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Segundo Robert Stam, num de seus livros, onde aborda o problema da adaptação, “A Eneida e Ulisses, juntamente com o Disprezzo (1955) de Moravia e a adaptação de Godard, Le Mépris (1963), são elaborações hipertextuais de um único hipotexto, a Odisséia263”. À primeira vista, difícil de discordar. O Ulisses, de James Joyce, é uma modernização do épico homérico, onde uma Penélope infiel (Molly Bloom) e um Ulisses nada heróico (Leopold Bloom) – que passa apenas um dia fora de casa – encontram um filho apenas simbólico (Stephen Dedalus), na madrugada do dia seguinte. O mito, mesmo modernizado e parodiado, está quase todo lá,

262 Ibidem, p. 544. “...le rôle de la poésie est d’explorer le surnaturel, de déchifrer l’invisible, d’écarter le frontières

de l’humain, de faire voir ce que l’homme ne voit pas.”

263 STAM. Introduction: the theory and practice of adaptation. In:STAM and RAENGO (Edited by). Literature and

film, p. 31. “Both The Aeneid and Ulysses, along with Moravia’s Disprezzo (1954) and Godard’s adaptation Le

mépris (1963), are hypertextual elaborations of a single hipotext, The Odyssey.” Aqui, Stam está usando categorias

de Gérard Genette, hipertextualidade e hipotextualidade, que, segundo ele, Genette não aplicou ao cinema, mas que podem ser aproveitadas na análise de filmes, particularmente na área da adaptação. Stam define esses termos desta maneira: “Hipertextualidade” se refere à relação entre um texto, que Genette chama de “hipertexto”, a um texto anterior ou “hipotexto”, que o primeiro transforma, modifica, elabora ou estende.” . Ibidem, p. 31. “Hypertextuality,” refers to the relation between one text, which Genette calls “hypertext”, to an anterior text or “hypotext”, which the former transforms, modifies, elaborates, or extends.”

devidamente narrado: quase todos episódios da Odisséia264 são recriados pelo autor. Na edição brasileira, por exemplo, é só consultar um roteiro-chave (página 848), onde quase todos os episódios e cenas da epopéia homérica estão relacionados aos episódios correspondentes do romance joyceano.

E quanto às elaborações hipertextuais que são Il disprezzo e Le mépris? Se compararmos o romance de Moravia à Odisséia, mesmo concedendo a modernização do mito, e também a chave paródica, o mínimo que poderia ser dito é que se trata de uma hipertextualização “fraca” (não estou falando de qualidade), no sentido de que é algo longínqua do original, ao contrário do romance de Joyce, que é bem mais próximo. De fato, o casal não passa nem sequer um dia afastado (pelo menos isso não é descrito; parece que Molteni trabalha em casa, inclusive); não têm filhos, nem sequer simbólicos; têm apenas dois anos de casados; somente um dos personagens está fora do seu país (Rheingold), por algum tempo apenas, e não sente falta da pátria. Nenhum dos episódios da Odisséia está transposto para Il disprezzo; a secretária que Molteni beija (e que sua mulher testemunha) poderia ser Circe, Calypso ou Nausica? Pouco provável. Finalmente, para aproximar Emília de Penélope e Ricardo Molteni de Ulisses, Moravia recorre a uma interpretação da Odisséia que não corresponde àquela narrada por Homero, mas criada pelo diretor alemão (Joyce não transforma Penélope numa adúltera, apenas Molly Bloom). É claro que se discute o tempo todo, no livro, como adaptar a Odisséia para o cinema (mas nem uma palavra do roteiro é escrita, no livro), e diferentes concepções do mundo homérico transparecem: poderíamos falar que Moravia fez um ensaio de interpretação, uma leitura da Odisséia?

E qual a relação de Le mépris com a Odisséia? Como já discutido anteriormente, algumas coisas foram mudadas por Godard. A mais importante: quando o produtor e o roteirista, durante

um certo tempo, defendem a idéia da infidelidade (como já vimos, mesmo aqui existe uma pequena diferença entre o produtor e o roteirista) de Penélope, eles não pretendem que isso aconteceu antes mesmo da ausência de Ulisses. Quanto ao resto, num primeiro momento, o filme de Godard poderia ser descrito como uma versão “fraca”, distante, do mito de Odisseu: a situação básica é quase a mesma do livro. Acrescida de alguns detalhes: Paul, por exemplo, é um personagem neurótico, incapaz de tomar qualquer decisão, pede várias vezes à sua mulher que decida. Em dois momentos ele é visto pegando um revólver: numa delas, depois de ver Prokosch beijando Camille. Embora a proximidade dessas cenas(e o fato de que ele, à primeira vista, está no lugar de Odisseu, um homem de ação) pudesse sugerir outra coisa, em nenhum momento ele tenta qualquer violência contra o “pretendente”, Prokosch, ainda que se possa dizer que isso pode estar passando pela sua cabeça.

Uma das interpretações possíveis do filme (e do livro, também) é que sua mulher imagina que ele quer entregá-la a Prokosch, para facilitar a sua relação de trabalho. Uma outra leitura: Camille expressa dúvidas em ir de carro com Prokosch para a casa dele; a mesma situação se repete na cena do barco. Nas duas vezes, ela claramente pede a decisão do marido. Parece que ela não quer ir. Num primeiro momento, inclusive, existe alguma antipatia de sua mulher pelo produtor. Mesmo que não se chegue a pensar que ele quer jogá-la nos braços do produtor, assim mesmo Paul é incapaz de dizer não ao produtor, mesmo quando nota que sua mulher não quer satisfazer um simples desejo deste último. Assim como é incapaz de dizer não à idéia do produtor, quanto à infidelidade de Penélope. E é incapaz de dizer não, também, até mesmo quanto a fazer o roteiro: na verdade, o que ele realmente quer – ele diz isso mais de uma vez – é escrever uma peça de teatro. Escrever para o cinema, para Paul, é prostituir-se. Se dissermos, então, que Paul é o Ulisses moderno, deveríamos dizer, ao mesmo tempo, que Le mépris é uma hipertextualização “fraca”, distante mesmo do original homérico.