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Roes Dalmolin

3. As três periferias brasileiras

O projeto de pesquisa que relatamos na presente comunicação dá continuidade ao projeto contemplado com Bolsa PQ do CNPq (2008-2011) sob o título Brasil, mostra tua cara. A ambivalência de fronteiras e favelas na cobertura jornalística sobre as periferias. O projeto teve como questão- problema a reconstrução sócio-semiótica e a compreensão significacional da ambivalência na cobertura jornalística sobre as periferias nacionais e metropolitanas.

Os resultados obtidos permitiram refletir sobre a cobertura jornalística realizada pela mídia no que concerne ao cotidiano das periferias nacionais (Fronteiras Internacionais do Brasil) e como suas representações as mantêm atreladas a um imaginário de situações recorrentes articulados pela ausência de estado, caos e violência que persiste mesmo com o fim da Ideologia de Segurança Nacional e da Guerra Fria. A mídia nacional observa prática semelhante quanto à cobertura de acontecimentos ocorridos nas periferias metropolitanas (Favelas) o que, em certa medida, acaba por contaminar a cobertura que as mídias locais fronteiriças realizam de seu cotidiano. Postulamos que a interpretação sócio-semiótica da discursividade midiática permit entender como é que as alegorias da nação continuam a se constituir em limites político, social e cultural no mundo globalizado. E sua discursivização, antes que representação de uma realidade insustentável e precária, faz-se expressiva das ambiguidades contidas neste início de sociedade global (Silveira, 2008).

Outra análise trata da questão da ambivalência e foi abordada em Silveira (2009) através das apropriações do outro na cobertura jornalística, tomadas como vicárias do projeto moderno, o qual tem na interpretação de Zygmunt Bauman (1999) duas faces: (1) a armadilha e (2) a vingança da ambivalência. A conversão em notícia de acontecimentos ocorridos em periferias como as favelas metropolitanas e as fronteiras internacionais se processa através de um enquadramento ambivalente que as toma genericamente como um outro marcado pela ânsia de expansão do projeto moderno, o qual tem no imaginário sobre as periferias um caso arquetípico.

Observando-se a proposição de Fredric Jameson (1995) sobre as transformações do olhar, avaliaram-se as coberturas jornalísticas de ambas as periferias em quatro revistas semanais brasileiras (CartaCapital, Exame, IstoÉ e Veja), dos anos de 2006-7-8 segundo a incidência de um olhar colonizado, burocrático ou pós- moderno (Silveira, 2009). Constatou-se que a incidência dos olhares instaura- se ao modo de devorações do outro, as quais supõem vários modos de olhar. Jameson (1995) aponta a emergência nos anos 70 do olhar burocrático ou foucaltiano; é quando o olhar se combina com o saber, tornando-se um instrumento de medição. Assim convertidas em outro, fronteiras e favelas estão à mercê de apropriações jornalísticas que se fazem vicárias do projeto moderno.

O artigo expõe as implicações para a noticiabilidade jornalística com vistas a chegar a uma compreensão sobre como sua atividade de cobertura atua enquanto intérprete que confere um caráter rígido à mesmidade periférica. Desponta na análise a reificação obtida com a mensuração

do outro e seu mundo pelo olhar burocrático, a qual conduz à negação da alteridade, à negação da diferença de visibilidade, perfilam-se a cobrança de disciplina, de controle e de dominação, é difícil não relacionar certa prática jornalística com o momento e o olhar burocrático, bem como à dimensão de poder aí contida. E ao alinhar-se tão rigidamente com a perspectiva que o poder instituído constrói relativamente aos modos de ver, sugere-se que o jornalismo está se apropriando de um exercício de dominação ao construir juízos através da noticiabilidade.

A utilidade do alinhamento periférico e sua construção de mesmidade comum favorecem estabelecer uma via expressa que liga acontecimentos produzidos nas Fronteiras Internacionais e nas Favelas, configurando-os como atividades articuladas para as quais a ambivalência significacional permite consagrar cara e coroa: as mazelas do Rio de Janeiro têm origem no descontrole das fronteiras quando nestas se permite o contrabando de armas e drogas. Um mercado que por sua vez alimenta a vorágine comercial do comercio internacional em nossas fronteiras.

Estabelecido o roteiro interpretativo que empresta sentido a acontecimentos disparatados pela factualidade cotidiana, percebemos que uma outra dimensão agrega à metáfora do amplo quebra- cabeças que o senso-comum empresta ao noticiário jornalístico. As coberturas de revistas semanais apresentam-se copiosas ao relatar fatos que afetam um dos mais caros tesouros da nação brasileira e fonte permanente de preocupações internacionais, qual seja a Amazônia:

Uma análise sistemática de Época e IstoÉ em abril de 2008 expõe o tema. Três esquemas podem sintetizar a abordagem construída por ambas as revistas. Na primeira, a Amazônia é apresentada como fronteira e são evidenciados os problemas relativos à ausência do Estado naquela região. As matérias enfocam os temas de queimada, desmatamento, tráfico ilegal de madeira, narcotráfico, guerrilhas, indígenas e disputa por terras. A segunda consiste em focar a diplomacia entre os países. Trata-se de notas que apresentam as relações em aspectos de rivalidades, competições financeiras, desentendimentos políticos e disputa pela hegemonia nas fronteiras. Mesmo quando o conflito não é a principal informação, a temática é fomentada indiretamente. As matérias categorizadas expressamente como fronteiras territoriais, terceira possibilidade de abordagem, são quase inexistentes. Seus registros, quando ocorrem, seguem a mesma linha das demais: conflito, tensão, desordem, abandono (Silveira, 2009: 08).

