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Em vários momentos, como vimos, a Odisséia faz referência a poetas, cantores, aedos (seu personagem principal é um deles); de igual maneira, chama a atenção repetidas vezes para a

narração, narradores, e o ato de narrar e compor estórias; e também para as condições em que tudo isso acontece. As primeiras linhas do poema são exatamente para propiciar a perfeita composição da própria obra: “canta para mim, ó Musa, o varão industrioso que, depois de haver saqueado a cidadela sagrada de Tróade, vagueou errante por inúmeras regiões, visitou cidades, e conheceu o espírito de tantos homens...285”. Vários aedos aparecem na Odisséia, desde o primeiro canto, ainda no palácio de Ítaca; atos narrativos dentro de atos de narração acontecem várias vezes (a mais notável delas são os quatro cantos que o próprio Odisseus narra para os féaces; como escreveu Frontisi-Ducroux, “as narrações de Ulisses são, então, enquadradas pelos cantos de um aedo, contados no interior da narração de conjunto da epopéia286”); a narração trata de si

mesma a todo instante.

Por isso mesmo, uma das leituras possíveis do épico homérico sempre foi a de que o tema dessa obra era ela mesma, e a maneira de conseguir produzí-la. Nesse sentido, escreveu Tzvetan Todorov que

Ulisses não quer voltar a Ítaca para que a história possa continuar. O tema da

Odisséia não é o retorno de Ulisses a Ítaca; esse retorno é, ao contrário, a morte da Odisséia, seu fim. O tema da Odisséia são as narrativas que formam a

Odisséia, é a Odisséia ela mesma287.

Da mesma maneira, ao escrever sobre o Canto XI, a viagem ao Hades, Frontisi-Ducroux diz que “Em nenhuma parte dessa narrativa, contudo extremamente perversa que é a Odisséia, essa história de narrativas, em nenhuma parte o texto fala tanto de si mesmo. O canto é seu próprio objeto288”.

285 HOMERO. Odisséia, p. 11. 286

FRONTISI-DUCROUX. Homère et le temps retrouvé, p. 542. “Les récits d’Ulysse sont donc encadrés par les chants d’um aède , racontés à l’interieur du récit d’ensemble de l’épopée.”

287 TODOROV. Poétique de la prose, p. 30. “Ulysse ne veut pas rentrer à Ithaque pour que l’histoire puisse

continuer. Le thème de l’Odyssée, ce sont les récits qui forment l’Odyssée, c’est l’Odyssée elle-même.”

288 Ibidem, p. 548. “Nulle part dans ce récit pourtant extrêmement pervers qu’est l’Odyssée, cette histoire de récits,

O tema de Le mépris é o próprio cinema; nessa fita, um filme está sendo feito; seu tema, uma adaptação que está sendo trabalhada, como o próprio Le mépris, que pode ser considerado a adaptação de duas obras: Il disprezzo e a Odisséia. Quase todos os processos de feitura do próprio filme são mostrados ou aludidos: discussões sobre a adaptação possível e, portanto, sobre o roteiro a ser feito; exibição do copião, cenas já filmadas, numa cabine de projeção, com direito a projecionista e maquina de projetar; várias cenas onde filmagens estão acontecendo. Aparecem, a todo o momento, câmeras, microfones, claquetes, iluminação, trilhos para a realização de travellings, um assistente de direção (o próprio Godard) e equipe. Ouve-se a voz de Godard, insistentemente, em vários momentos, dando ordens, na sua capacidade de assistente de Fritz Lang. Um homem falando italiano traduz suas ordens em altos brados. O filme mostra a si mesmo, as suas próprias entranhas, numa situação quase especular.

