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Paulo dos Anjos

4. Tradição e Folkcomunicação na Produção Audiovisual

Diferentemente da comunicação de massa, que é baseada nos processos industriais, através dos quais o comunicador estende suas mensagens de forma impessoal em sentido vertical para uma audiência informe e dispersa, a folkcomunicação é “por natureza e estrutura, um processo artesanal e horizontal, semelhante em essência aos tipos de comunicação interpessoal, já que suas mensagens

Santuário do senhor Bom Jesus do Bomfim, Salvador: Um estudo de caso sobre a tradição, a memória e a folkcomunicação na produção audiovisual ||Genivalda Cândido da Silva & Flávia Maciel Paulo dos Anjos

são elaboradas, codificadas e transmitidas em linguagens e canais familiares à audiência, por sua vez conhecida psicológica e vivencialmente pelo comunicador, ainda que dispersa”. (Beltrão, 2001: 168).

É interessante fazer uma breve síntese sobre o tema a partir do seu “criador”, que deu origem ao termo em 1967. Quando o jornalista Luiz Beltrão defendia a sua tese de doutorado na UNB1, estava criando e fazendo nascer uma nova disciplina, a Folkcomunicação, ainda pouco conhecida e pouco entendida, hoje mais difundida, com grupos de pesquisadores no Brasil e no mundo, mas ainda não tão disseminada como as disciplinas mais clássicas da comunicação. Até então, as tradições populares eram focadas por áreas como o Folclore, e as Ciências Humanas Aplicadas. Foi através de Beltrão que a análise da comunicação popular teve novo rumo e campo de pesquisa, no qual esta alocado os ex-votos.

A partir dessa colocação, os processos de entendimento e julgamento da cultura popular, ou, cultura massiva, passou a ser visto com outros olhares, principalmente de um objeto que não era muito estudado na área da comunicação: o ex-voto.

Comunicação é um fenômeno que surge quando informação, enquanto novidade precisa ser interpretada. Quando não há nada de novo, nada há a ser interpretado e comunicado. É por isso que informação e comunicação tem pouca importância em sistemas estabelecidos na tradição. (Stockinger, 2003: 12)

Luis Beltrão foi o pioneiro na fundamentação do estudo cientifíco da Comunicação no Brasil a concretizar a análise da comunicação popular, posteriormente chamando atenção para a dimensão social do folclore, difundindo-se no mundo inteiro. Diante desse fato, as tradições populares tornaram- se importantes fontes para pesquisas nas áreas dos estudos da Antropologia, Sociologia e Folclore, mas segundo o próprio autor, negligenciado pelos comunicólogos. (Beltrão, 1965: 9).

O conjunto de bens e práticas tradicionais que identificam pessoas como “o povo baiano” é, segundo Canclini (2008), o que podemos chamar de patrimônio. Para ele, não nos cabe discutir o repertório de um povo, repleto de simbologias, mas sim preservá-lo, restaurá-lo e difundí-lo para manter a união entre essas pessoas.

Ao receber solicitação de cobertura da Lavagem do Bonfim, festejo tradicional da religiosidade baiana, a primeira preocupação da equipe da TV Olhos d’água, emissora vinculada à UEFS2, foi evitar o negligenciamento das manifestações populares e do papel dos agentes envolvidos naquele processo, pensando a produção de um conteúdo audiovisual educativo que se diferenciasse das matérias factuais produzidas pelas TVs comerciais, e apresentasse a Igreja do Bomfim enquanto patrimônio referencial para a compreensão de aspectos da religiosidade da sociedade baiana.

Imagem 1. Sr. Erivaldo, vendedor há mais de 20 anos, nas escadarias do Santuário.

Foto de Genivalda Cândido da Silva

Na escolha da equipe de reportagem, Flávia Maciel e Genivalda Cândido, que há 4 anos é membro

1 Universidade de Brasília.

do GREC3 e pesquisa os ex-votos e suas tipologias, foram selecionadas para produzir a referida matéria.

A partir do material adquirido através de pesquisas em livros, jornais e periódicos, juntamente às imagens produzidas durante a pesquisa documental em fotos e vídeos produzidos em anos anteriores, unido às entrevistas gravadas com devotos, comerciantes locais, vendedores ambulantes e fixos das escadarias e entorno do santuário, inclusive com alguns viajantes que vem ao local a fim de cumprir o ritual de amarrar a fita do Senhor do Bomfim com três nós e fazer três pedidos, foi possível produzir um conteúdo audiovisual, onde é apresentada não só a história desse santuário, mas também, os papeis desses agentes sociais na perpetuação da tradição do louvor ao Senhor do Bomfim.

Imagem 2. Casal no ato de amarrar as fitinhas e fazer os três pedidos no adro da igreja do Bomfim.

