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Lang, Hölderlin, Maurice Blanchot e os deuses

Na primeira parte, depois que todos os personagens vêem o copião, e saem da sala de exibição, Fritz Lang continua nessa sala, e recita um poema de Hölderlin, para Francesca, que ele

240 Ibidem, p. 29.

241 MORAVIA. O desprezo, 96.

identifica como “A vocação do poeta243”. Lang escande esse poema em alemão, e é logo traduzido por Francesca para o francês: “Mas, quando é necessário, o homem perde o medo/ Diante de Deus, a simplicidade protege-o/ Não precisa de armas nem de ardis,/ Até a hora que a ausência de Deus vem em sua ajuda244”.

Em seguida, Lang comenta, e Francesca traduz, novamente:

O último verso é muito obscuro. Hölderlin escreveu antes: “enquanto Deus não faltar”. Em seguida, escreveu: “Enquanto Deus permanecer próximo”. Como você pode ver, a redação do último verso contradiz os dois outros, não é mais a presença de Deus, é a ausência de Deus que tranqüiliza o homem. Estranho, mas verdadeiro245.

243 Ibidem, p. 27. La vocation du poète.

244 A tradução desses versos é de Alvaro Cabral, e estão no livro BLANCHOT. O espaço literário, p. 271. A

tradução de Francesca está em GODARD. Le mépris, p. 27. Mais l’homme quand il le faut peut demeurer sans peur

seul avant Dieu, sa cnadeur le protège el il n’a pas besoin ni d’armes, ni de ruses, jusqu’à l’heure où l’absence de Dieu vient à son aide. Blanchot, no último capítulo desse livro, “O itinerário de Hölderlin”, faz alguns comentários bastante esclarecedores sobre o poeta alemão, e o que sua poesia nos diz sobre a relação do homem com os deuses. Nicole Brenez, que fez a transcrição e redigiu a decupagem completa do filme, plano por plano, e que escreveu algumas notas no roteiro, quando Lang escande esse poema, e algumas outras variantes, escreveu o seguinte: “diálogo baseado numa célebre análise de Maurice Blanchot em O espaço literário (1955), “O itinerário de Hölderlin”. “Dialogue d’après une célèbre analyse de Maurice Blanchot dans L’espace litéraire (1955), L’itinéraire de Hölderlin.” Ver GODARD. Le mépris, p. 27, nota de pé de pagina. Mas o último verso, que Francesca traduz, não corresponde ao último verso que está traduzido no livro de Blanchot: lá está “Enquanto o Deus não lhe faltar”. A tradução do quarto verso citada acima, portanto, é minha, e corresponde ao que é dito no filme por Francesca, e publicado no roteiro, também. Tudo indica que Godard usou esta análise de Blanchot sim, mas parece que ele consultou outra(s) fonte(s), pois, como iremos ver, ele emprega uma outra variante desse verso que não está no ensaio de Blanchot. É interessante observar que o quarto verso, na tradução de Francesca, no filme, “jusqu’à l’heure où l’absence de dieu vient à son aide” (“até a hora que a ausência de Deus vem em sua ajuda”) é parecido ao verso que Blanchot dá como variante; mas mesmo aqui, as palavras não são as mesmas: “Jusqu’à ce que le défaut de dieu l’aide” (“até que a ausência de deus o ajude”, tradução de Alvaro Cabral). Da mesma maneira, uma das variantes que Lang usa, e que é traduzida por Francesca como “Tant que Dieu ne fait pas défaut” (“de tal forma que Deus não faz falta”), estão no livro de Blanchot como a versão (traduzida) original do quarto verso: “Aussi longtemps que le dieu me lui fait pas défaut” (“enquanto o Deus não lhe faltar”, tradução de Alvaro Cabral); aqui, também, algumas palavras são diferentes, se comparamos a versão de Blanchot àquela de Francesca. A versão francesa desses versos está em BLANCHOT. L’espace litéraire, p. 365. Quanto à uma segunda variante, que Francesca traduz como “Tant que Dieu nous demeure proche”, (“enquanto deus permanece próximo”, tradução do autor) não existe no ensaio de Maurece Blanchot. Diferentes versões, diferentes traduções e, provavelmente, diferentes fontes consultadas: provavelmente, diferentes interpretações, e diferentes leituras. O importante é que todas elas esclarecem, de alguma maneira, o que Hölderlin tem a dizer da relação dos homens com os deuses.

