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91 Sobre Marguerite Duras, numa entrevista de 1997, à revista Lire, Jean-Luc Godard disse o seguinte: “Ela tentou

todos os registros. E depois, havia sua avareza, sua necessidade de reconhecimento. Mas ela fez um filme muito bom, um verdadeiro filme com pouco dinheiro, Indian song ou Le camion. Esses são os meus preferidos. Um filme numa vida, isso basta, não? Pois se tratava de uma pessoa puramente literária, no melhor sentido do termo. Escrever, somente isso existia para ela. Isso preenchia uma função fundamental. Escrever, não filmar. GODARD. Jean-Luc

Godard par Jean-Luc Godard, tome 2, pp. 432-433. Elle a essayé tous les registres. Et puis il y avait son avarice, son besoin de reconaissance. Mais elle a fait un très bon film, un vrai film avec un peu d‘argent, India Song, ou Le

camion. Ce sont mes préférés. Un film dans une vie, ça suffit, non? Surtout que c’était une pure littéraire, dans le meilleur sens du terme. Écrire, il n’y avait que ça pour elle. Ça remplissait une fonction fondamentale. Ecrire, pas filmer.

92 Uma possível exceção pode ser lembrada, aqui: o caso de Luis Buñuel, que escreveu poemas, fez crítica de

cinema, e cineclubismo, antes de dirigir seu primeiro filme, Un chien Andalou. Espanhol, amigo de García Lorca e Dalí, amigos de vários surrealistas franceses, seus dois primeiros filmes são produção francesa, e seus últimos, também, aliás.

André Bazin nunca chegou a ser romancista, dramaturgo, poeta, ou cineasta93; mas na década de cinqüenta, comprou uma câmera 16 milímetros, filmou um documentário sobre o interior da França, montou uma versão do material que havia fotografado, não gostou do que viu, nunca mostrou o resultado a ninguém, nem voltou a filmar depois disto, chegando mesmo a vender sua câmera, logo em seguida94. Mas desde muito cedo quis se dedicar ao ensino da literatura; para conseguir isto, cursou a École Normale Supérieure. Desde seus anos iniciais, de formação, leu com atenção Henri Bergson (“[...] Bergson deu a Bazin um interesse pela unidade integral do universo em fluxo95”) e Teilhard de Chardin, que, segundo Dudley Andrew,

... deu sentido a uma revolução social e cultural, a uma procura por comunhão do espírito e do corpo baseada nas mensagens inscritas na terra. O cinema, para Bazin, era um novo instrumento para observar e decifrar tais mensagens e para unir as milhões de partículas atômicas da consciência, que nós chamamos audiência, na contemplação das verdades da natureza96.

Mas a leitura que mais frutificou nos textos e na teoria de Bazin foi a obra do filósofo personalista Emmanuel Mounier, e a sua revista, Esprit. Nesta revista ele escreveu vários ensaios e participou dos grupos de discussão e decisão. Ao ler Mounier, ele aprendeu principalmente a fugir da metafísica, e a exigir mais liberdade de ação para o homem. Mais importante ainda, o existencialismo personalista de Mounier97 certamente o enviou a Jean-Paul Sartre e André Malraux. Homens da resistência, mas principalmente escritores, naqueles anos sombrios da

93 Godard vai dizer que “Bazin era um cineasta que não fazia filmes, mas que fazia cinema falando do próprio

cinema.” GODARD.Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, tome 1, p. 10. “Bazin était un cinéaste qui ne faisait pas de films mais qui faisait du cinéma en en parlant […].”

94 ANDREW. André Bazin, p. 91.

95 Ibidem, p. 21. “[...] Bergson gave Bazin a deep feeling for the integral unity of universe in flux.” 96

Ibidem, pp. 66-67. “He gave meaning to social and cultural revolution, to a search for communion of spirit and body based on the messages inscribed in the earth itself. Cinema, for Bazin, was a new tool for observing and deciphering such messages and for uniting the millions ofatomic bits of consciousness, which we call an audience, in the contemplation of the truths of nature.”

97 MOUNIER. Introdução aos existencialismos, p. 16: “esta é a linha do existencialismo ateu, que vai de Heidegger

ocupação alemã, eles escolheram ficar na França e resistir, arriscando suas vidas (seus corpos) pelas suas idéias e pela sua literatura.

