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ao serviço da Lusofonia:

1. Contextualização e reflexão teórica

1.1. Colonialismo, pós-colonialismo e lusofonia

Ainda que a tradição náutica de Portugal tenha sido, inegavelmente, um fator importante, bem como a tradição de cruzadas (que apelava à religião e ao patrocínio papal), a principal causa da expansão portuguesa e, consequentemente, do colonialismo, passou pelo interesse em encontrar uma “nova fonte de negócios” e uma forma de alcançar “fortuna rápida a conseguir pelos lucros de uma promissora actividade [sic] de comércio de cereais, de metais preciosos […], das especiarias, do açúcar e dos escravos” (Lara, 2002: 26).

Esta visão clara e sem disfarces das razões que levaram Portugal a partir à descoberta do mundo, como tantas vezes se afirma (e como se os povos pudessem, de facto, ser descobertos), é porém, quase sempre esquecida quando se conta a história do país, sendo apresentada, longe disso, a imagem do “Império Português” e, essencialmente, de Portugal enquanto o “Outro” desse império (Baptista, 2006a, p. 26). Este imaginário imperial é, aliás, criado ao longo dos tempos pelo próprio Salazar no imaginário dos portugueses, principalmente através dos media da época, que apresentam o regime enquanto “intérprete de um discurso histórico inexorável dos portugueses, de ‘raça civilizadora’ ou ‘génio colonizador’” (Baptista, 2006a: 26, 38).

Urge, por parte dos próprios portugueses, desmitificar a história, e colocar-se numa posição de autoquestionamento e reflexão pós-colonial (Baptista, 2006a: 25, 38), devendo o pós-colonialismo contemplar duas vertentes principais: a do período histórico que se segue à independência das colónias e “a de um conjunto de práticas e discursos que desconstroem a narrativa colonial escrita pelo colonizador e procuram substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado”

1 O projeto UNIC é uma rede de nove cidades europeias que partilham uma herança industrial e cultural comum, construída em torno de uma tradição cerâmica forte, sendo cofinanciado pela Comissão Europeia no âmbito do Programa URBACT.

(Santos, 2003: 26). Não obstante, esta reflexão não poderá deixar de ser consciente do problema que habitualmente assola os estudos pós-coloniais:

embora um dos pressupostos da teoria pós-colonial seja o desmantelamento das falsas dicotomias entre metrópole e colónia, com o intuito de (re)valorizar a produção cultural dos territórios colonizados, na realidade essas dicotomias acaba[ra]m por ser reificadas através de um processo de culpabilização dos poderes coloniais e uma admiração excessiva por tudo o que parece opor-se-lhe (Sanches, 2006: 340). Trata-se, assim, de encontrar a história real e comum a colonos e colonizados que, como sucede em qualquer relação colonial (Lara, 2002: 37), sofreram de uma “permuta de traços e padrões de cultura”, resultado do contacto estabelecido ao longo dos tempos e cujas repercussões ainda se fazem sentir nos dias de hoje. No caso do pós-colonialismo de língua portuguesa, Boaventura Sousa Santos reforça esta relação bilateral, considerando que a ambivalência decorre, para além da falta de distinção clara entre identidade de colonizador e colonizado, do facto de “essa distinção estar inscrita na própria identidade do colonizador português, a qual não se limita a conter em si a identidade do outro, o colonizado por ele, pois contém ela própria a identidade do colonizador enquanto colonizado por outrem” (Santos, 2003: 27).

Na sequência desta busca histórica, cultural e, naturalmente, linguística, aparece a ideia de lusofonia que é hoje “tema em que são investidos paixão e interesses que têm a ver não apenas com aquilo que os países lusófonos são como língua e cultura no passado, mas sobretudo com o presente e com o destino do ‘continente imaterial’ que estes países constituem” (Martins, 2006: 17). Corroborando aquilo que já vinha a ser dito na introdução, entende-se que a lusofonia é “uma construção extraordinariamente difícil […] um espaço geolinguístico altamente fragmentado, um sentido pleno de contradições, uma memória de um passado comum, uma cultura múltipla e uma tensa história partilhada” (Baptista, 2006b: 9). Note-se que desde logo o próprio nome lusofonia remete à Lusitânia, ao relativo a Portugal, e evoca a centralidade da matriz portuguesa em relação aos sete outros países, um sonho de intenção e amplitude lusíada (Brito & Bastos, 2006: 65; Lourenço, 1999: 163), contrariando o valor igualitário que se pretende numa comunidade transfronteiriça.

