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Entre os anos de 1947/194967, Jean-Luc Godard vai conhecer e encontrar nos cineclubes e cinemas parisienses, freqüentadores assíduos tanto como ele, três outros adolescentes e um adulto (quase todos eles com menos de 20 anos, menos um), que estavam descobrindo, encantados, quase que uma nova religião, mas, no mínimo, uma arte: o cinema. Tratava-se de Jacques Rivette (1928), Claude Chabrol (1930), François Truffaut (1932) e Eric Rohmer (1920), com os quais, mais tarde, escreveria sobre cinema em alguns jornais, revistas, e que seriam também seus companheiros de Nouvelle Vague, todos eles começando a dirigir filmes e a construir uma obra importante mais ou menos na mesma época: dez anos depois do momento que estamos considerando, isto é, fins da década de 50. Escreveriam juntos, também, na mesma revista: os Cahiers du Cinéma, que ajudaram a construir, a partir da sua fundação (abril de 1951), onde foram apelidados “jeunes turcs” (devido às posições radicais que tomaram em defesa do cinema

americano, por exemplo, e quanto à “politique des auteurs”). Dois deles chegaram, inclusive, a ser chefes de redação da revista: Eric Rohmer e Jacques Rivette. Mas tudo isto ainda estava por acontecer; a partir de 1947 eles estavam “somente” descobrindo a si mesmos, o cinema, e uns aos outros.

Aquele momento, fim da Segunda Guerra Mundial, na França, foi particularmente propício para Jean-Luc Godard e seus quatro amigos (e muita gente mais) descobrirem a nova arte, aquela que, segundo Rohmer, era ao mesmo tempo clássica (os usos de certos procedimentos da “linguagem” cinematográfica haviam se estabilizado, notadamente a montagem, quase invisível, conduzida através do “ponto de vista” – olhar – dos personagens, no cinema americano, que viriam a defender) e moderna (algumas vanguardas haviam passado pelo cinema, notadamente o surrealismo), o cinema. Os filmes americanos, que não puderam ser exibidos, devido à invasão alemã, estavam todos sendo mostrados (inclusive a obra-prima de Orson Welles, Citizen Kane, que havia causado sensação desde o momento em que fora lançada, em 1941, nos Estados Unidos). Grande parte dessa atualização corria por conta dos cinemas comerciais. Os cineclubes, uma instituição notoriamente francesa, nasciam em todos os lugares e a todo o momento, naquela Paris do pós-guerra, para preencher algumas lacunas: os filmes de vanguarda e alguns dos já clássicos do cinema. Encontrando-se repetidamente em diferentes cinemas e filmes, os cinco logo fizeram uma amizade que produziria uma incrível quantidade de textos, revistas, jornais, livros e filmes.

Mas havia um outro endereço e um outro nome: o endereço era o da Cinemateca Francesa e o nome era Henri Langlois, seu diretor. Este novo personagem, meio mágico e meio louco, fundara a Cinemateca em 1936; guardara seus tesouros68, quando da ocupação da França pela Alemanha, em qualquer lugar onde os alemães não pudessem achá-los (nos túneis do metrô

parisiense, notadamente); fizera uma exposição, em 1945, Images du cinéma français, que fora admirada por Jean Cocteau e Paul Eluard; e, a partir de dezembro de 1944, havia reaberto um cineclube, que já existira na década de 30 (como tudo que toca esse personagem é mítico, foi dito por muitos que James Joyce e André Breton freqüentaram este cineclube69 no final da década de trinta), o Cercle du Cinéma, antes que a Cinemateca adquirisse sua própria sala de exibição, em 1948, na avenue de Messine.

Langlois tinha algumas características que o predispunham para este papel de formador de cineastas: diferente de outras cinematecas, a dele exibia e colocava à disposição do público os filmes sob sua guarda; os outros “conservadores” achavam, naquele momento, que exibir filmes era colocar em risco cópias de filmes muitas vezes raras (“na Inglaterra, por exemplo, cinematecas foram fundadas nas quais nenhum filme era permitido escapar”, escreveu MacCabe70). Além do mais, não escolhia os filmes que guardava: simplesmente conservava todos aqueles que conseguia: para ele, quem escolheria seria o tempo, outras gerações e outras pessoas. E fazia uma programação que era um primor de justaposição, método que Godard iria usar bastante nos seus filmes futuros.71

Godard e seus amigos repetidas vezes disseram que, sem Langlois e sua Cinemateca, eles não teriam apre(e)ndido o cinema tão completamente. E o que é mais importante, afirmou, certa vez, que eles foram a primeira geração de diretores que fez cinema depois de conhecer todos (ou quase) os filmes importantes da história do cinema. Até 1950, os diretores, eventualmente, viam

69 MACCABE. A portrait of the artist at seventy, p. 49.

70 Ibidem, p. 48. “…in England, for example, archives were set up from which no film would be allowed to escape.” 71 “[...] o Cercle du cinéma achou sua força intelectual (como a Cinemateca faria mais tarde), na justaposição

promovida pela programação - uma comédia de Chaplin seria exibida depois de uma de René Clair e então, para completar a noite, seria exibido uma do diretor soviético Protazonov, ou um filme alemão anti-soviético seria exibido antes de um filme russo anti-nazista.” MACCABE. Godard, a portrait of the artist at seventy, p. 49 “[...] the Cercle du Cinéma found its intelectual force (as the Cinémathèque was to do later), in the juxtapositions provided by the programming – a comedy by Chaplin would follow one from René Clair and then, to complete the evening, there would be one from the Soviet film-maker Protazanov, or anti-Soviet German film would be followed by an anti-Nazi Russian film.”

filmes ao acaso, e raramente viam os chamados “clássicos”; Godard e seus amigos viram a história do cinema praticamente toda, pelo menos a história do cinema até então. Isso, eles devem a Henri Langlois, que dirigiu somente um curta-metragem, mas influenciou-os como poucos cineastas. Isto deu uma perspectiva diferente à Nouvelle Vague em geral, e aos filmes de Godard, em particular: todos eles citam extensivamente uma quantidade enorme de fitas, seja através do diálogo, seja através de uma estratégia mais radical ainda: a colagem de determinadas seqüências de certos filmes às suas próprias obras.