André Bazin leu, de Malraux, principalmente os grandes romances da década de trinta, La Condition Humaine e L’Espoir e também seu ensaio sobre cinema, “Esquisse d’une psychologie du cinéma”. Desse ensaio, chegou a dizer que, juntamente com os escritos de Leenhardt na revista Esprit, foram os únicos textos de qualidade escritos até então sobre o cinema falado. As teorias de Malraux sobre a arte, Bazin também leu avidamente. Em 1944, admitiu que queria fazer pelo cinema o que ele tinha feito pela arte98; aprendeu com Malraux que a arte tinha um destino e uma função social; que essa função social nascia de profundas necessidades psicológicas; e que os sucessivos estilos artísticos apareciam a partir da expansão da função social99. Por isto mesmo, como Malraux, viu na arte (no cinema) a transcendência – através do estilo – da consciência sobre as circunstâncias100. Mais: a constante mudança de estilos sugeriria que a humanidade teria sempre a necessidade de transformar a si mesma, mas não apontava para um objetivo final. O homem, para Malraux, se faz através da arte, e por isto ela é o substituto atual da religião e do humanismo religioso de civilizações anteriores.101 Mesmo um católico como Bazin podia concordar com isto, e basear toda sua obra nessas posições.

A primeira obra de Jean-Paul Sartre que Bazin leu foi Le Mur, que o impressionou grandemente102. Mas o livro que deu a ele a inspiração final para sua teoria do cinema foi L’Imaginaire: Psychologie Phénoménologique de L’Imagination, que Sartre publicou em 1940. Nessa obra, Sartre vê a arte como uma atividade indispensável para o esforço psicológico do homem de ao mesmo tempo, ou sucessivamente, evitar ou ir além das suas reais condições. Para

98 ANDREW, André Bazin, p. 68. 99 Ibidem, p. 68.

100 Op. cit. 101 Ibidem, p. 69. 102 Ibidem, p. 70.

Sartre, na arte, o homem tentaria, na verdade, dar uma idéia fiel do mundo, e de sua situação neste mesmo mundo. Apesar disto, conclui ele, “a beleza é um produto somente da imaginação, e não do mundo103”. Para o naturalista em Bazin, ao contrário, nós damos nossa imaginação à natureza, de tal maneira que, a partir daí, podemos trazer à tona as verdades latentes dessa mesma natureza104.

Em resumo, foi um leitor atento dos filósofos modernos, e de alguns escritores. Mas, Embora tivesse uma reputação de intelectual onívoro, Bazin tinha começado a se especializar na teoria literária. Na Maison ele muitas vezes discutia, e ocasionalmente dava conferências, sobre o romance moderno. Como muitos intelectuais franceses da sua geração, ele estava dominado totalmente pelo “novo estilo americano” de Hemingway, Faulkner e especialmente Dos Passos. A importância desses romancistas para uma teoria da narrativa cinematográfica não escapou a ele105.

Bazin estava, pois, destinado à literatura. Como o cinema entrou na sua vida? Por uma série de circunstâncias fortuitas. Primeiro, e antes de qualquer coisa, devido a Roger Leenhardt, crítico de cinema de Esprit, certamente o único pensador cinematográfico a influenciar Bazin. Leenhardt, depois de estudar filosofia, começou a colaborar na revista Esprit, na área política, passando a escrever sobre cinema em 1934. Acreditava que, ao promover o conhecimento aprofundado do espectador sobre o cinema, estava contribuindo para elevar o nível dessa arte: um espectador mais bem informado exigiria maior qualidade dos filmes. Parte do projeto pedagógico baziniano tem aí sua origem. Assim como também uma certa postura realista:

A lente dá ao cineasta a matéria bruta. […] E o papel da encenação será dar a impressão de que não existe encenação. Não uma estudada criação da “significação” através da interpretação ou cenário, mas um trabalho simples de “restituição”. Não um trabalho de expressão artística intencional, mas um esforço técnico de descrição. Precisamente devido a esse realismo primordial,

103

Ibidem, p. 79. “...beauty is an attribute only of the imagination, and not of the world.”

104 Ibidem, pag. 79.

105Ibidem, p. 50. “Despite this reputation as an omnivorous intellectual, Bazin had begun specializing in literary

theory. At the Maison he most often discussed, and occasionally lectured on, the modern novel. Like so many other Frenchmen of his generation, he was overwhelmed by “the new American style” of Hemingway, Faulkner, and, especially Dos Passos. The importance of these novelists for a theory of cinematic narrative was not lost on him.”

isso [o papel da encenação] não está no material cinematográfico ou, se posso dizer isso, na arte, mas somente nas conexões, comparações e elipses106.

Como escreveu no catálogo do “Festival du Cinéma Maudit”, em Biarritz, Leenhardt sempre defendeu um cinema da inteligência, que ele sentia estar faltando na produção francesa. Talvez por isto mesmo realizou alguns filmes a partir da década de 40: Les dernières vacances (1948), Le Rendez-vous de minuit (1961) e Une fille dans la montagne (1964), e cerca de sessenta curtas-metragens, a maioria deles sobre escritores: Paul Valéry, (1961), Jean-Jacques Rousseau (1957), Victor Hugo (1951), por exemplo. Foi como a própria encarnação da inteligência que Jean-Luc Godard o convidou para dar um depoimento em Une Femme Mariée (1964), ele que já havia escrito que Leenhardt era “o teórico de cinema mais sutil, na França107”.