O primeiro plano-seqüência do filme – aquele no qual Godard recita quem realizou o filme – na verdade, é uma imagem em abismo, onde o filme se espelha e fala de si mesmo, diretamente. O que vemos é a secretária Francesca Vanini, enquanto anda lentamente e lê um livro, na Cinecittá, sendo filmada por Raoul Coutard (fotógrafo de Le mépris, e de quase todos os primeiros filmes de Godard), num travelling lentíssimo. O plano começa em profundidade de campo, bem longe da câmera que pode ser chamada de nossa câmera, a câmera de Le mépris, através da qual podemos ver o filme: as outras que aparecem na fita filmam a Odisséia. Quando a câmera na qual está o fotógrafo Raoul Coutard chega perto da nossa, ele pára, e usa o fotômetro. Depois, gira a câmera em nossa direção, em panorâmica, e faz um movimento com ela para baixo. Nesse momento, ela está filmando exatamente nossa câmera, duas câmeras se olham e se filmam inquisitivamente. É nesse momento que a voz de Godard, depois de falar todos os créditos, diz: “o cinema, dizia André Bazin, substitui diante de nosso olhar, um mundo que se

conforma aos nossos desejos. Le mépris é a história desse mundo289”. Ao começar o seu filme com essa epígrafe recitada, e não escrita290, Godard faz várias coisas. Primeiramente, ele está afirmando que o que normalmente vemos, diretamente, sem a intermediação do cinema, não nos satisfaz, verdadeiramente: pelo menos, “não se conforma aos nossos desejos”. Em segundo lugar, que o cinema está fundamentalmente ligado à nossa capacidade desejante. Ao dizer que o cinema se “conforma aos nossos desejos”, ele está perguntando a nós: quais são exatamente os nossos desejos, os desejos dos espectadores, em geral, já que os filmes são realizados para eles, mais especificamente, para a capacidade de projeção-identificação dos espectadores? Pois o cinema é feito exatamente para satisfazer esses desejos. Mas está perguntando a si mesmo, também: qual é meu desejo? Pois é ele quem o está dirigindo, para o nosso deleite, de espectadores. E faz à equipe que trabalha no filme a pergunta: quais são os desejos de vocês? O cinema é, também, uma arte que envolve a criatividade de uma equipe. A imagem de uma câmera filmando outra, das duas se filmando, remete essas perguntas a uma reflexão especular, circular, sem um verdadeiro fim, na qual qualquer tentativa de resposta remete a novas perguntas. O mistério olhando o mistério, de frente.

De outro ponto de vista, este plano seqüência é sobre si mesmo, assim como um dos cantos de Homero, como afirmou Frontisi-Ducroux, é sobre si mesmo. Pois essa não é uma filmagem da Odisséia, de Lang: a roupa de Francesca Vanini é moderna e ela não é atriz do filme

289 GODARD. Le mépris, p. 13. “Le cinéma, disait André Bazin, substitue à notre regard um monde qui s’accorde à

nos désirs. Le mépris est l’histoire de ce monde.” Na melhor tradição borgiana, essa é uma falsa atribuição. Vários comentadores procuraram essa frase na obra de Bazin, sem nunca a encontrar. Encontraram-na, ou uma outra, muito parecida, num ensaio de Michel Mourlet (um apaixonado de Fritz Lang, que pertencia a uma escola de crítica, chamada “Mac Mahon”, que apareceu exatamente para defender a obra de, entre outros, Fritz Lang, Joseph Losey e Otto Preminger, os maiores gênios do cinema, seguindo essa escola crítica), no Cahiers du Cinéma número 98: ... le

cinéma est un regard qui se substitue au nôtre pour nous donner un monde accordé à nos désirs... (“...o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo conformado aos nossos desejos.). MOURLET. In “Sur un art ignoré”, Cahiers du Cinéma 98, Aout 1959, p. 34.

290 A epígrafe, no cinema, geralmente aparece na forma escrita. Como, por exemplo, no quarto longa-metragem de

Godard, Viver a vida (1962), anterior a Le mépris, que tem a seguinte epígrafe de Montaigne: “Il faut se prêter aux autres et se donner à soi même” (“É preciso se emprestar aos outros e se dar a si mesmo”). Ver em GODARD. Vivre

de Lang. Um plano real (ou fictício) de Le mépris, que não foi usado no filme de Godard, ou que quer passar essa impressão... Novamente, estamos em pleno movimento circular, especular, imagem em abismo uma vez mais, onde o referente está totalmente ausente. Sim: assim como a Odisséia, Le mépris é também um filme sobre si mesmo, além de ser um filme sobre o cinema, sobre um diretor e a direção, sobre o processo de adaptação e roteirização. Le mépris é um filme sobre como narrar Le mépris.