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Da palavra oral à palavra

2. Moçambique no final do século XIX : joguete entre ingleses e portugueses e a guerra contra Ngungunhane

3.2. A escrita do príncipe herdeiro

Nas culturas ágrafas nativas de Moçambique, na época do reinado de Ngungunhane, nos anos 1884 a 1895, já se fazia presente o colonizador e sua língua na perspectiva oral, escrita e impressa.

Em Ualalapi, Manua, filho de Ngungunhane, escreveu, conforme a obra, suas íntimas impressões sobre o seu pai e sua cultura de origem, nos anos 1892 a 1895: O moço era um assimilado que recusava a tradição depois de ter estudado no liceu de artes e ofícios, na ilha de Moçambique.

Nos escombros da antiga capital de Gaza foi encontrado o diário de Manua, iniciado em 1892, quando ele retornava para sua família depois de ter concluído os estudos. Ao comer peixe, alimento interdito para sua etnia, teve uma reação estranha, vomitou quantidades imensas que escorreram

Da palavra oral à palavra escrita: História e memória moçambicana em Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa || Denise Rocha

pelo navio. Perplexo diante da manifestação de um rito tribal, ele iniciou a escrita de um texto muito pessoal no qual chamou o pai de ignorante e feiticeiro e comentou sobre o desconhecimento do comandante a respeito da cosmogonia nguni:

Se compreendesse alguma coisa talvez entendesse o fato de eu ter sido dos poucos na minha tribo que teve acesso ao mundo dos brancos, à sua língua, aos seus costumes e à sua ciência. Mas ele não pode entender o mundo negro, os nossos costumes bárbaros, a inveja que norteia a nossa vida e as intrigas que nos matam diariamente. (Khosa, 1987: 94).

A introdução da leitura e escrita na família de Ngungunhane trouxe grandes transformações na formação e identidade de Manua que vaticinou:

Quando eu for imperador eliminarei estas práticas adversas ao Senhor, pai dos céus e da Terra. Serei dos primeiros, nestas terras africanas, a aceitar e assumir os costumes nobres dos brancos, homens que estimo desde o primeiro dia que tive acesso ao seu civismo são. (Khosa, p. 94).

Deslocado na corte real, o jovem herdeiro afundou na bebida. Um estrangeiro, Kamal Samade (ficcional), também legou em árabe suas opiniões escritas sobre a decadência do príncipe herdeiro, falecido em 1895, o ano da prisão de seu pai e do final do império dos ngunis (vátuas).

Nos Fragmentos do fim (6): O último discurso de Ngungunhane, o rei, prisioneiro dos portugueses, a bordo do navio, fez várias profecias entre as quais destacou o funesto poder do papel e o esquecimento dos nomes nativos:

Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que enlouqueceram Manua e vos aprisionarão. Os nomes que vêm dos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos de merda e vocês agradecendo. (KHOSA, 1987, p. 115).

No final da narrativa sobre a saga de Ngungunhane, o griot relata ao escritor visitante da aldeia moçambicana que era criança quando ouvia seu avô, Somapunga, lhe contar histórias sobre o rei. Ele era convicto de sua missão de divulgar a versão oral:

Morreu a dormir, sonhando alto. De manhã, ao entrar na sua cubata, vi-o deitado ao comprido, olhando o tecto. Falava. A voz tocava-me profundamente. Durante horas seguidas ouvi-o falar. Quis acordá-lo, pois já era tarde. Ao tocá-lo notei que o corpo estava frio. Há muito que tinha morrido. Tiveram que o enterrar imediatamente para que os vizinhos não nos chamassem feiticeiros. E o nosso espanto foi ouvir a voz saindo de escarpas abissais. O meu pai teve que sentar-se sobre a sepultura e acompanhar, movimentando a boca, a voz do defunto. Os vizinhos e outros familiares distantes sentiram pena do meu pai, pois pensaram que estivesse louco. Noite e dia, durante uma semana e meia, o meu pai abria e fechava a boca. (Khosa, 2013: 114).

A narrativa da trajetória de Ngungunhane contada a um escritor, que fora buscar as veracidades das versões orais tradicionais, suscitou dúvidas nele próprio:

Afastei-me da cabana que me estava reservada e virei o rosto em direcção à fogueira. Entre duas mangueiras enormes, o velho, com a cabeça entre as mãos, não via o fogo e a noite. Chorava. E eu afastava- me da cubata, do meu quarto, e atirava-me à noite de luar. Algo me intrigava no discurso do velho e de Ngungunhane. (Khosa, 1987: 125).

