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Odisseu, como descrito por Homero, é um personagem cheio de qualidades e capacidades: ele é, ao mesmo tempo, rei, guerreiro, chefe e até mesmo carpinteiro. Corajoso, ousado, cheio de recursos, todas essas capacidades, ele as exercita com competência e gosto. Mas existe uma outra competência que Odisseu valoriza tanto quanto as outras, senão mais: o uso da palavra e do discurso. De fato: o personagem homérico, em vários e muitos momentos da Odisséia, não somente expressa extrema admiração pelos muitos aedos que ouve, passa a ser, ele mesmo, um aedo, celebrando com competência suas próprias façanhas. Nessa tarefa, como veremos, ele é vivamente admirado por praticamente todos os seus ouvintes.

Tzvetan Todorov já notara essa divisão do herói: “existem dois Ulisses na Odisséia: um que vive as aventuras, e o outro, que as conta265”. Anterior a este contador, e como que inspirando-o e precedendo-o, temos o Odisseu ouvinte deliciado (ainda que choroso) das suas próprias aventuras. E ele expressa essa admiração em termos extremamente calorosos, valorizando ao máximo o trabalho, por exemplo, do aedo Demódoco:

Para os homens que vivem na terra, os aedos são merecedores de honra e de respeito, porque a Musa lhes ensinou seus cantos; e a Musa ama a casta dos cantores. [...] Demódoco, és de todos os mortais aquele a quem mais reverencio: ou a Musa, filha de Zeus, te ensinou teus cantos, ou Apolo; pois cantas como se os tivesse presenciado ou ouvido cantar a alguma testemunha266. [...] Quanto a

mim, julgo nada haver de mais agradável do que ver todo um povo exultar de alegria, e convivas reunidos na sala de um palácio prestando atenção a um aedo...267.

265 TODOROV. Poétique de la prose, p. 30. “Il y a deux Ulysses dans l’Odyssée: l’un qui court les aventures, l’autre

qui les raconte.”

266 HOMERO. Odisséia, p. 78. 267 Ibidem, p. 81.

Odisseu, nesta passagem, estava atento à manifestação dos deuses no canto dos aedos (na Grécia homérica, não podemos falar da poesia como a única manifestação do sagrado, como disseram Hölderlin e Blanchot, se referindo a épocas mais modernas; mas podemos falar, sim, da poesia como uma das manifestações do sagrado; talvez, a mais importante): quem lhes ensinou o canto foram as filhas de Zeus (as musas) ou Apolo, outro filho de Zeus. Talvez por isso mesmo, ele, a própria testemunha dos fatos que vai narrar, se arrisca a contá-los, mas precavendo-se, logo no início dessa narrativa, modestamente, quanto à técnica a ser empregada na sua própria narração: “...não sei por onde deva começar, nem terminar esta narração. Começarei por declarar meu nome...268”. Ele não somente narra, mas questiona como fazê-lo: isso não é coisa de um

praticante ocasional, mas de um artista preocupado com sua arte e com os efeitos dela no seu público, e como chegar com segurança a esse último.

Segue-se a narração de Odisseu, que perdura por quatro cantos, onde ele conta (e canta) vários episódios (ciclopes, Circe, viagem ao Hades, sereias, vacas de Hélio, etc.) para a corte dos féaces. Ao final, o narrador da Odisséia descreve a reação atenta e embevecida da sua platéia ao seu canto “... na sala cheia de sombras, todos se mostravam encantados e permaneciam imóveis e em silêncio.269” Antes, no meio da narração da sua viagem ao Hades, o rei Alcino reagira à sua performance, elogiara sua arte, e ainda comentara que, se o estilo que empregara era belo e agradável, não tinha sido menos verdadeiro, sagrando-o assim um verdadeiro aedo:

Ulisses, ao olhar para ti, não te reputamos um daqueles impostores ou trapaceiros, como tantos que a negra terra sustenta por toda parte, forjadores de mentiras que ninguém logra perceber. Se teus discursos são graciosos, teus pensamentos dão prova de lealdade. Contaste-nos com a arte de eloqüente aedo as dolorosas tribulações sofridas pelos Argivos e por ti270”.

