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Um filme como Alphaville é um exemplo perfeito da tendência godardiana para o inventário (o número de obras listadas é enorme), e particularmente para o uso que fez dos gêneros cinematográficos. Nesta obra, o agente secreto Lemmy Caution viaja para a capital de uma outra galáxia, Alphaville, onde tem a missão de descobrir, trazer de volta ou matar o professor Leonard von Braun, aliás, Leonard Nosfératu. Realizada em 1965, a fita se passa num futuro indefinido; um computador todo-poderoso dirige e planeja a vida numa galáxia distante, e como tal, o filme é uma ficção-científica. Logo nos primeiros minutos do filme, por exemplo, os faróis do carro do herói iluminam brevemente um pôster onde está escrito: “Alphaville. Silêncio.

367 Maciel, A memória das coisas, p. 13.

Lógica. Segurança. Prudência369”. Uma música algo ameaçadora sublinha esta mensagem. Isto faz lembrar exatamente o início de um romance de ficção-científica, 1984, de George Orwell (menos a música, é claro), onde o herói do romance lê um pôster onde está escrito “GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É PODER370”. As mensagens não são exatamente iguais, mas o tom é parecido: seguro de si mesmo, restritivo, ameaçador. Assim como o uso da linguagem na Oceania e em Alphaville: na Oceania, a língua oficial é o “Newspeak”, uma linguagem cujo “vocabulário diminuía a cada ano, em vez de aumentar. Cada redução era um ganho, pois quanto menor a área de escolha, menor a tentação de pensar371”. Uma das características principais de Alphaville, ressaltada por Natacha von Braun, por exemplo, é que algumas palavras desaparecem, de tempos em tempos, proibidas que são pelo poder totalitário que governa a cidade. Logo no começo do filme, assim que chega em Alphaville, Lemmy Caution diz que eram “24h17m, hora oceânica”; isto lembra “Oceania”, o “país” no qual a ação de 1984 se passa. Aliás, o clima político de terror totalitário, de um poder extremamente racional e desumanizante, é comum neste gênero, o da ficção-científica. Pode-se afirmar, portanto, que Alphaville dialoga intertextualmente com 1984, mas, também com o gênero como um todo, nas suas duas vertentes: a literária e a cinematográfica.

Da mesma maneira, pode-se dizer que Alphaville é, também, um filme policial: o personagem age como um detetive particular, procura pessoas, realiza uma investigação para responder a alguns enigmas. O filme abunda em signos deste gênero (literários e cinematográficos): revólver bem tradicional (e não armas futuristas, como na ficção científica),

369 “Alphaville. Silence. Logique. Securité. Prudence”. Uso aqui, e estarei usando, a partir deste momento, as

legendas em português do filme Alphaville, cópia vídeo, gravado da TV Cultura. No fim desta cópia, está escrito LEGENDAS VIDEOLAR. Quase sempre, as legendas são traduções acuradas ao que é dito em francês. GODARD.

Alphaville, 1965, videolar.

370 “WAR IS PEACE. FREEDOM IS SLAVERY. IGNORANCE IS STRENGTH.” ORWEL. 1984, p. 7.

371 “[...] vocabulary grew smaller instead of larger every year. Each reduction was a gain, since the smaller the area

isqueiros, cigarros, lutas corporais, mulheres fatais (as “séductrices”, numa versão irônica e godardiana) e, para terminar, a citação de um clássico do gênero, À beira do abismo372, de

Raymond Chandler: a capa da tradução francesa, Le Grand Sommeil, da coleção “série-noir”, aparece logo no início do filme. Lemmy Caution ordena a uma “séductrice” que segure o desenho de uma pin-up em cima da cabeça, segura o livro de Chandler em frente dos seus olhos e dá dois tiros com seu revolver, que acertam os seios da pin-up: aqui, Godard faz outras adições às citações que realiza: sexo, revolver, violência, mulheres fatais, algo que não falta nunca no gênero policial, sejam as obras romanescas ou cinematográficas. Além do mais, este filme foi produzido para o ator Eddie Constantine, que interpretara anteriormente uma série de obras neste gênero, com o mesmo personagem, Lemmy Caution, inspirado no escritor inglês de romances policiais Peter Cheney. Apesar de tudo isto, o diálogo intertextual do filme de Godard é mais com o gênero policial e seus signos, do que propriamente com alguns romances ou filmes.

Mas Alphaville pode ser considerado, também, um western, gênero tipicamente cinematográfico. O topos clássico do duelo figura destacadamente na fita: Lemmy Caution e o computador Alpha-60 disputam verbalmente o filme todo e questionam-se várias vezes. O duelo é encenado através da linguagem: ao final, um enigma de Lemmy Caution, que Alpha-60 parece solucionar, o destrói, como antecipara o personagem principal. Ou, como escreveu Bergala, “[..] os planos do começo do filme correspondendo a uma sábia abertura de western: o herói chega à cidade373”. O próprio Godard chegou a dizer que

não se sabe quem é ele, esse personagem de Eddie Constantine; ele chega, descobrem-se coisas sobre ele, unicamente pelos diálogos que se estabelecem entre as pessoas, como num western, Rio Bravo (1958) [...] aqui é exatamente igual, há um xerife que [...]chega a um lugar e depois vai embora374.