245 GODARD. Le mépris, p. 27. “Le dernier vers est très obscur. Hölderlin avait écrit d’abord: “Tant que Dieu ne fait

pas défaut”. Et ensuite: “Tant que Dieu nous demeure proche”. (...) Vous voyez, la rédaction du dernier vers contredit les deux autres, ce n’est plus la présence de Dieu, c’est l’absence de Dieu qui rassure l’homme. C’est très étrange, mais vrai.”

Segundo Carpeaux, “Hölderlin, por mais estranho que pareça, acreditava literalmente nos deuses gregos, como se ele mesmo fosse um grego. O seu fatalismo faz parte do credo grego...246”. Comentando outros versos desse poeta, “só crêem no divino/Os que o trazem em si247”, Carpeaux vai dizer que “o último verso exprime, no texto alemão, “die es selber sind”, a perfeita identidade entre o espírito do poeta e o espírito divino248”. Tradutor do grego, (de Píndaro e de Sófocles), tudo indica que ele não somente traduziu para o alemão as palavras destes grandes autores, mas adaptou para a sensibilidade moderna, tornou compreensível para nós, nos nossos termos, o que significavam os deuses para os homens antigos e o que passaram a significar para nós, modernos.

Mais próximo de nós é Maurice Blanchot que vai explicar e explicitar alguns desses poemas de Hölderlin. Para ele, o que Hölderlin afirma em vários dos seus poemas é a ausência dos deuses; e que é isso que nos dá tranqüilidade; é o afastamento deles que devemos testemunhar, não a sua presença, demasiadamente próxima; ao desviar-se de nós, os deuses nos são mais fiéis. Para Blanchot, Hölderlin não nega absolutamente os deuses; mas não fala também em fidelidade a eles, ou deles, ou mesmo na presença deles. Ao contrário:

E a tarefa do poeta não se limita mais a essa mediação simplista pela qual lhe era solicitado ficar de pé diante de Deus. É diante da ausência de Deus que ele deve manter-se, é dessa ausência que ele deve constituir-se o guardião, sem perder-se e sem a perder, é a infidelidade divina que ele deve conter, preservar, é “sob a forma de infidelidade onde existe esquecimento de tudo” que ele entra em comunicação com o deus que se desvia. [...] Hoje, o poeta não pode mais colocar-se entre os deuses e os homens, como intermediário deles, mas cumpre- lhe manter-se entre a dupla infidelidade, manter-se na interseção desse duplo retorno divino, humano, duplo e recíproco, movimento pelo qual se abre um hiato, um vazio que deve constituir doravante a relação essencial dos dois mundos. Assim, o poeta deve resistir à aspiração dos deuses que desaparecem e que o atraem para ele em seu desaparecimento (notadamente o Cristo); deve resistir à pura e simples subsistência na terra, aquela que os poetas não fundam [...] vivendo puramente a separação, sendo a vida da própria separação, pois esse

246 CARPEAUX. História da Literatura Ocidental, volume III, p. 1629.

247 Tradução de Manuel Bandeira. Citado em CARPEAUX. Origens e fins, p. 42. 248 Ibidem, p. 42.

lugar vazio e puro que distingue esferas, é aí que está o sagrado, a intimidade da dilaceração que é o sagrado 249.

O sagrado como dilaceração, separação, hiato vazio, desaparecimento e não como é entendido tradicionalmente: presença, epifania, aparição, contato. Os deuses, aqui, não são nem inexistentes, nem “desnecessários”; eles existem, mas noutra esfera. Poucas vezes um poeta (Blanchot) entendeu tão completamente outro poeta. Exatamente como afirma Carpeaux: “não é humildade cristã, é a consciência pagã duma vida sem outra continuação imortal senão no canto250”. Os poetas, segundo Hölderlin, na leitura, tradução (com aspas e sem aspas) e interpretação de Blanchot, seriam as únicas maneiras de se veicular o sagrado entre os homens; eles parecem ser os únicos contatos possíveis entre os deuses e os homens, modernamente. Contraditoriamente, é na negação (infidelidade, nas palavras de Blanchot) que pode existir a afirmação. Somente preservando essa negação, o poeta pode fundar algo: “o que perdura porém, fundam-nos os poetas251”.

Ao criar, portanto, uma sequência (que não existe no romance) onde é discutido exatamente esse poema de Hölderlin, e todas as suas variantes, Godard faz seu personagem (Lang) dizer exatamente: “não é mais a presença de Deus, é a ausência de Deus que tranqüiliza o homem”.