268 Ibidem, p. 81. 269 Ibidem, p. 120. 270 Ibidem, p. 107.

Odisseu conseguiu, no seu poema, o que somente os verdadeiros poetas conseguem: entrelaçar, definitivamente, beleza e verdade (diante de uma urna grega, John Keats vai escrever que “a beleza é a verdade, a verdade a beleza271”). Para entrelaçar as duas capacidades do seu herói, guerreiro e poeta, Homero – quase ao final da sua obra, já com Odisseu no seu palácio, prestes a trucidar todos os pretendentes – constrói uma metáfora belíssima, uma arma que soa como um instrumento musical, a lira, e canta como um pássaro, a andorinha:

Mas o industrioso Ulisses, apenas sopesou e examinou o grande arco em todos os sentidos, sem custo o vergou, do mesmo modo que um homem experimentado na arte da lira e do canto retesa facilmente a corda com uma cravelha nova, depois de fixar de ambos os lados a bem torcida tripa. Depois, tendo tomado com a mão direita a corda, experimentou-a, tendo se desprendido dela um som claro, semelhante à voz da andorinha272.

São inúmeros os comentaristas que, a partir dessas evidências, vão consagrar Odisseu não somente um guerreiro, mas um verdadeiro aedo. Françoise Frontisi-Ducroux, em seu ensaio capital, repete esse tema obsessivamente:

O ápice de sua ascensão heróica, a façanha suprema, é então a maestria da linguagem, o dom da poesia, mais ainda que a coragem exigida por uma expedição ao Hades. O herói que, antes mesmo de começar a contar, tinha feito o elogio a uma existência centrada na poesia, é ele próprio feito poeta273. [...] o

único e verdadeiro herói é o que sabe dizer274.

Norman Austin não é menos claro no seu livro Archery at the dark of the moon. Ele chega a dizer que a performance de Odisseu como poeta, garante-lhe não só mais presentes, como também o retorno a Ítaca: são os féaces, os espectadores privilegiados do seu poema, que, finalmente, depois de dez anos de tentativas infrutíferas do próprio personagem, vão conseguir

271 Tradução de CAMPOS. Linguaviagem. p. 153. No original, KEATS. The Complete Poems, p. 346. “Beauty is

truth, truth beauty”.

272

HOMERO. Odisséia, p. 196

273 FRONTISI-DUCROUX. Homère et le temps retrouvé, p. 543. “Le sommet de son ascension héroïque, l’exploît

suprême, c’est donc la maîtrise du langage, le don de la poésie, plus encore que le courage exigé par une expédition chez les morts. Le héros qui, avant de se mettre à raconter, avait fait l’éloge d’une existence centrée sur la poésie, est lui-même fait poète.”

entregá-lo a Ítaca: “Quando suas palavras tomam forma de poesia, o rei e a rainha ficam emocionados e admirados, demonstrando isso através de mais presentes e a garantia de uma segura viagem para casa275”. Segundo Austin, naquela corte, ele aprende a “substituir o charme das drogas pelo charme da poesia276”.

Assim como Odisseu que, entre outras coisas, consegue ser um poeta, um cantor, um narrador, assim também Fritz Lang: ele é, da mesma maneira, cineasta, roteirista, narrador, poeta, enfim. Sempre se pensou que Paul seria Odisseu, em Le mépris (talvez por ser o marido de Camille, a possível Penélope, desejada por um “pretendente”?). Mas ele é tipicamente um “neurótico moderno” (palavras de Lang para definir o personagem que Prokosch e Paul querem criar): fraco, irresoluto e incapaz de decidir qualquer coisa. Como artista, apresenta poucas realizações, e sente-se incapaz de realizar o que deseja: o contrário de Odisseu, em suma.

Mesmo antes de aparecer, a personagem – uma soma de personagem e ser real, que chamarei, abreviadamente, de personagem – é lembrada por ato um heróico: Paul Javal lembra que Lang, convidado por Goebbels para dirigir a cinematografia alemã, em 1933, preferiu não aceitar e fugir da Alemanha Nazista277. A essa lembrança, Prokosch responde: “não estamos em 33, mas em 63278”, como se dissesse, “eu tenho maneiras de obter o que Goebbels não conseguiu, obrigá-lo a fazer o que quero”. Essa ligação ideológica entre Goebbels e Prokosch é evidenciada um pouco mais tarde quando ele, respondendo a uma ironia de Lang (“finalmente, você

275 AUSTIN. Archery at the dark of the moon, p. 200. “When his words take shape as poetry the king and queen of

the society are moved to open admiration, which they demonstrate with yet more gifts and the guarantee of a safe passage home.”