Conclusão

O romance Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa, desmitifica o imperador nguni, um ramo dos zulus, que invadiu o sul de Moçambique, e oprimiu povos nativos. A narrativa pode ser compreendida como uma forma de ácida resposta literária do autor a um processo político do presidente Samora Machel que lutou para o repatriamento dos restos mortais de Ngungunhane (1985), erigido como símbolo do lutador contra o poder militar do invasor português.

Na obra A literatura africana e a crítica pós-colonial-Reconversões, Inocência Mata escreve que: “O que importa hoje estudar são os efeitos das relações de poder, seja entre entidades diferentes externas, seja entre entidades que participam do mesmo espaço interno (Mata, 2007: 40). Na mesma linha de pensamento da autora, Ungulani Ba Ka Khosa elaborou Ualalapi no qual trata das relações assimétricas entre os portugueses e Ngungunhane e entre este e seus súditos chopes, entre outros subjugados, na época que o sul de Moçambique era objeto de interesse inglês.

A violenta saga do último imperador de Gaza é narrada sob duas perspectivas: de um lado, por um griot africano, permeada por vozes de personagens que o conheceram pessoalmente e prestaram depoimento ao escritor que por ali passou coletando informações sobre os onze anos da trajetória real. E de outro, por relatos históricos de europeus, iniciando com os testemunhos de dois contemporâneos de Ngungunhane -Ayres d’Ornellas e Dr. Liengme- que são controversos a respeito da personalidade real, e seguidos por relatórios portugueses de militares envolvidos nos combates: Coronel Galhardo (cerco à capital e fuga real), Mouzinho de Albuquerque (aprisionamento de Ngungunhane) e Conselheiro Correia (recebimento dos prisioneiros de guerra).

Galhardo aparece, como personagem, em um breve episódio em que ordena a destruição da capital de Gaza em cuja redondeza jaziam inúmeros corpos. Percebe que seu cavalo pisoteava o corpo vivo de um nativo ao qual pergunta sobre o paradeiro do rei. (Fragmentos do fim (2)). Após a descrição do coronel frio e calculista, o autor inclui um documento oficial escrito por Galhardo e o subverte com duras revelações sobre:

- O facto de ter profanado com um ímpio o lhambelo, urinando com algum esforço sobre o estrado onde o Ngungunhane se dirigia na época dos rituais [...].

- O roubo de cinco peles de leão que ostentou na metrópole, como resultado duma caçada perigosa em terras africanas.

- O facto de ter, pessoalmente, esventrado cinco negros com o intuito de se certificar da dimensão do coração dos pretos. (Khosa, 1987: 51, 52).

As narrativas hegemônicas, reflexos do poder das instituições legitimadoras dos discursos identitários nacionais de matriz europeia, são desafiadas por Ungulani Ba Ka Khosa em Ualalapi que evoca a tradição da oralidade para compor uma imagem do rei em reflexões literárias sobre momentos decisivos das histórias e memórias coloniais e pós-coloniais de Moçambique, administrado pelos portugueses até o ano de 1975.

Em sua obra, Khosa escolhe Ngungunhane, um protagonista “ex-cêntrico” (“metaficção historiográfica”, de Hutcheon) ao contrário: um régulo poderoso no sul de Moçambique, uma região localizada nas franjas do centro do poder hegemônico europeu, e o subverte de forma irônica, desvendando seu perfil opressor de invasor nguni. O escritor consegue descolonizar o pensamento hegemônico dos documentos históricos inseridos no romance, permitindo aos vários narradores da saga real contar suas versões da história de Ngungunhane o qual somente tem razão ao vaticinar sua apocalíptica profecia final: a colonização portuguesa seria pior que a sua.

Da palavra oral à palavra escrita: História e memória moçambicana em Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa || Denise Rocha

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africanas pós-coloniais, tanto no âmbito do colonizador como do colonizado, através de uma estética própria, que apresente as ambivalências, lutas simbólicas e o pensamento político do mundo [pós] colonial. Desta forma , este texto foi construído, a partir da ideia marxista de luta de classe, levado, entretanto, às esferas do sagrado, em que as religiosidades descritas no texto africano não seja privilegiada sob uma análise puramente teológica, mas que aborde os aparatos e a fenomenologia religiosa como uma estratégia de criação literária ou estratégia estética própria do pós-colonialismo, que vê no discurso a luta política inerente do ambiente colonial

Palavras-chave: Pós-colonialismo; Religião e religiosidade;

Literaturas africanas; Estudos culturais.

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