Mas o empurrão decisivo, para Bazin, em direção à crítica de cinema, foi, por um lado, o fato de ter falhado num exame oral (ele era gago) da École Normale Superieure, quando falaria sobre Racine e Baudelaire, e isto apesar de ter feito uma brilhante prova escrita (ele poderia tentar no ano seguinte o mesmo exame, mas nunca fez isso); por outro lado, quando, em 1939, se encontrou em Bordeaux, para servir ao seu regimento militar, sem nada para fazer, ele e um amigo, Guy Léger (a família deste possuía uma cadeia de cinemas na cidade) passaram a ver toda espécie de filmes, e a discutir sobre eles. Em pouco tempo, a paixão pelo cinema estava instalada. A partir daí, Bazin encadeou uma série de atividades e realizações que contribuiriam enormemente para mudar o cinema francês, num primeiro momento, e depois, parte do cinema

106 Ibidem, pp. 31-32. Esta citação foi retirada por Dudley Andrew de um texto de Roger Leenhardt, “Le Rhythme

Cinématographique”, pp. 631-632. “The lens gives the cinéaste brute matter. [...] And the proper role of the mise-en- scène of the production will be to give the impression that there is no mise-en-scène. Not a studied creation of “significance” by means of acting and décor, but asimple job of “rendering”. Not a willful artistry of expression, but a technical effort at description. Precisely because of this primordial realism, it [the proper role of the mise-en-

scène] is not in the cinematographic material or, if I may say so, in art, but only in connections, comparisons, and

ellipses.”

107 GODARD. Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, tome 1, p. 100. “Le plus subtil théoricien de cinéma en

mundial, como conseqüência dos seus escritos e de sua ação. Primeiramente, ele abriu um cineclube, na Maison des Lettres, dentro da qual atuava, durante a ocupação alemã. Nesse cineclube, mais de uma vez Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir apareceram108. Um pouco depois da liberação, começou a escrever em alguns jornais e revistas: Le Parisien Libéré, France- Observateur, L’Écran Français, Esprit, Les Temps Modernes. Escreveu para vários tipos de leitores: estudantes, trabalhadores, intelectuais, cinéfilos. Um pouco depois do fim da Segunda Guerra, começou a abrir cineclubes em Paris, na França, e na Europa, e até mesmo na África (Marrocos), em escolas, fábricas e sindicatos. Falava sobre e discutia muitos dos filmes que via, indistintamente, com todo mundo, inclusive, é claro, nas apresentações que fazia em cineclubes: “[...] Bazin falava sobre filmes como se estivesse discutindo Dostoievsky. Depois de certo tempo, isso não parecia mais impróprio109”. Quando, em 1946, Jean-George Auriol reabriu a Révue du Cinéma – que havia existido por cerca de três anos na década de vinte (1927-1930), e que publicara artigos de André Gide, Philippe Soupault, Drieu La Rochelle, Eisenstein – Bazin foi um dos mais brilhantes contribuidores. Quando essa, por sua vez, foi fechada novamente (1948), a luta de André Bazin para dispor de uma revista que ao mesmo tempo explicasse os clássicos do cinema, mas também defendesse o melhor cinema moderno, deu origem ao Cahiers du Cinéma. A construção de uma platéia para um cinema mais inteligente, na França, e no mundo inteiro, teve em André Bazin um dos seus mais dedicados operários e teóricos.

Nos seus escritos ensaísticos e teóricos, Bazin desenvolveu, sem ingenuidade, uma das mais inteligentes defesas de um certo realismo, um cinema que respeitasse o mundo e as relações cósmicas entre as coisas, e entre as coisas e os homens. Defendeu o cinema da profundidade de campo e do plano-seqüência, pois estes recursos, segundo Bazin, “entregavam” o mundo de uma

108 . ANDREW. André Bazin, p. 56.

109 ANDREW. André Bazin, p. 89. “[...] Bazin spoke about films as if he were discussing Dostoevsky. After a while,

maneira mais completa e automática (a câmera, com seu mecanismo, e o filme, com sua existência química, prescindiam da intervenção humana, até certo ponto). Escreveu, portanto, que “[...] o cinema chega aqui à sua plenitude, que é ser a arte do real110”. Como afirmou Antoine de Baecque, para Bazin existia um automatismo “inconsciente” da câmera, que devia ser respeitado:

A liberdade do pintor é de recompor o real seguindo a consciência do pincel que ele maneja; a liberdade do escritor é de recriar o real graças à virtuosidade da sua pluma; a liberdade do cineasta é de registrar o real seguindo o inconsciente da sua mídia, a câmera111”.