276 Ibidem, p. 200. “... to replace the charm of drugs with the charm of poetry.”

277 Antes de lembrar e dizer isso, e depois Prokosch dizer a ele que quer vê-lo escrevendo mais cenas para a

Odisséia, Paul afirma: “não acredito que ele aceitará.” Prokosh responde com um seco: “O dinheiro é meu.” GODARD. Le mépris, p. 18. “...Je ne crois pas que Lang acceptera/ It’s my money.”

compreendeu a cultura grega279”), diz: “quando ouço a palavra cultura, saco meu talão de cheque280”. Como já comentado anteriormente, ao lidar com o produtor – uma pessoa que se identifica com os “deuses” e que, segundo o cineasta, é um ditador – a atitude de Lang é irônica, resistente, paciente, determinada, e sobretudo estóica, mas corajosa. É essa paciência que, em última análise, vai dar a Lang a última palavra, no fim do filme (Prokosch morre num acidente de carro, e Lang, ao que tudo indica, vai terminar o filme à sua maneira).

Jean-Luc Godard, quando escolhe um ator, não está pensando somente na sua capacidade de interpretação ou se ele é adequado para o personagem que imaginou. O contrário é verdadeiro: ele adequa o personagem ao ator que vai interpretá-lo; isso ele aprendeu com Jean Renoir, via Bazin. A personalidade do ator, os personagens que ele interpretou na sua carreira, a persona que ele projeta no mundo, tudo isso é usado por Godard para compor um personagem e o filme. Jack Palance, por exemplo, na década de 50, interpretou uma grande quantidade de gângsteres e pistoleiros: a violência, histeria, agressividade e até mesmo “maldade” que ele quase sempre projetava nos papéis que interpretou tornam seu personagem em Le mépris (Jeremiah Prokosch) – um produtor violento, agressivo, imperioso, quase fascista – imediatamente identificável. Brigitte Bardot, em Le mépris, não é somente uma atriz interpretando o personagem da datilógrafa, mulher do roteirista, como descrito por Moravia; seus olhares, sua maneira de interpretar, de dizer e de sentir, de andar, pertencem ao “mito” Brigitte Bardot e fazem parte das características de Camille.

A mesma coisa no que se refere a Lang: ele não tem somente as características que Godard criou para seu personagem. Ao contrário, ele traz para o filme traços de sua história

279

GODARD. Le mépris, p. 27. “Finally you get the feel of the Greek culture.” Anteriormente, furioso com o que tinha visto das filmagens de Lang, Prokosch arremessara uma lata de filme como se fosse um disco.

280 Cópia do filme, Criterion Collection. “When I hear the word culture, I bring out my checkbook.” Essa frase é a

que está no filme. O roteiro completo, que tenho usado nessa análise registra, nessa passagem, “I bring here the world culture, I bring out my check.” Aqui, Prokosch está parafraseando Goebbels, “quando ouço falar em cultura, saco a minha Lugger”.

pessoal; foi em grande parte devido a ela e ao fato de Godard amar e respeitar sua obra, que ele o chamou para interpretar o personagem do diretor, invertendo o romance de Moravia. Parte dessa história aparece e é comentada no filme: o episódio com Goebbels; algumas das obras primas, que realizou nos Estados Unidos (O diabo feito mulher, Rancho Notorious, 1952) e Alemanha (M, o vampiro de Düsseldorf, 1932); o intelectual sofisticado que cita Hölderlin, Dante, Corneille e Brecht281, entre outros exemplos possíveis. Mas parte dessa história, embora submergida (e não comentada explicitamente), está presente o tempo todo. Como, por exemplo, o fato de Lang ter sido o criador de duas obras épicas, Os Nibelungos, 1924 (parte I, Siegfried; parte II, Kriemhilds Rache) – baseadas num poema épico alemão, Das Niebelungenlied, do século XII ou XIII, com acréscimos de sagas escandinavas, Wagner282 e Hebbel283 – onde o diretor havia como que celebrado a sua nova cidadania alemã (ele havia nascido na Áustria, em Viena): muito apropriado que o diretor do épico Os Nibelungos tenha sido contratado e esteja dirigindo a Odisséia284. Roteirista de quase todos os seus filmes alemães (vários dele escritos com sua mulher, Thea von Harbou, inclusive os dois épicos), em Hollywood ele praticamente só dirigiu; numa das poucas