Harmonizando estas questões, Brito e Bastos (2006: 73, 74) formulam três princípios para a lusofonia: (a) Globalização: entende que os problemas da lusofonia e a afirmação de uma identidade comunitária que se funda na língua ultrapassam o fator linguístico e convocam globalmente governos, ONG, sociedade civil, etc.; (b) Diversificação: reconhece a heterogeneidade de cada realidade dos países que compõem a comunidade lusófona e que, do ponto de vista português, são marcados por elementos que não têm origem portuguesa; (c) Relativização: implica que a comunidade lusófona, devido à diversidade de cada realidade, é desigual e muito pouco coesa. Mais se acrescenta, que a lusofonia só faz sentido quando concebida acima das nacionalidades, distinta de qualquer perceção mítica de uma nação ou responsabilidade de preservação por parte de outra (Brito & Bastos, 2006: 74).

Eduardo Lourenço (1999: 192), numa abordagem ao novo espaço lusófono ou os imaginários lusófonos, lembra ainda que é “no espaço cultural, não só empírico, mas intrinsecamente plural, que os novos imaginários definem que um qualquer sonho de comunidade e proximidade se cumprirá ou não”, acrescentando que tal não se pede, nem se sugere, encontrar-se-á em algo como uma “antiga casa miticamente comum, por ser de todos e de ninguém”.

O turismo cultural ao serviço da Lusofonia: conhecer Aveiro através dos azulejos || Helena Cristina Vasconcelos Silva

1.2. Cultura, património e turismo

O património cultural estabelecido ao longo do espaço e do tempo torna-se cada vez mais a expressão da cultura e da identidade (Mascari et al, 2009: 22). Nesse sentido, sendo a lusofonia um espaço cultural e, eventualmente, uma identidade coletiva, é inevitável falar em cultura e património. Os estudos culturais são uma disciplina compósita, e portanto necessitam de uma análise em profundidade das várias questões sociais, políticas e éticas da contemporaneidade, apelando a uma abordagem multidisciplinar, que permita a compreensão do verdadeiro sentido do fenómeno (Smith, 2009: 6). Numa análise vocacionada para o turismo cultural, a presente reflexão foca-se especialmente na estrita relação da cultura com o património e o turismo, bem como na forma como estas relações podem funcionar na forma de uma simbiose, onde todos são beneficiados.

Primeiramente, é necessário considerar o facto de o conceito de cultura poder significar diferentes coisas para diferentes pessoas. Além disso, os processos históricos e sociais têm vindo a criar diferentes legados e sistemas de valores, e portanto nem todos os sistemas políticos suportam a cultura do mesmo modo (Smith, 2009:15). O conceito tem vindo a ser debatido ao longo dos anos, tendo sido criadas diversas definições, algumas delas resumindo-a aos comportamentos observados através das relações sociais e a artefactos materiais (Wall & Mathieson, 2006: 259). Num sentido antropológico mais profundo, Wall e Mathieson (2006: 259) consideram que a cultura inclui “padrões, normas, regras e standards que encontram expressão no comportamento, nas relações sociais e nos artefactos” (tradução nossa).

Da impossibilidade de preservar e conservar todos os elementos da cultura, advém o património cultural, que constitui a representação da cultura através da transformação do valor dos elementos culturais, enquanto resultado de uma seleção de elementos e significados (Pereiro, 2006: 24). O património cultural surge assim, nas palavras de Ballart (1997: 27, citado por Pereiro, 2006: 24) quando “um indivíduo ou grupo de indivíduos identifica como seus um objeto ou um conjunto de objetos”, e onde se evidencia o valor simbólico como característica fundamental do património. De facto, ao património respeitam mais os significados do que os artefactos em si: o valor, cultural ou financeiro, a razão para a sua seleção a partir da infinidade do passado (Graham, 2002: 1004). A ideia de que o património é definido pelos significados torna-se ainda mais complexa pelo facto de ser aplicada tanto a formas tangíveis como intangíveis de património, tal como considera a UNESCO (Graham, 2002: 1004).

