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Literatura, poesia, filosofia e ciência em Alphaville

A ciência aparece, também, como intertexto em Alphaville. Em vários momentos, a fórmula da relatividade, E=mc2, e suas variações são mostradas – em néon, na maioria das vezes, mas também impressas e coladas num móvel (armário), por exemplo – no filme; também ouvimos referências a cientistas importantes do século vinte: rua Enrico Fermi e boulevard Heisenberg, assim como a uma “avenida das Radiações Luminosas396”. Numa sociedade que pretende ser exclusivamente racional, e que nega absolutamente os sentimentos, a ciência passa a ser a única linguagem permitida.

Um cientista em Alphaville, com seu(s) nome(s), resume toda uma série de questões, ideológicas e formais. Trata-se de Leonard Nosfératu (nome que tinha nos países exteriores), aliás, Professor von Braun (seu nome em Alphaville). Como Professor von Braun, ele lembra Werner von Braun, o cientista alemão responsável pelos foguetes V-2, que foram usados para bombardear Londres durante a Segunda Guerra Mundial; posteriormente, ele foi responsável, também, pelo programa de foguetes americanos durante a corrida espacial397. Como Nosfératu, ele lembra o Conde Drácula, do filme de Murnau, um vampiro, nome singularmente apropriado, que acrescenta mais uma característica inquietante a Alphaville, esta verdadeira antiutopia totalitária. A reunião do nazista (von Braun) a um vampiro (Nosfératu) no seu nome, nos envia ao expressionismo alemão, e ao livro de Siegfried Kracauer, From Caligari to Hitler398, onde o autor reivindica que o cinema expressionista, em termos de forma e conteúdo, foi uma premonição do nazismo. Do expressionismo alemão, aliás, Alphaville carrega alguns traços notáveis: principalmente a luta formal entre a luz e a sombra, o claro e o escuro. Outros detalhes apontam

396 Ibidem.

397 Em 1965, ano de realização de Alphaville, Werner von Braun era o responsável pela tecnologia americana de

foguetes.

para a ligação Alphaville/nazismo/campos de concentração: os números impressos no corpo, que todos os habitantes carregam nas costas. Uma das personagens tem este número inscrito na testa: na seqüência que ela aparece, todos entram num elevador onde há a sigla SS399.

Enquanto Alpha-60 faz uso de Borges e Schopenhauer, Lemmy Caution responde com outros filósofos e alguns poetas. Perguntado pelo supercomputador “o que sentiu ao atravessar os espaços galácticos?400”, ele responde que “o silêncio destes espaços infinitos me amedrontou401”, uma citação muito conhecida de Pascal. Logo em seguida, diante da pergunta “qual é o privilégio dos mortos”, ele diz que é “não morrer mais”, uma colocação de Friedrich Nietzsche em A gaia ciência402. Novamente questionado, “qual é a sua religião”, sua resposta – “creio nos dados imediatos da consciência” – faz referência ao título de um livro de Henri Bergson, Essai sur les donnés immédiates de la conscience403. A imagem que nos é mostrada durante este questionário: o rosto de Lemmy Caution, alguns microfones que se deslocam e (em segundo plano) as paredes vidradas de uma sala. A voz grave, lenta e arrastada do computador faz as perguntas ao herói do filme.

Nesta mesma seqüência, quando Alpha-60 pergunta “o que transforma a noite em luz?”, e Caution responde “a poesia”, ele está citando Jean Cocteau404. Esta capacidade da poesia, de transformar a noite em luz, isto é, o escuro em claro, é uma antítese trabalhada pelo diretor durante todo o filme: do escuro absoluto ao claro quase total, eis o que Godard procurou em

399 Além de fazer alusão à polícia secreta nazista, esta sigla faz reverência, provavelmente, a sous-sol (subsolo, em

francês).

400 GODARD. Alphaville, 1965. Videolar.

401 Ibidem. Todas as referências – neste parágrafo, e no seguinte – às perguntas de Alpha-60 e às respostas de

Lemmy Caution, nos remetem a esta cópia do filme, e às suas legendas em português.

402 As referências a Pascal e a Nietzsche no filme de Godard podem ser encontradas em d’ABRIGEON, Julien. Jean-

Luc Godard, cinéaste-écrivain. http://tapin.free.fr/godard/memoire.html (consultado em março/ 2007)

403 BERGSON. Essai sur les données immédiates de la conscience. Paris: Presses Universitaires de France, 1958. 404 Citado em BERGALA. Godard au travail, p. 250: “escrever, para o poeta, é metamorfosear a noite em luz...”

termos concretos de iluminação e filmagem. Numa mesma seqüência, o filme passa muitas vezes do claro para o escuro e vice-versa. Segundo Marie-Claire Ropars-Wuilleumier, é devido exatamente ao totalitarismo noturno e escuro de Alphaville que a poesia, isto é, a luz, se torna possível: “...o mundo mesmo de Alphaville suscitava a poesia: pois se a poesia transforma a noite em luz, somente o mergulho na noite permitiu o nascimento da luz405”.