Aqui, estamos exatamente no ponto central de Le mépris, onde se encontram as vertentes existenciais e criativas de Godard, Homero, Hölderlin e Blanchot. Numa seqüência anterior à que Lang cita Hölderlin, quando todos os personagens estão vendo o copião de algumas cenas já filmadas, quando Jeremiah252 Prokosch vê os planos de alguns deuses gregos, Atena e Posídon,

249 BLANCHOT. O espaço literário, p. 275. 250 CARPEAUX. Origens e fins, p. 43.

251 Hölderlin, tradução de Manuel Bandeira. Citado em CARPEAUX, Origens e fins, p. 51.

252 Alusão ao profeta Jeremias, provável autor de dois livros da Bíblia, “Jeremias” e “Lamentações de Jeremias”. A

ele diz algumas frases, no que se constitui quase um monólogo (ele não fala as palavras que se seguem para ninguém, especificamente): “Deuses... Eu gosto dos deuses! Gosto muito deles. Sei exatamente como eles se sentem. Exatamente!253”. É notável o tom de certeza, e de emoção com que Prokosch diz essas palavras.

É claro que Prokosch está expressando neste momento uma identificação: ele está dizendo que se identifica com os deuses (“sei exatamente como eles se sentem”), que gostaria de ser como eles, que os ama, não como qualquer cristão – que ama seu deus com humildade, como um ser imperfeito que ama seu criador e/ou “pai” – mas como um igual. Muitas vezes, durante muito tempo, a mitologia hollywoodiana, no mundo inteiro, equacionou o mundo dessa cidade californiana com o Olimpo grego. Produtores, diretores, atores, astros e estrelas – é só prestar atenção às próprias palavras – foram, por muito tempo, tidos e havidos como deuses humanos (será que, na verdade, este tipo de religião já não existe mais?). Estudando essa mitologia, Edgar Morin já havia escrito que

Um mito é um conjunto de situações imaginárias. [...] Quando falamos do mito da estrela, trata-se então em primeiro lugar do processo de divinização que suporta o ator de cinema e que faz dele o ídolo das multidões.254

O capítulo no qual Morin estuda esse processo de divinização de atores e atrizes (estrelas) chama-se, caracteristicamente, “Deuses e deusas255”. Imaginados e vistos como deuses, atores e atrizes logo compartilharam seus atributos divinos com muitas das pessoas envolvidas nas produções cinematográficas, como que por contigüidade. Com mais razão ainda, os produtores de cinema: no final das contas, a maior parte das vezes eles estão na origem de um filme (pelo

253

GODARD. Le mépris, p. 23. “Oh Gods, I like Gods! I like them very much. I know exactly how they feel. Exactly!”

254 MORIN. Les stars, p. 37. “Un mythe est un ensemble de conduites et de situations imaginaires. […] Quand on

parle du mythe de la star, il s’agit donc en premier lieu du processus de divinisation que subit l’acteur de cinéma et qui fait de lui l’idole des foules.”

menos, em Hollywood e no cinema americano; e até a década de sessenta, que é o momento que estamos examinando): escolhem a estória a ser contada, o roteirista, o diretor, os atores, a equipe técnica, e investem (ou equacionam o aspecto financeiro do filme, isto é, a produção) na criação de um mundo que não existia antes, e que passa a existir somente por vontade e desejo deles. Por isso tudo, não é nada surpreendente que Jeremiah Prokosch, produtor americano, imagine-se um deus.

É nesse momento que Lang diz a sua frase, dirigida a Prokosch, que “os deuses não criaram o homem, o homem criou os deuses”: a relação dele com Prokosch é a de um poeta, como quer Hölderlin e Blanchot (somente o poeta pode manifestar o divino): afastamento, hiato, separação. Em vários momentos, quando perguntado se vai para a casa de Prokosch, junto com os outros personagens, ele responde com extrema ironia. Numa delas, quando Camille pergunta se ele vai ficar na Vila de Prokosch, em Capri, Lang diz que “um produtor é alguma coisa que eu posso evitar facilmente256”. Em outro momento, quando querem saber se ele vai para a casa do produtor, em Roma, ele repete um outro produtor, Samuel Goldwyn: “Inclua-me fora’, como disse certa vez um verdadeiro produtor de Hollywood257”. Num outro momento, quando o produtor o está acusando de não ter filmado o roteiro, mas outras cenas que não estariam no roteiro, e Lang insiste que filmou o roteiro fielmente, Prokosch procura arrancar o roteiro que está nas mãos do diretor. Lang recusa, dizendo um “não” categórico e final, como quem diz, “meu roteiro de trabalho não, procure outro”. Prokosch consegue um outro roteiro com Francesca, e constata que Fritz Lang filmou o roteiro, como já havia dito258.