Segundo Pereiro (2006: 37), é possível afirmar que os processos de transformação dos recursos em património costumam estar ligados ao turismo cultural, o que se pode observar pela análise dos programas de desenvolvimento rural da União Europeia, como o Leader ou o Leader+. Concluindo- se daqui que o turismo, no caso mais específico do turismo cultural, tem a capacidade de contribuir positivamente para o património e para a preservação de recursos, ainda que seja por vezes entendido na perspetiva de mercantilização do património cultural e que requeira de um bom planeamento e uma boa gestão. Concretizando estas ideias, na sua relação com o património cultural, o desenvolvimento turístico empreende três estratégias (Santana, 2003: 59, citado por Pereiro, 2006, p. 37): (1) Preservar e proteger espaços e saberes para o futuro e ao serviço da ciência; (2) Conservar e compatibilizar o património cultural com um uso pelo recreio orientado ao turismo de massas, democratizando o seu consumo; (3) Conservar o património cultural e aceitar um turismo minoritário e de elite. Não obstante, e ainda que também o turismo seja beneficiado pelo património cultural, que lhe “dá vida” (Boniface & Fowler, 1993: XI, citado por Pereiro, 2006: 38) por vezes o objetivo da conservação pode também entrar em confronto com os do turismo, resultando o seu abuso e estrago e pelo que estas questões devem sempre ser levadas em consideração e prevenidas.

1.3. Roteiros turístico-culturais

No sentido de planear e gerir a oferta, deve considerar-se o facto de a atividade turística se iniciar no momento no qual as imagens e os produtos são comunicados aos visitantes, sendo a linguagem turística um dos pilares da atividade (Figueira, 2010: 19). Uma das formas de o fazer corresponde à organização e estruturação de roteiros, por forma a validar a imagem percecionada do turista sobre o destino, e que permitam apresentar e interpretar os atrativos turísticos, estruturando a oferta de viagens culturais (Figueira, 2010: 20). Figueira explica que

[o roteiro] conformado numa Base de Dados digital […] assegura a inventariação dos recursos com aptidão turística, a inclusão de outros recursos passíveis, circunstancialmente ou em definitivo, de integrar no turismo, e suscita a invenção de Atractivos [sic] criados para o efeito […], considerados como pertinentes à definição de produtos turísticos característicos de um destino. Terminado esse processo inicial de estruturação dos Roteiros, segue-se, por sua vez, a elaboração de produtos apoiados naquele repositório: Rotas, Itinerários e Circuitos. (Figueira, 2010: 20)

Constituindo o roteiro um instrumento de valorização dos recursos, dos próprios territórios e do património, a sua base informativa desempenha um papel decisivo na articulação entre o turismo e a cultura (Figueira, 2010: 20). A última frase da definição leva-nos à necessidade de refletir acerca dos três últimos conceitos referidos pelo autor: rotas, itinerários e circuitos. São encontradas diferentes definições no dicionário da língua portuguesa, bem como diferentes níveis de abrangência para cada um deles, por diversos autores, contudo, todos eles apontam para a indicação de um caminho a percorrer, sendo especificados os lugares de passagem, considerando todos eles como sinónimo o conceito de roteiro (Maia, 2010: 52). Assim, ao longo das próximas páginas serão utilizados indiferenciadamente estes conceitos, considerando-se como sinónimos entre si.

Salienta-se ainda no âmbito da criação de roteiros turístico-culturais a importância da criação de conteúdos baseados numa pesquisa científica, que sejam capazes de ser transformados em histórias a contar aos visitantes, proporcionando-lhes experiências de qualidade, indo simultaneamente ao encontro dos interesses dos visitantes e dos recursos.

Nesse seguimento e com base na reflexão realizada até este ponto, segue-se a componente prática deste trabalho que pretende constituir um instrumento de apresentação e interpretação dos recursos, valorizando-os e proporcionando uma nova abordagem ao colonialismo, pós-colonialismo e lusofonia, de que se falava no início da reflexão.

2. Proposta de roteiro lusófono na cidade de Aveiro

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