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Reconstruir a história: caminhos entre o centro e as margens

noémia Maria Simões

2. Reconstruir a história: caminhos entre o centro e as margens

“A Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética”

José Saramago, A Jangada de Pedra Nas palavras de Boaventura Sousa Santos (2007),

“O perigo de negligenciar a economia política, o poder económico e classicista é endémico nos estudos culturalistas”.

2.1. A perspectiva de um historiador da matemática:

Nas palavras de um matemático e historiador português, Francisco Garção Stocker, no seu Ensaio histórico sobre a origem e progressos das mathematicas em Portugal :

“Debalde se intenta pois descobrir as verdadeiras causas dos acontecimentos públicos de qualquer nação, e o nexo que os prende uns aos outros, se não se atende a natureza do paiz que ela habita, e ao estado dos seus conhecimentos nas suas épocas mais notaveis. Mas se os sucessos políticos bem como as acçoens particulares, dependem intrinsecamente das ideas, conhecimentos, e opinioens individuaes dos homens; o progresso dos conhecimentos humanos também não depende menos dos sucessos , e instituiçoens politicas dos povos. Uns e outros tem a sua origem nas necessidades naturaes do homem, e nos meios que a natureza lhe offereceu para satisfaze-las: e uns e outros tem igualmente por objecto único aperfeiçoar, e dirigir esses meios, a fim de facilitar a satisfação, tanto das necessidades naturaes, como das que o aperfeiçoamento da ordem social traz necessariamente apoz si”

Francisco Garção Stocker

2.2. Abordagem crítica e metodológica

Na actual narrativa dominante sobre as questões da economia, a palavra ‘desenvolvimento’ é frequentemente entendido como sinónima de crescimento económico, ou mesmo como um véu para o próprio capitalismo [cf Santos, 2014]. Isto implica, nas abordagens mainstream, uma leitura economicista, linear e monolítica das sociedades. De acordo com esta lógica, não haveria grande escolha quanto ao modelo de ‘desenvolvimento’ a seguir, quase se impondo uma via única de ‘catching up’ a cada país que pretenda atingir os padrões dos países ditos desenvolvidos… A dominância

económica e cultural da língua (inglesa) seria também um correlato deste processo de imposição de uma cultura-mundo homogeneizante.

Quanto a nós, defendemos abordagens interdisciplinares, que passam por entender os estudos culturais como um ‘campo gravitacional ‘de abordagem à complexidade das questões culturais (Baptista, 2012), adoptando um ‘politeísmo metodológico’ (Martins, M (2012)), uma hermenêutica dialógica Santos (2007)] que permita aceder a uma outra compreensão, em múltiplas vozes e línguas, do humano e das interacções não lineares entre economia/sociedade e cultura (Louçã, F (2009)). Um entendimento que procure dar conta das múltiplas dimensões em que o desenvolvimento e as alternativas se colocam, sabendo de antemão da incompletude de todas as culturas, e que toda a ciência é uma construção social provisória.

2.3. Depois do Adeus – assumir o pós-colonialismo

Repensar a história e o lugar de cada um no mundo, é a nosso ver um passo importante para a acção colectiva.

No caso português, temos a consciência de que nalguma literatura erudita, as traduções culturais do que restou após ‘o adeus’ a um certo passado colonial se revelam a si mesmas comum misto de remorso e nostalgia, declinações ao mesmo tempo trágicas, barrocas e grotescas da nossa identidade, identificada como semi-periférica, entre Próspero e Caliban (Santos, 2007). No actual contexto de crise há o perigo de nos tornarmos cada vez mais subalternos e com falta de autonomia para enfrentar os graves constrangimentos – é cada vez mais imperioso redescobrir o lugar da ciência, da cultura no ultrapassar desta tendência, no recriar das vontades para ir além dos cabos do Bojador com que actualmente nos confrontamos, incluindo as que se avizinham no futuro. Criar novas narrativas, ser parte da mudança sistémica (para um mundo melhor) constitui ao mesmo tempo um desafio e uma chamada à transformação social sentida por diversos movimentos sociais formais e informais.

Importa reflectir sobre:

Como nos encaramos ‘Depois do Adeus’? Como reorganizamos com sentido os fragmentos da nossa história e do nosso multifacetado e caleidoscópico presente ? Como descobrimos o ‘apertado caminho da dignidade’ de cada um/uma de nós e da comunidade(s) de que fazemos parte?

O sentimento trágico de uma separação mal resolvida, a sensação de uma ‘ferida gangrenada’, a consciência de se queremos construir outro futuro, há que reconstruir vontades e procurar visões mais lúcidas da nossa história e do nosso presente no contexto global, reconhecendo que permanecem ainda sombras a combater (Lídia Jorge).