Um outro poeta aparece no segundo interrogatório. Quando o computador diz que achará a resposta para o enigma proposto por Lemmy Caution, este diz que “se achá-la, irá se destruir ao mesmo tempo, pois vai virar meu semelhante, meu irmão”, Godard está fazendo referência ao poema “Au lecteur”, do livro Les fleurs du mal406. Ao achar a resposta ao enigma, o computador

realmente se destruirá, pois terá entrado na dimensão temporal, eminentemente humana. É interessante chamar a atenção para um fato: Baudelaire chama seu leitor de “meu semelhante, meu irmão”. Em Alphaville, é ao computador que é dirigida esta frase. Quanto a Shakespeare, ele também é citado em Alphaville. Quando uma séductrice pergunta a Lemmy Caution se ele quer dormir, ele responde “sim, dormir...sonhar, talvez407”, uma citação de Hamlet, Prince of Denmark408.

É de outra ordem uma série de citações que acontecem quando Lemmy Caution se encontra com seu amigo Henry Dickson. Quando este recebe uma “séductrice” num quarto de hotel bastante dilapidado, ele procura transformá-la através da imaginação, e recebe-a com os nomes de uma cortesã, uma rainha, uma personagem feminina, e até mesmo uma escritora: “entre

405

ROPARS-WUILLEUMIER. L’écran de la mémoire, p. 101. “[...] le monde d’Alphaville lui-même suscitait la poésie: car si la poésie transforme la nuit en lumière seule la plongée dans la nuit a permis la naissance de la lumière.”

406 “Hypocrite lecteur – mon semblable, - mon frère”, em BAUDELAIRE. Les fleurs du mal, p. 16. 407 GODARD. Alphaville, 1965. Videolar.

senhora marquesa409...Meu casaco, senhora Récamier... obrigado senhora Pompadour...Ah, Madame Bovary410...Maria Antonieta... Madame de La Fayette411...”412.

Sempre em busca de palavras, de inscrições, da escritura mesma, Godard (e seu personagem, Lemmy Caution) procura, em Alphaville, as palavras proibidas, aquelas palavras inúteis ou subversivas que o dicionário censurado não mais registra, e que por isto mesmo passam para o reino da poesia: segundo Natacha von Braun, em diálogo com Lemmy Caution, ultimamente haviam sido proibidas “pintarroxo, chorar, luz de outono413, ternura414”. Exatamente como escreveu Ropars-Wuilleumier:

...quando certas palavras desaparecem, e a sintaxe se quebra, estas mesmas palavras emergem em liberdade do dicionário censurado e, purificadas, aprendidas de novo, elas se encontram restituídas ao estado poético. É à procura destas palavras que Godard se movimenta...415

Pensando em todos estes usos de autores e obras em Alphaville, vale a pergunta: citação ou plágio? A maior parte dos analistas se inclina pela citação. Assim, por exemplo, Alain Bergala, que escrevendo sobre este filme, diz que Godard “...renovou a tradição da citação, fazendo dela, durante anos, uma peça mestra de sua poética”416. Alan Martin é ainda mais afirmativo: “o cinema de Godard é a arte da citação, da colagem417”. Mas é inegável, também, que Godard muitas vezes cita sem esclarecer quem é o autor. Em muitas ocasiões, não só não

409

Será que Henry Dickson está se referindo à marquesa da celebre frase de Valéry, “a marquesa saiu às cinco horas”, e que postula o problema da narração romanesca? Ver GUIGUE/LEUTRAT. Godard, simple comme

bonjour, p. 76. Godard criará toda uma sequência, em Pierrot le fou, sobre essa frase de Valéry. Ver quarto capítulo dessa tese.

410 Personagem-título do livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary.

411 Autora do romance clássico da literatura francesa, La princesse de Clèves. 412 GODARD. Alphaville, 1965. Videolar.

413 Nome de um romance de William Faulkner, muito presente nos filmes de Godard 414 GODARD. Alphaville, 1965. “Rouge-gorge, pleurer, lumière d’automne, tendresse.”

415 ROPARS-WUILLEUMIER. L’écran de la mémoire, pag. 100. “[...] lorsque certains mots disparaissent et que la

syntaxe se brise, ces mêmes mots émergent en liberté du dictionnaire censuré, et, purifiés, appris à nouveau, ils se trouvent restitués à l’état poétique. C’est à la quête de ces mots que procède Godard...”

416 BERGALA. Godard au travail, p. 249. “[…] a renouvelé la tradition de la citation, en en faisant au fil des ans une

pièce maîtraisse de sa poétique.”

417 Em “Recital: three lyrical interludes in Godard”, um ensaio da autoria de Adrian Martin, publicado no livro de

atribui a autoria, como modifica os textos. Nestes casos, sem dúvida, podemos falar de plágio, e em Godard como um “ladrão de palavras”. Mas o uso que ele faz do plágio tem praticamente a mesma mecânica da citação: trata-se simplesmente de um intertexto, que entrando em relação com o seu “texto centralizador” cria a significação. Exatamente como entende Michel Schneider, “o plágio [...] um procedimento de escritura como outro qualquer, às vezes reivindicado como o único418”. Nesta acepção forte do conceito, é perfeitamente possível enquadrar algumas passagens de Alphaville, e da obra de Jean-Luc Godard, como plágio. Ou como intertexto.