Andrew insiste nesse automatismo: “primeiro, o cinema registra o espaço dos objetos e entre objetos. Segundo, o faz automaticamente, isto é, de modo não-humano112”. Mas a escolha dos cineastas da preferência de Bazin sempre foi respeitar esta continuidade espaço-temporal, que para ele era como um dado primário do cinema.

Estava claro para ele que o cinema, entretanto, não filmava a realidade, diretamente, pois “... a matéria prima do cinema não é a própria realidade, mas o desenho deixado pela realidade no celulóide113”. Para Bazin, portanto – e também para Jean-Luc Godard, no seu ensaio “Pour un cinéma politique”, publicado na Gazette du Cinéma, número 2 – o cinema não é meramente uma representação da realidade, mas se torna parte desta mesma realidade. Bazin atacou o cinema da montagem, pois esta manipulava a realidade; defendeu os neo-realistas, Orson Welles, Jean Renoir, Murnau e Eric von Stroheim, pois com eles o cinema passava a ser um instrumento de encontro entre uma apreensão ativa e um campo fenomênico dado114.

110 BAZIN. Qu’est-ce que le cinéma? IV. Une esthétique de la réalité: le néo-realisme, p. 124. “[...] le cinéma touche

ici à sa plenitude qui est d’être l’art du réel.”

111 BAECQUE. Les Cahiers du cinéma, HISTOIRE D’UNE REVUE. Tome I: À l’assaut du cinéma. 1951-1959. “La

liberté du peintre est de recomposer le réel suivant la conscience du pinceau qu’il manie; la liberté de l’écrivain est de recréer le réel grâce à la virtuosité de sa plume; la liberté du cinéaste est d’enregistrer le réel suivant l’inconscience de son médium, la caméra.”

112 ANDREW. As principais teorias do cinema, p. 116. 113 Ibidem, p. 117.

Mas o que ele escreveu sobre a relação do cinema com a literatura marcou o jovem Godard tanto quanto o que escreveu sobre a especificidade do cinema : esses textos são absolutamente contemporâneos ao período de descobrimento do cinema por Godard e pelos “jeunes turcs”. Num primeiro momento, examinando algumas adaptações para o cinema de romances clássicos, ele chega à paradoxal constatação de que, em muitos casos, a preocupação em tornar cinematográficos seus personagens ou intrigas produz obras que não se parecem em nada com o original, empobrecem o cinema e a linguagem cinematográfica; enquanto outros diretores, preocupados em respeitar a obra original, em produzir equivalências, potencializam o cinema, multiplicando o seu poder pelo poder da literatura e sua linguagem.

Em alguns ensaios, ele dá o passo definitivo, e o que escreve se parece singularmente com que estava dizendo Alexandre Astruc (seu amigo e companheiro, e que escrevia, como Bazin, em Les Temps Modernes, La revue du cinéma e L’Écran Français), mais ou menos na mesma ocasião. Primeiramente, ele nota que certos filmes com roteiros originais (ele estava examinando, nesta passagem, Paisá, de Roberto Rossellini) se parecem mais com o estilo de certos escritores (Hemingway) do que filmes portanto realizados a partir de um romance deste autor: Por quem os sinos dobram (For whom the bell tolls, 1943), de Sam Wood, por exemplo, que se parecia muito mais com outros filmes de aventura. A conclusão é inevitável: isto já anuncia um tempo em que o cinema será independente do romance e do teatro: “talvez porque os romances serão escritos diretamente no filme115”.

Num texto antológico, “L’Évolution du Langage Cinématographique” (síntese de 3 outros ensaios, publicados em 1950, 1952 e 1955), depois de examinar como se desenvolveram e evoluíram as formas cinematográficas, ele conclui dizendo mais uma vez que, “[...] nos tempos

115 BAZIN. Qu’est-ce que le cinéma? II. Le cinéma et les autres arts, p. 32. “Mais peut-être parce que les romans

do cinema mudo, a montagem evocava o que o realizador queria dizer, em 1938 a decupagem descrevia, hoje, enfim, podemos dizer que o diretor escreve diretamente no cinema [...] o cineasta é [...] enfim, o igual do romancista116”. Bazin defendeu decididamente um cinema “impuro”, que utilizasse não só os recursos de artes “nobres”, como a literatura e o teatro, mas também recursos de atividades mais populares, como o circo, o teatro de variedades e o romance folhetim. Para ele, o cinema não ganharia nada ficando na linguagem exclusivamente cinematográfica, se ela existisse, como afirmavam os teóricos que discutiam o “específico fílmico”, mais ou menos naquele momento. Para Bazin, como diria Baecque, “o cinema não pode existir senão devido ao fato de que ele é atravessado por outros olhares117”.