2. 4. Releituras de Os Lusíadas de Luís de Camões

Que espaço e reconhecimento damos às narrativas da nossa história, sem ficar aprisionados nos labirintos de uma saudade estéril, nem prisioneiros de más consciências pós-coloniais?

E que consciências recriamos dos novos caminhos a traçar, se nos iludimos a nós mesmos na ‘hiperidentidade’ de uma história em que nos perdemos num labirinto de saudade, do qual não parece haver saída airosa, nem futuro que lhe corresponda?…

Etno-navegações: narrativas (pós)coloniais, entre o local e o global || Noémia Maria Simões

2.5. Camões em cena – algumas leituras e narrativas actuais

“O texto dos Lusíadas é uma grande estória da vida, uma grande estória da condição humana, uma metáfora enorme da nossa condição história em qualquer tempo e lugar.

Tudo está lá, como nas grandes obras de música, nas grandes sinfonias: sub-repticiamente, insinuado nos ritmos, nos jogos de palavras, nos fôlegos de pensamento, no humor, no contraste dos andamentos …E a precisão, agudeza e, tantas vezes crueza com que Camões formula a “viagem” fazem parte da nossa memória colectiva, e a obrigatoriedade da sua leitura provoca em cada um de nós fascínio e ódio, em que ninguém pode dizer verdadeiramente que não conhece verdadeiramente os Lusíadas, mas que quase ninguém conhece verdadeiramente […] Queremos nós também [Teatro Medieval], aproximarmo-nos da nossa História, preservar a memória Colectiva de um Povo, que continua a ter no Mar a possibilidade como horizonte de todas as Viagens.

E num período do mundo em que a todos nós “Lusíadas”, afinal todos os portugueses, nos é exigido um esforço quase sobre-humano ao nível da nossa sobrevivência como nação, para o Teatro meridional – enquanto colectivo de artistas e comunicadores – faz mais do que nunca sentido exaltar, espalhar e cantar…”

“Mais do que prometia a força humana”

Miguel Seabra e Natália Luíza, in Teatro Meridional (2010).

Sobre o canto terceiro:

“Quando os poetas clamam por ajuda, sem se mostrarem, os deuses vêm. Neste caso, Camões chamou por Calíope e a musa enviou-lhe os seus favores. Bem precisava deles o poeta. Pois como poderia ele, sozinho, invocar o feliz entendimento entre os viajantes portugueses e o bom Rei de Melinde?

Como poderia, sozinho, sem ajuda divina, reconstituir o diálogo entre eles? Reproduzir a descrição que o Gama fez da Europa, para satisfazer a curiosidade do Rei? E a descrição da Península Ibérica como cabeça da Europa? E de Portugal, o quase cume da cabeça/ da Europa toda? Sim, como poderia sozinho, Camões invocar os povos europeus, e os ibéricos, e entre eles destacar a força do povo lusitano? E invocar os bravos reis Afonsos, desde Afonso Henriques, o fundador, a Afonso IV, o rei da Batalha do Salado? Passando por Dinis, o rei da poesia, da boa ordem e do progresso?”

Lídia Jorge

Sobre o quinto canto:

“Deixada para trás a pequena pátria extrema no encalço de um sonho de lonjura pelo mar imenso que haveria de trazer tragédia e glória a nautas e reis, eis que a obra (descobrimento e escritura) se expande nas tensões do vivido e do escrito, rompendo quer com a gramática pragmática, quer com a poética, nas suas já estioladas convenções. Porém, não chamaria aos Lusíadas, como fez Nemésio, tábua da lei do português, enquanto povo de missão, mas cartografia duma humanidade outra, viciosa e bárbara que seja; da pátria que deveras importa, essa que apenas a arte pode fundar, tal essa mítica Atlântida our Hésperides, que dizem ser Cabo Verde vestígio, mas que importa mais a invenção que o testemunho, e importará sobremaneira nos caboverdianos, futuro povo inventado da pátria sem nome, pois que do Cabo nos ficou apenas a denominação para uso e memória, signo e sina dos perscrutadores do meio do Atlântico, de almas temperadas de mar e maresia.”

