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Como foi, na prática, a adaptação de O desprezo, de Moravia, para Le mépris, de Godard? À parte a nova personagem que Godard cria – Francesca Vanini, secretária do produtor e tradutora de quase todos (ainda que ela traduza mais o produtor do que os outros e quase nenhuma das ironias do diretor para o produtor) – os outros personagens são os mesmos do romance: o roteirista Ricardo Molteni (que tem a tarefa de adaptar a Odisséia para o cinema), sua mulher (Emilia), o produtor (Battista), e o diretor (Rheingold). Eles são os mesmos, e são outros, no filme. Primeiramente, suas nacionalidades: no livro, todos os personagens são italianos, exceto o diretor, que é alemão220. No filme, isso muda: o roteirista e sua mulher são franceses; o produtor, americano; somente o diretor é alemão, como no filme. Essa mudança de

219

Ibidem, p. 120.

220 Em 1954 foi produzido um Ulysses, dirigido por Mario Camerini, com Kirk Douglas e Silvana Mangano,

produção italiana e internacional, filmado na Itália. Esse filme teria sido um projeto de Pabst, diretor alemão. Moravia teve a idéia de escrever um romance sobre uma adaptação da Odisséia provavelmente a partir desse filme (seu livro é de 1954). Não é impossível que ele tenha sido chamado, em algum ponto do projeto, para escrever a adaptação (mas não conheço evidência disso).

nacionalidades (mais as personae dos atores que encarnam esses personagens; discutirei isso abaixo) dá outra dimensão ao filme, diferente daquele descrito por Moravia: ao realizá-lo, mudando a nacionalidade dos personagens, em 1963, Godard estava comentando as muitas e várias co-produções que haviam sido feitas entre Estados Unidos e Europa, nas décadas de 50 e 60, mais especificamente entre produtores americanos e italianos, geralmente com temas bíblicos ou da antiguidade clássica, as características dessas super-produções, problemas e eventuais vantagens. Alguns dos diretores de eleição dos Cahiers du Cinéma (por exemplo, Nicholas Ray, Anthony Mann e King Vidor) haviam, recentemente, realizado obras nessas condições. O próprio Le mépris era uma co-produção americana (Joseph E. Levine), italiana (Carlo Ponti) e francesa (Georges de Beauregard). Já sobre esse aspecto, o filme de Jean-Luc Godard era auto-referencial, na verdade, uma obra sobre as suas próprias condições de produção.

Quase todos os personagens mudam, também, consideravelmente. Mesmo o diretor sendo alemão, no filme também (assim como no romance), sua dimensão é absolutamente outra. No romance, Ricardo Molteni (que é o narrador, em primeira pessoa) escreve sobre o diretor que iria dirigir a Odisséia:

Rheingold era um realizador alemão, que no seu país, no tempo do cinema pré- nazi, dirigira alguns filmes do gênero “Kolossal” os quais, então tinham obtido um notável sucesso. Rheingold não era certamente da classe dum Pabst ou dum Lang, mas era um realizador de valor que não tinha espírito comercial e cujas ambições, embora talvez discutíveis, eram sempre honestas221.

Além de não ser “da classe (...) dum Lang”, Rheingold é visto pelo roteirista como algo obtuso. E é na relação que se estabelece entre Odisseus, que demora em retornar, Penélope que o espera e procura manter os pretendentes à distância, e a posição desses mesmos pretendentes, que vão se definir as diferenças entre o roteirista e o diretor. No livro de Moravia, Rheingold, tem

uma concepção (interpretação?) muito particular sobre o que se passa entre Odisseu e Penélope a propósito dos pretendentes. Diz ele num dos diálogos que tem com RicardoMolteni, o roteirista:

