a fatalidade e as intervenções divinas; no melhor dos casos situa o destino no fundo da alma humana, nos recessos obscuros do subconsciente. Supérfluos, portanto, estes deuses, não espetaculares, nem psicológicos...241

Numa discussão anterior, no filme, com o produtor, Fritz Lang havia dito para aquele: “os deuses não criaram o homem, o homem criou os deuses242”. Os deuses “desnecessários”, para o diretor do romance, criados pelos homens, para o diretor do filme: mais uma pequena “inscrição da diferença no mesmo”. Que ficará mais clara logo em seguida, quando analisarmos uma grande diferença entre o livro e o filme: a presença do poeta Hölderlin, no filme, através da citação de um de seus poemas, por Fritz Lang.