Das ilhas dos amores …

“Não há erudito que o não recorde, ou que não se escandalize se o não recordam: a Ilha dos Amores não é apenas a “ilha dos amores”. (…). Pelo que há de concentrado nesse lugar sacral, espaço de refúgio e de eleição, quer contra a agitação do mundo profano quer perante o assalto das vagas do Inconsciente, a “ilha” é, como toda a gente sabe, convergência de inúmeros significados esotéricos; mas é também, historicamente, um extraordinário polo de atracção mítica para o Português: “ilha” nos considerámos sempre, rodeados de Espanha e de Mar, ao encontro de “ilhas” navegámos; “Ilhas começámos por descobrir; e resta saber se a nossa “colonização”, exactamente aliás como a dos gregos, alguma vez foi mais que mera criação de “ilhas” ainda quando em vastíssimos continentes se inseriam. A Ilha dos Amores – e não do Amor (curiosa distinção!) – haveria de ser, por desígnio de Vénus, a nossa grande e ubíqua realização numa transcendente realização numa transcendente unidade de lugar. De toda a maneira, Ilha inventada, Ilha de “teatro”, criada “ex nihilo – e destinada a uma única representação! Seja como for, os “amores que lá ocorrem, embora uma só vez na vida, constituem a mais indispensável antecâmara para o que de mais importante lá vem a ocorrer”

David Mourão Ferreira, in Camões, A Ilha dos Amores, Ática

3.Caminhos e navegações na busca de uma identidade

Das pedras da calçada às ilustrações que podemos contemplar em diversas estações do metro de Lisboa, são inúmeros os testemunhos e ecos das narrativas dos Lusíadas nos locais e percursos do quotidiano da cidade: em Lisboa, como entre outras paragens, torna-se evidente a relevância da arte na ‘formação’ / educação dos espíritos para a construção de uma identidade, na formação de uma consciência cosmopolita de cidadania global, etno-navegações na mira de uma humanidade universal (im)possível:

Calçada Portuguesa:

“Por lavramos o passado na calçada/num presente que amarramos ao destino/ cá nos fica um chão que leva á caminhada/ressoando em cada pedra o som mais puro/de seguirmos pela vida em devaneio/ num passeio/que nos conduz ao futuro”,

Jorge Castro in Calçada Portuguesa

“Dai-nos de novo o Astrolábio e o Quadrante/ Velas ao vento venha a partida/Há sempre um Bojador

perto e distante/Nosso destino é navegar para diante/Dobrar o cabo dobrar a vida/Dai-nos de novo a rosa e o compasso/ A carta a bússola o roteiro a esfera/Algures dentro de nós há outro espaço/ Chegaremos ainda a outro lado/ Lá onde só se espera /O inesperado”

Manuel Alegre

3.1. Luzes e sombras da ‘epopeia’ em que nos revemos...

Faltava-nos ainda contrapor outras vidas, outras visões, por exemplo as Cartas Portuguesas e as Novas Cartas Portuguesas e dar vez à voz das mulheres silenciadas, à amargura dos fados e desencontros que fazem parte do nosso património, ás desarmonias e catástrofes da nossa peregrinação, que rompem em fragmentos os casulos das histórias douradas e das ilhas dos amores…

Etno-navegações: narrativas (pós)coloniais, entre o local e o global || Noémia Maria Simões

Na perspectiva apresentada por António Trabulo, no seu livro O Túmulo de Camões:

“Luís de Camões ilustra uma das faces da epopeia. Glorificou a expansão portuguesa que está na origem do colonialismo. Cantou os feitos heróicos, a honra e a coragem. Fernão Mendes Pinto foi mais adiante. Pôs a descoberto o lado escuro da navegação e da conquista…”(op cit, p. 180).

3.2 Imagens do/a(s) outro/a[s) e (in)comunicabilidade intercultural

“Nem sempre sou igual no que digo e escrevo./ Mudo, mas não mudo muito./A cor das flores não é a mesma ao sol/ Do que quando a nuvem passa/Ou quando entre a noite/ E as flores são da cor da sombra”

Fernando Pessoa, “O Guardador de Rebanhos”, cit. por Elon Lages Lima in Espaços Métricos. De acordo com to Rómulo de Carvalho, n’ A Física para o Povo, para se estabelecer o perfil, precisamos de dois espelhos – não de um … de quantos espelhos precisaremos para compreender a identidade dos que nos estão mais distantes – para ser capaz de melhor compreender os humanos, captando as diferenças e as semelhanças que nos recriam no fluir do tempo, de modo a melhor preparar o futuro por entre as turbulências da história? Decerto que é necessário ir além da tecnologia e de uma ciência unidimensional reconhecendo, neste âmbito, a complexidade do real, a primazia da pluralidade das narrativas, das humanidades e das artes eruditas à desordem das vozes silenciadas, à feiura do quotidiano sofrido e grafitado nas zonas sombrias das nossas cidades.

Será ainda possível, apesar das distâncias sociais, culturais ou geográficas , pôr em prática os princípios do UBUNTU, ver o tu no eu, e ao mesmo tempo, reconhecer as diferenças e promover o direito a significar (Bhaba) de culturas não ocidentais? Como valorizar o conhecimento local, reconhecer a sua importância na construção de trajectórias de desenvolvimento mais autónomo e sustentado? …

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