os pretendentes estavam enamorados de Penélope até antes da guerra deTróia... e, enamorados como estavam cobriam-na de presentes, segundo o uso grego...Penélope, mulher altiva, austera, à antiga, queria recusar estas ofertas, queria, sobretudo, que o marido expulsasse os pretendentes...mas Ulisses, por qualquer motivo [...] não quer desgostar os pretendentes ...Como homem sensato, ele não atribui grande importância à corte dos rivais, porque sabe que a mulher é fiel; e não faz maior caso das dádivas, que talvez no fundo não lhe desagradem completamente... [...] Ulisses não aconselha verdadeiramente Penélope a ceder aos desejos dos pretendentes, mas somente a não os desgostar porque lhe parece que não vale a pena... [...] Penélope, finalmente, segue o conselho do marido...mas ao mesmo tempo concebe por ele um profundo desprezo... sente que já não o ama e diz-lhe...[...] Ulisses esforça-se por reparar a sua falta, por reconquistar a mulher, mas em vão... a sua vida em Ítaca torna-se um inferno. Por fim, desesperado, aproveita o ensejo da guerra de Tróia para sair de casa...Depois de sete anos a guerra acaba e Ulisses volta ao mar para regressar a Ítaca...mas sabe que em casa o espera uma mulher que já não o ama, que o despreza mesmo... e por isso, inconscientemente, aproveita todos os pretextos para retardar esse regresso, tão ingrato e temido... Reconhece, todavia, por fim, que precisa de voltar... [...] Assim Penélope reencontrou Ulisses, e depois de lhe ter demonstrado sua fidelidade, faz-lhe compreender que esta não lhe fora inspirada pelo amor, mas unicamente pela sua dignidade... Ela voltará a amar o seu esposo somente com uma condição: que ele mate os pretendentes...[...] desta vez decide-se [...] Matou portanto os rivais... Então, e só então, Penélope deixa de o desprezar e ama-o de novo...222

Nesse longo diálogo, ao dizer que os pretendentes já “estavam enamorados de Penélope” antes da guerra de Tróia, que Odisseu a aconselha “a não os desgostar”, que ela passa a desprezá- lo, e só então Odisseu, na sua volta, mata os pretendentes, Rheingold pretende estar fazendo uma interpretação “psicanalítica”. Qual poderia ter sido a passagem, na Odisséia que poderia ter inspirado (remotamente) essa fantasia do diretor alemão? Quase certamente a celebrada cena, no canto XVIII, na qual Penélope concebe a idéia, “incutida” por Atena, de aparecer aos pretendentes e de alguma maneira agradar-lhes, plano que ela executa:

Então, Atena, a deusa de olhos brilhantes, incutiu no espírito de Penélope, filha de Icário, a mais cordata das mulheres, a idéia de se mostrar aos olhos dos pretendentes para lhes alegrar o coração e para ser honrada por seu marido e filho, mais do que já era. [...] Então, Atena, a deusa dos olhos brilhantes,

obedecendo a outro plano, infundiu doce sono na filha de Icário [...] entrementes, a excelsa deusa a ornamentava com dons imortais, para que os Aqueus a contemplassem arrebatados [...]223

Mais a frente, neste mesmo canto, ela dirá aos pretendentes:

não vem longe a noite, em que eu, desditada, a quem Zeus privou de sua felicidade, terei de suportar um casamento odioso. Mas uma dor cruel me punge o coração e o espírito: os pretendentes não mais respeitam hoje os costumes antigos. Os que pretendem uma mulher nobre, filha de varão opulento, e entre si são rivais, levam à noiva bois e gordas ovelhas, que lhe permitam dar bom tratamento a convivas que lhe sejam caros; brindam-na com valiosas dádivas; mas não devoram impunemente os bens de outrem.224

Mudando o foco, o narrador descreve a reação de Odisseu, que está no aposento, disfarçado de mendigo:

...o ilustre Ulisses, modelo de paciência, alegrou-se ao vê-la solicitar presentes e lisonjear o coração dos pretendentes com meigas palavras, enquanto seu espírito premeditava outros planos225.