281 De Brecht ele cita o poema que, na tradução brasileira (de Geir Campos), recebeu o nome de “Hollywood”: “Toda

manhã, a fim de ganhar a vida,/lá vou eu para o mercado onde se compram mentiras;/esperançoso,/entro na fila dos vendedores.” BRECHT. Poemas e canções, p. 131. No filme, quando Camille pergunta “o que é isso” ( “qu’est-ce que c’est”), Lang responde “Hollywood. Extraído de uma balada do pobre B. B.” (“Hollywood. Une extrait d’une ballade du pauvre B. B.”). Paul pergunta: Bertolt Brecht?, e Lang confirma: ironia dupla, pois reenvia às iniciais pelas quais Brigitte Bardot (que participa desse diálogo) era conhecida. GODARD. Le mépris, p. 66. É bom chamar a atenção da importância da obra de Brecht para Godard em geral, e em Le mépris em particular. Godard sempre procurou “distanciar” seus espectadores de um envolvimento emocional com os filmes que dirigia, apelando, ao contrário, para seu senso crítico e sua inteligência, como fazia o dramaturgo alemão. Em Le mépris, utilizou do metacinema para chamar a atenção do espectador para todas as fases de fabricação de um filme: discussão do roteiro, filmagem, exibição do copião, etc. A esse propósito, ver o comentário de Robert Stam no DVD da Criterion Collection de Le mépris.

282 Principalmente uma das óperas de Richard Wagner (1813-1883), O Anel dos Nibelungos (Der Ring des

Niebelungen).

283

Principalmente a trilogia de Friedrich Hebbel (1813-1863), Die Niebelungen. Thea von Harbou chegou a interpretar Kriemhield numa montagem teatral dessa trilogia.

284 Perguntado por Paul por que ele chamara Lang para dirigir a Odisséia, Prokosch responde: “Porque a Odisséia

precisa de um diretor alemão, todo mundo sabe que um alemão, Schliemann, descobriu Tróia.” GODARD. Le

mépris, p. 18. “Because the Odyssee needs a German director, everybody knows that a German, Schliemann, discovered Troy.”

vezes que roteirizou um filme nos Estados Unidos, trabalhou com Bertolt Brecht em Hangmen also die (1943), direção sua.

Mais relevante para Le mépris e a Odisséia, ainda: Fritz Lang ficou longe de sua pátria (quer a consideremos como Alemanha, ou Áustria) por cerca de vinte anos. Embora não tenha voltado a morar na Alemanha (morreu em 1976, em Los Angeles), seus três últimos filmes são produções alemãs. Mesmo que sua mulher de então (até 1933) tenha ficado na Alemanha (ela era uma ardente nazista), quando Lang saiu do país, eles já estavam divorciados, apesar de uma certa afeição e preocupação por ela terem durado por toda a vida.

Portanto, se quiséssemos falar de um personagem, em Le mépris, que fosse uma adaptação intersemiótica mais próxima da personagem principal da Odisséia, não poderia ser Paul Javal, o roteirista (e muito menos o Ricardo Molteni de Alberto Moravia). Poderia ser (e foi) Fritz Lang, um Odisseu sem Penélope, que não era nem guerreiro nem rei, e que não tinha poder político nenhum – mas que enfrentou decididamente os nazistas não só na Alemanha, mas depois, nos Estados Unidos, também, fazendo alguns filmes de “propaganda” contra eles; um deles, em 1943, com roteiro conjunto dele e Brecht – mas que era astuto, resistente, decidido e corajoso como Odisseu e, como este, um narrador, um poeta que conseguiu atingir e emocionar seu público repetidas vezes. O personagem do diretor, em Le mépris, com algumas características criadas pela imaginação e desejo de Jean-Luc Godard, somadas à figura real de Fritz Lang, funciona perfeitamente como uma leitura moderna do herói maior da Odisséia.