256 GODARD. Le mépris, p. 67. “Un producteur ...c’est quelque chose... je m’en passe facilement...” 257

GODARD. Le mépris, p. 30. “Include me out”, as one of the real producers of Hollywood once said.”

258 No filme, essa discussão prossegue. Em resposta à acusação de Prokosch, que os planos que viu, apesar de

estarem no roteiro, são diferentes do roteiro, Lang responde: “Naturalmente, porque no roteiro, está escrito, e na tela, isso é uma imagem, imagem em movimento, como é chamada.” Aqui, Lang chama a atenção para o fato que, num processo de roteirização e filmagem, temos duas traduções intersemióticas. Em primeiro lugar, a tradução (nesse caso) de um poema épico para um roteiro, que é um outro gênero de escrita, mas ainda é escritura; em segundo

No resto do filme, à imagem dessa última sequência, Lang é todo paciência, correção, estoicismo e cuidado com o produtor. Mas mantém sempre, preservando uma certa distância, um grau de separação, um hiato bem marcado e afirmativo entre eles. Até que a morte de Prokosch, no final de Le mépris – no romance, somente a mulher do roteirista morre; o produtor, Battista, continua vivo –, num acidente de carro, ao que tudo indica, permita a ele terminar o filme exatamente como ele quer. No romance, Ricardo Molteni, ao final, não escreveu uma linha do roteiro, e já havia renunciado a escrevê-lo. Não fica claro (não é descrito ou dramatizado), depois de tudo o que aconteceu, se a adaptação da Odisséia vai ser feita, no livro.

Finalmente, quanto aos deuses, de alguma maneira eles aparecem, também, em Le mépris. Quando Lang mostra, na cabine de exibição da Cinecità, um copião dos planos já filmados da sua adaptação da Odisséia, vemos alguns deuses gregos que ele filmou: no caso, Netuno e Atena, isto é, estátuas desses deuses. Em alguns momentos, essas estátuas, que pertencem à diegese da fita que Lang está filmando, aparecem na diegese de Le mépris: quando Prokosch vai para sua casa, em Roma, acompanhado por Camille, no seu carro, e Paul sai correndo atrás do carro, Godard nos mostra um plano de Netuno, “inimigo mortal de Ulisses259”. Quando Camille e Paul saem da casa de Prokosch, para ir para a casa deles, aparece Atena, “a protetora de Ulisses260”. Talvez seja possível dizer de Le mépris, o que Frontisi-Ducroux disse da Odisséia: “o poeta indica assim a presença constante do divino no mundo onde se movem seus personagens261”. Mas aqui, não se trata mais do divino (e do sagrado) nos termos da Grécia Antiga, mas sim nos termos que definiu Hölderlin (e Blanchot): a poesia como a única encarnação possível do sagrado, separação e

lugar, tradução do roteiro em imagens, sons, música, palavras, interpretação (de atores), para um outro sistema, portanto. GODARD. Le mépris, p. 26. “... Naturally, because in the script it is written, and on the screen it’s pictures, motion pictures it’s called.”

259 GODARD. Le mépris, p. 21. “…Neptune, son ennemi mortel”. 260 GODARD. Le mépris, p. 21. “C’est la protectrice d’Ulysse.”

261 FRONTISI-DUCROUX. Homère et le temps retrouvé, p. 544. “Le poète indique ainsi la présence constante du

dilaceração, única epifania possível na modernidade, única transcendência que ainda pode ser alcançada num mundo pagão, como afirmou Carpeaux. Pois, como quer Frontisi-Ducroux, mais uma vez escrevendo admiravelmente sobre Homero, mas podendo ser aplicado a Godard, “o papel da poesia é de explorar o sobrenatural, de decifrar o invisível, de abrir as fronteiras do humano, de fazer ver o que o homem não vê262”. Ao mostrar os deuses gregos em alguns momentos de seu filme, Godard está fazendo um comentário poético sobre a situação de seus personagens: naqueles momentos, eles estão definindo suas relações, estão tornando tudo mais difícil ou mais fácil para eles próprios, embora tudo isso ainda esteja “invisível” para eles.