372 The Big Sleep, de Raymond Chandler.

373 “[…] les plans du début du film correspondant à une ouverture de western: le héros arrive dans la ville.”

BERGALA. Godard au travail, p. 239.

Como se pode ver, não somente uma verdadeira listagem e enumeração de gêneros, mas também o seu uso efetivamente narrativo. Em todos estes gêneros, ou em quase todos, Alphaville está citando, homenageando, parodiando, plagiando às vezes, na verdade, dialogando intertextualmente com toda uma tradição, além de, eventualmente, fazer referência a algumas obras específicas.

O primeiro longa-metragem de Godard, Acossado (À bout de souffle, 1959) também era um policial; o terceiro, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 1961) usava as estruturas da comédia musical; O pequeno soldado (Le petit soldat, 1960) era um filme de espionagem (Lemmy Caution, entre outras coisas, pode ser visto como um espião, à la 007); A chinesa (La chinoise, 1967) é um dos muitos filmes políticos da sua obra (alguns outros: Made in USA, 1966; Pravda, 1969; Lutte en Italie, 1969; Vladimir et Rosa, 1971; Tout va bien, 1972 etc., etc.). Um filme político: Alphaville encena a luta entre um totalitarismo fascista, encarnado pelo computador, e um humanismo individualista, defendido por Lemmy Caution. Susan Sontag comenta esta capacidade godardiana de usar vários gêneros e, no final, fazê-los explodir

...os filmes de Godard não se relacionam univocamente com nenhum gênero único. O caráter aberto dos seus filmes não quer significar a superexploração de um gênero em particular, [...], mas a devoração sucessiva dos gêneros375.”

Parece que toda a obra godardiana está estruturada em torno da idéia de gênero, que ele usaria como base para a criação de suas ficções: desta maneira, ele contaria, de início, com a adesão mais fácil do espectador, já acostumado a este tipo de agenciamento narrativo, onde qualquer ficção sempre contém alguns elementos repetidos. Mas o cinema de gêneros é, para Godard, um ponto de partida, nunca um ponto de chegada; mesmo os gêneros literários, e suas

375 Sontag, Styles of radical will, p. 162. “Godard’s films don’t relate unequivocally to any single genre. The open-

endedness of Godard’s films doesn’t mean the hyperexploitation of some particular genre […], but the successive devouring of genres.”

convenções, são usados por ele apenas como uma estrutura fácil de ser usada, e que tem a vantagem extra de forçar as comparações, de convidar ao jogo intertextual. Diferentemente do cinema clássico americano, com suas estruturas narrativas necessariamente invariantes (ou quase: mesmo nas narrativas clássicas existe um prazer perverso de desviar da norma em algum ponto), Godard usa de começo as fórmulas de todos estes gêneros, mas explode-as, quase sempre, na continuação das suas histórias e na construção de seus filmes.

Primeiramente, fazendo uma mistura – exatamente como em Alphaville, mas também em quase todos os seus outros filmes – na qual, em qualquer das suas obras, temos alguns elementos não somente de um gênero, mas de vários: desta maneira a classificação unívoca já fica impossibilitada. Mas ele mina, também, este cinema narrativo de uma maneira ao mesmo tempo direta e insidiosa: a uma linguagem cinematográfica clássica a que este tipo de fita corresponderia, Godard antepõe o uso de um cinema de invenção, de que ele foi um dos pioneiros já na década de cinqüenta (herdeiro assumido que ele é de Orson Wellles, Murnau e Rossellini, cineastas-inventores da linguagem). Desde o tempo em que atuava na revista Cahiers du Cinema, Godard sempre falou de sua admiração pelos cineastas da linhagem (e de linguagem) clássica; ao passar para a direção, atualizou essa admiração citando suas obras e seus nomes, utilizando algumas vezes também os gêneros nos quais se exercitaram. Paradoxalmente, foi um cineasta que usou de recursos modernos e inovadores: em vez do cinema de projeção-identificação dos seus mestres, fez um cinema brechtiano do distanciamento e da inteligência; em vez do cinema quase realista, narrativo, dos cineastas que admirava (Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Otto Preminger, Fritz Lang, John Ford), optou por uma obra claramente metalingüística, intertextual e polifônica, com constantes referências ao fazer cinematográfico (e literário), e ao fato de que seus filmes não eram imitações naturalistas da realidade, mas exatamente filmes. Desta maneira, estão presentes no seu cinema tanto uma linguagem clássica, que é homenageada e inventariada,

quanto uma linguagem inovadora e criativa, que é efetivamente inventada e usada por Jean-Luc Godard.