Aqui, Odisseu está na véspera do dia em que massacrará os pretendentes. Por isso, fica satisfeito que Penélope lisonjeie “o coração dos pretendentes com meigas palavras”, pois “o seu espírito premeditava outros planos”: a matança dos pretendentes. É quando Antino e outros pretendentes prometem presentes, mandam buscá-los e entregam-nos a Penélope. A narrativa de Homero é clara, nesta passagem, como em outras, aliás. Quanto à idéia de agradar aos pretendentes, ela é “incutida” pela deusa Atena. Em nenhum momento, portanto, Odisseu aconselha-a a ser agradável aos pretendentes, mesmo porque ele não fala com ela, antes do seu discurso. Mesmo depois, quando a encontra e tem uma longa conversa com ela, no canto XIX, ele não tem nenhum conselho deste tipo para dar a Penélope.

Se lembrarmos que, na verdade, Odisseu está naquele aposento em que acontece essa cena, mas incógnito (como mendigo), mais clara fica a mudança e a diferença que o diretor

223 HOMERO. Odisséia, p. 168. 224 Ibidem, p. 169.

estabelece entre o que ele quer fazer, e a obra de Homero. Atualmente, comentadores da Odisséia, debatem se Penélope chega a saber (consciente ou inconscientemente) que o mendigo é seu marido; se bem que este detalhe esteja aberto à interpretação, um que definitivamente não está é que Odisseu tenha lhe dado a idéia de agradar os pretendentes, muito menos antes da guerra de Tróia. Esta passagem não existe na narrativa escrita por Homero. Rheingold não faz uma interpretação “psicanalítica” da Odisséia: usando parte da narrativa homérica, ele inventa outra narrativa, e interpreta, isso sim, a narrativa que colocou no lugar daquela. Um diretor pode mudar o que quiser, numa adaptação, evidentemente; mas, dependendo das mudanças, sua “leitura”, (ou interpretação) da obra será pertinente ou não, esclarecedora da obra adaptada ou não; e terá uma validade própria (ou não), independente da obra adaptada. A obra que Rheingold pretende realizar não tem relação com a narrativa homérica, tal como a conhecemos, pelo menos nesse aspecto central.

O roteirista, Ricardo Molteni, que escuta a longa exposição de Rheingold, discorda da sua “interpretação” e diz a ele que “você se afasta demasiado da Odisséia226.” Por que Molteni simplesmente não argumenta que a narrativa homérica desmente a história de que os pretendentes já estavam em Ítaca antes da guerra de Tróia, que Odisseu aconselha a Penélope a agradar os pretendentes, e que esta o despreza? Embora não aceitando o que diz o diretor alemão, ele dá à posição dele o status de “interpretação”, e interpretação psicanalítica, o que ela claramente não é: trata-se simplesmente de uma outra narrativa, diferente da homérica. É bem provável que esta invenção de Rheingold tenha outra explicação: Moravia, o romancista, precisava dessa “interpretação”, para fazer um paralelo entre Ricardo/Emilia/Battista (Emilia parece desconfiar que Ricardo quer jogá-la nos braços do produtor, Battista, o patrão de seu marido) e Odisseu/Penélope/pretendentes: dessa maneira, ele teria na “narrativa” inventada por Rheingold,

para a Odisséia, um comentário, um espelho exato e metafórico da situação triangular no seu romance. A obra a ser adaptada explicaria o drama vivido por seus personagens, estaria comentando constantemente o que acontecesse no seu romance, seria como que um ponto de referência227. Segundo essa hipótese, não é na Odisséia de Homero que devemos ver o motivo dessa “interpretação”, mas nas necessidades narrativas e metafóricas do romance de Moravia.

Ricardo não aceita a “interpretação” de Rheingold, a maior parte do tempo: ele é a favor de um filme sobre a Odisséia mais fiel ao original:

... a beleza da Odisséia reside justamente nesta crença na realidade tal qual ela é, tal qual objectivamente se apresenta... nesta forma, em suma, que não se deixa nem analisar, nem fragmentar, que é aquilo que é: ou pegar ou largar... Noutros termos [...] o mundo de Homero é um mundo real. Homero pertencia a uma civilização que se desenvolvera de acordo e não em oposição com a natureza; por isso ele acreditava na realidade do mundo sensível e via-o realmente como o representou...228