Foto de Genivada Cândido da Silva

A preservação da memória social pode ser vista na tradição na frente do santuário, diariamente, pois no local existe, há tempos, o processo que Marques de Melo denomina Comunicação dos Pagadores de Promessas (2005), que passa pela fase de obtenção do objeto. E isso se dissemina para além do adro (v. Imagem 2). Está na sala de milagres e no museu dos ex-votos. Na sala, as pessoas, livremente, colocam as suas mensagens e informações através dos ex-votos; no museu, a síntese de toda essa efervescência, quando alguns dos ex-votos serão classicamente expostos.

Falar de memória é como adentrar em um museu e retirar dali informações valiosas ou curiosidades de um mundo (des) conhecido, e passar a conhecê-lo e perceber melhor. Relacionar coleções e imagens é também uma forma de verificação da concretização de determinadas coleções que passam a redundar ou compor instituições e/ou lugares de memória, que por sua vez podem abarcar o visível ou o invisível em que tanto o imaginário e o simbólico constituem a partir de uma gama de objetos (símbolos, imaginários, fantasiosos). Vale ressaltar que a importância cultural das manifestações populares propõe o entendimento e questionamentos. Roger Chartier (1995) trata a cultura e a manifestação popular como uma categoria erudita, um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. (Chartier, 1995: 176).

As imagens de comunicação de massa, principalmente as encontradas em santuários, que são retratações espontâneas, trazem consigo elementos caracterizadores da folkcomunicação nos santuários e salas de milagres. São representadas por objetos como os ex-votos, que simbolizam a ligação entre o homem e o divino. Esses elementos, chamados de artesanais de difusão, podem ser observados em variadas tipologias, como quadros pintados pelos “riscadores de milagres”, ex- votos escultóricos tradicionais feitos em parafinas, fotografias, os inusitados miomas in vitro, dentre tantos, que apoiados entre promessas e pedidos para obter uma graça via devoção, se mostram como

Santuário do senhor Bom Jesus do Bomfim, Salvador: Um estudo de caso sobre a tradição, a memória e a folkcomunicação na produção audiovisual ||Genivalda Cândido da Silva & Flávia Maciel Paulo dos Anjos

medias do povo.

Além da gratidão, o ex-voto constitui uma fonte de informação em si mesma, e quando é considerado como um objeto comunicativo é importante ressaltar a necessidade de estudá-lo no contexto onde ele está inserido para que não aconteça uma perda de significados, e haja, assim, uma reapropriação e resignificação cultural. Régis Debray (1992: 372-3) cita que a fetichização do instante e do imediato elimina as continuidades explicativas, o signo se transmuta em mero sinal e a hiperinformação redunda em desinformação.

Para identificar o sentido por trás de uma imagem ex-votiva é preciso dialogar com o contexto onde a mesma se encontra, não atendo-se apenas a expressão artística da peça, mas a sua finalidade diversional, pois a mesma contém dupla significação, além de demonstração de fé, ela carrega consigo uma experiência sociocultural comum aos seus comunicadores, interlocutores e receptores.

Como se encontra em João de Deus Gois (2004), em sua obra Religiosidade Popular, a religiosidade popular é uma expressão privilegiada da enculturação da fé :“Não se trata só de expressões religiosas, mas também de valores, critérios, condutas e atitudes que nascem do dogma católico e constituem a sabedoria de nosso povo, formando-lhe a matriz cultural”. (Gois, 2004)

Embora a sala de milagres do Santuário do Senhor Bom Jesus do Bomfim seja composta de um patrimônio importante, pois apresenta registros de parte da religiosidade da sociedade brasileira e baiana, ainda não é tão abrangente o seu significado como veiculo de comunicação de massa.

Ao pensarmos uma produção audiovisual que traduza, pelo menos em parte a religiosidade da sociedade brasileira, se partirmos do pressuposto de que estamos na Sociedade da Comunicação, composta por diversos subsistemas sociais complexos, que criam e recriam a realidade e ressignificam ideologias à medida que novos dados, atualizados, são consumidos, deveremos nos atentar ao papel do observador de segunda ordem, aqui no caso a repórter, que desenvolve um papel fundamental, refletindo acerca dos dados fornecidos pelo observador de primeira ordem, o entrevistado, para produção de um conteúdo audiovisual que possibilite a preservação e divulgação deste patrimônio.