A partir da análise e reflexão procedida, oportunizou-se o reconhecimento da outra periferia, ademais das duas já identificadas. Assim, ao reconhecimento da pertinência de estudo da presença de Fronteiras Internacionais e Favelas no noticiário nacional, adicionou-se a Amazônia Legal, a qual consiste em cerca de 60% do território brasileiro.

A incorporação da Amazônia enquanto um terceiro espaço periférico implica a ampliação de temas abordados pela cobertura jornalística.

Conforme registramos no projeto anterior e destacamos nas publicações dele decorrentes, o estudo da cobertura da mídia impressa no tema das fronteiras internacionais brasileiras reitera o condicionamento da atitude profissional que reproduz um noticiário viciado em torno de alguns elementos recorrentes: violência urbana e rural (assaltos, assassinatos, perseguição política a cidadãos de países vizinhos em território brasileiro); terrorismo (vínculos com grupos terroristas islâmicos e colombianos); exclusão social (imigrantes e trabalhadores estrangeiros sem documentos e/ou direitos legais, clandestinidade, pobreza) e contravenções legais (sementes transgênicas, alimentos, roupas e eletro-eletrônicos, abigeato, tráfico sexual, armas e drogas). Grande parte dos problemas reitera-se na crônica de favelas metropolitanas: violência urbana (assaltos, assassinatos, latrocínio); tráfico de drogas e de armas (vínculos com o crime organizado e quadrilhas internacionais); exclusão social (imigrantes estrangeiros e trabalhadores de outras regiões brasileiras, déficit de cidadania,

O condomínio sul-americano: Inserção colonial e cobertura jornalística da mídia de referência brasileira || Ada Cristina Machado Silveira, Isabel Padilha Guimarães & Aline Roes Dalmolin

pobreza) e contravenções legais (prostituição de menores, venda de eletroeletrônicos sem nota fiscal, distribuição de armas, drogas, cópias piratas de softwares e de material audiovisual).

São os acontecimentos sobre descaminhos, título jurídico genérico para os crimes contra a ordem tributária, que mais incidem sobre os critérios de seleção de notícias, tomando os espaços periféricos como periferia particular do Estado- nação. Uma atividade que traz sensíveis repercussões em termos de política de identidade e repercute na formação de uma identidade deteriorada dos espaços nacionais.

Assim, a categoria de descaminho engloba atividades consideradas ilícitas e passíveis de imputação legal aplicáveis aos importadores em larga escala, comerciantes de todo tipo ou sacoleiros que suportam sob o vigor físico de seu próprio corpo mercadorias que depois serão distribuídas em centros urbanos muitos quilômetros distantes.

No entanto, o espaço amazônico adiciona ao rol um outro ingrediente, o ambientalismo. O deputado Aldo Rebelo comenta o ambientalismo em termos que nos permitem sua incorporação ao paradoxo existente entre as dimensões de segurança pública e de segurança nacional, já estabelecido sobre os temas anteriormente referidos.

A internacionalização da questão ambiental acusa o que ele toma como falta de zelo pelo patrimônio territorial do Estado brasileiro (Rebelo, 2010: 200), e que é exemplificado com a possessão da Guiana pela Inglaterra em 1904, numa disputa com o Brasil. Ele afirma que “soberania e intervenção em questões ambientais precisam ser desmontadas das armadilhas erguidas para dissimular interesses” (Rebelo, 2010: 204) e enfatiza que se o tema da soberania já está assentado, o de intervenção ainda necessita debate. E debate não se dá sem esclarecimento público, para o que a cobertura jornalística se faz instrumento fundamental.

Já em outro artigo, apresentado no XX Encontro Nacional da Compós (Silveira, 2011) prosseguimos na reflexão sobre o diálogo entre noções do imaginário midiático e do imaginário da cultura nacional com vistas a proceder a algum tipo de avaliação sobre como os processos comunicacionais noticiosos efetivam o controle do poder político sobre amplas camadas sociais pertencentes às periferias. Uma das principais características analisadas manifesta-se pela armadilha da ambivalência significacional, a qual consideramos caracterizar um aspecto fundamental do enquadramento perseguido na cobertura de acontecimentos ocorridos em distintos espaços periféricos brasileiros. Obviadas em sua concretude e contexto histórico, as favelas tomadas como periferias metropolitanas são alinhadas a outras periferias como aquelas localizadas nas fronteiras internacionais. Seu noticiário conduz ao constrangimento de um imaginário policêntrico e que se encontra segregado.

A segregação é tão feroz que o escape se dá apenas em exemplos tomados como o refúgio dos diferentes, as exceções que consistem de matérias enquadradas em faits divers ou mesmo na economia da cultura. Na postulação do aparecimento da vingança da ambivalência recordamos o que Bauman (1999: 190) diz: “ela não é para ser lamentada, mas para ser celebrada”, já que é o limite de poder dos poderosos. Nossa reflexão pondera que, se é certo que na ambivalência vivem as populações periféricas, sua realidade cotidiana, quando privada da lente que amplia o sentido dado pela perspectiva internacional, não tem atrativo para grande parte do noticiário. Apenas fazem-se documentar em seu oposto dialético, o das produções artísticas de mercado consumidor amplo e assegurado (hip hop, Nollywood e outras).

Assim, no artigo analisa-se como a ambivalência significacional incide discursivamente em processos tão distintos como o de segurança pública, de identificação e reconhecimento de si ou das relações internacionais (Silveira, 2011), reiterando a perspectiva de dispositivo panóptico de alerta. Algo que no presente projeto já se delineia grosso modo como o conflito entre duas dimensões: a de segurança pública frente a uma outra anterior, a de segurança nacional.

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