Estando vinculado a uma TV que segue o modelo de TV pública, ao (re)trabalhar esse sistema de signos presentes no imaginário social em torno da religiosidade, o produtor de conteúdo audiovisual não deve alimentar videologias ou preconceitos, muitas vezes implícitos no texto, nas sonoras (entrevistas) e nas imagens exibidas ou até mesmo na supressão delas. Mas manter a marca da independência editorial e do compromisso maior com a imparcialidade, tornando-se, assim, um canal aberto à participação democrática, permitindo, dessa forma, que a informação sobre a tradição do louvor ao Senhor do Bomfim possa ser selecionada pelo indivíduo, codificada, decodificada, recriada e reinventada, em um processo social de comunicação, até que se torne significativa para a sociedade.

Ao produzir conteúdo que socializa informação e conhecimento acerca da tradição do louvor ao Senhor do Bomfim, além de possibilitar o debate em torno da memória social, da religiosidade e das manifestações culturais enquanto patrimônio, a produção audiovisual pode vir a se tornar mais um elemento folkcomunicacional, possibilitando uma comunicação interpessoal acerca do tema em questão.

5. Conclusão

Quando falamos em patrimônio, memória e tradição, a memória social é entendida como guardiã, mas precisa de uma história em torno daquilo que alimente as visitações e ressignifique o patrimônio. Em uma sala de milagres, onde o ex-voto tradicional, abre espaço às mídias de CDs, aparelhos celulares, computadores; onde a comunicação se faz sigilosa através dos signos contidos nas placas de agradecimentos, ou terços ofertados como agadecimento, levam o receptor a mais instigações, às

(re)interpretações dos objetos, completando assim um processo de comunicação popular.

Após análise da matéria produzida, podemos afirmar que, para além da transmissão da notícia sobre a realização dos festejos em louvor ao Senhor do Bomfim, a retomada da história original da construção da Igreja e da devoção ao santo, bem como o destaque das ações dos diversos agentes (devotos, membros da igreja, trabalhadores ambulantes, comerciantes e turistas que visitam o santuário) e de como essas ações interferem na perpetuação dessa tradição, além de valorizar o papel de cada um, possibilita a compreensão dos fenômenos religiosos brasileiros e do caráter social da memória.

Desta forma, acreditamos que a produção audiovisual pode ser entendida também como um processo folkcomunicacional, à medida em que preserva a história da tradição ao louvor do Bomfim e a ressignifica para as novas gerações a partir da cultura popular.

Referências Bibliográficas

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Resumo: Funcionando hoje como uma presença discreta

e talvez não tanto como um meio de comunicação de primeiro plano, a rádio tem, no entanto, desempenhado um papel fundamental na construção de comunidades sonoras no espaço lusófono. Estreitamente ligada à indústria da música, mais do que qualquer outro meio, a rádio tem manifestado neste domínio uma excecionalidade nem sempre devidamente reconhecida. Numa altura em que estamos todos centrados na imagem como forma quase absoluta de expressão, parecemos esquecer que uma dimensão muito significativa da nossa identidade se faz através da sonoridade que há nas coisas e nos lugares. Ao reconhecer, portanto, que as lusofonias também são constituídas por esta alma invisível, procuraremos nesta comunicação construir um argumento em torno das potencialidades da rádio para o reforço de laços históricos e simbólicos. Desenvolveremos a este título uma atenção particular ao conceito de rádio comunitária, tomando como exemplo a Rádio Ás, uma emissora online que resulta de uma parceria entre três municípios – Aveiro-Portugal; Santa Cruz (Cabo Verde); e São Bernardo do Campo (Brasil) – e se define como um veículo da lusofonia. O objetivo é pensar as estações de rádio como colónias de som habitadas por um espírito que só o ouvido pode conhecer.

Palavras-chave: Rádio; Comunidade; Lusofonia; Identidade 1. Rádio e quotidiano

A história da rádio tem sido a história de um meio discreto, mas perseverante. Ao contrário de muitos dos anúncios apocalípticos do seu desaparecimento, a rádio tem resistido àquilo que tem sido genericamente reconhecido como algumas das suas fragilidades: a ausência de imagem e o suporte em recursos exclusivamente sonoros. A estas dificuldades especialmente relevantes numa época que se define como uma civilização da imagem, a rádio tem feito prevalecer um conjunto de virtudes: a simplicidade técnica, a portabilidade, a discrição da sua presença, cuja escuta não exige exclusividade, (Portela, 2011: 27) e uma extraordinária flexibilidade para se adaptar a novas plataformas, novos dispositivos e novos modos de escuta (Jedrzejewski, 2007: 11).

Se nos primeiros anos de emissões radiofónicas, a rádio chegava a partir de grandes ‘caixas’ de som, hoje ela está integrada nos aparelhos quotidianos, do telemóvel ao carro, onde passou a fazer parte dos componentes/aplicações essenciais. Está igualmente disponível nos computadores, especialmente através do streaming dos sites das estações, fazendo parte do ambiente de muitos locais de trabalho, de lojas, de institutos públicos, cafés

Colónias de som:

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