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A lusofonia em Timor-Leste: entre

2. Um símbolo da Lusofonia

O Anjo do Timor, da escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, é, inegavelmente, um belo livro. O texto simples traz a marca da poeta, com escolhas lexicais precisas e marcantes, capazes de retratar de forma lírica um pedido de paz. Para reforçar a construção do texto, temos as ilustrações de Graça Morais, que pintou em tons de marrom a história de um povo que (sobre)vive sob o sol. Temos, assim, materializado em um pequeno livro, um trabalho harmônico de palavra e imagem, representante de qualidade daquilo que sempre esperamos encontrar em literatura.

O enredo do livro trata sobre um liurai (uma espécie de líder local timorense) que decide viajar pelo mundo para se tornar mais sábio. Em uma de suas paradas, ele conhece um mercador que contou saber da existência de um povo que acreditava em um único Deus e esperava Seu retorno à terra para salvar todos os homens. Após ouvir essa história, o liurai se mostra desejoso de conhecer o lugar onde habitava esse povo, mas logo é informado pelo mercador de que isso não seria possível, pois o país ficava muito distante. Diante dessa impossibilidade, o liurai conclui que não mais deseja viajar e decide voltar à sua terra. Chegando ao lar, escutou em seus sonhos que deveria esperar, esperar sempre, por um chamado de Deus. E assim ele fez ao longo de muito tempo, atuando como chefe justo e sábio durante o dia e, durante a noite,colocando-se à espera do sinal de Deus. Em uma noite, o mensageiro de Deus aparece diante do liurai, anunciando que finalmente havia chegado à terra, em forma de menino, o Deus pelo qual ele tanto havia esperado. O anjo informa que os reis magos já estavam a caminho para levar seus presentes. O liurai fala ao anjo que também gostaria de se juntar a eles, ao que logo é desencorajado, pois, tal como havia dito o mercador, Belém estava muito longe de Timor. Dessa vez, sem frustração, o liurai entende a distância que o separa de seu Deus e apenas pede que o anjo leve a ele seu presente: uma caixa de sândalo com algumas pedrinhas que ele usava para brincar na infância.

Desde esse acontecimento, a cada Natal o Ano de Timor se coloca diante do menino Jesus, oferecendo o presente do liurai. Em um ano especial, o anjo repete a ação e faz uma oração, que transcrevemos integralmente:

- Menino Deus, Príncipe da Paz, Deus todo Poderoso, lembra-Te do povo de Timor que por Ti foi confiado à minha guarda. Escuta as suas preces, vê o seu sofrimento. Vê como não cessam de Te invocar, mesmo no meio do massacre. Senhor, libertai-os do seu cativeiro, dai-lhes a paz, a justiça, a liberdade. Dai- lhes a plenitude da Vossa graça.

Em um Natal específico, o Anjo do Timor não pode apenas reforçar o seu habitual gesto de louvor do povo timorense. Em atitude de profunda fé, o Anjo faz uma oração pedindo auxílio a um povo que é fiel a Jesus mesmo estando tão distante dele. A prece configura o apelo desesperado de uma população que estava sendo dizimada, sofrendo todas as consequências violentas da invasão indonésia2. O pedido de auxílio é um testemunho da profunda crença dos timorenses na fé católica,

talvez uma das marcas mais profundas deixadas pela colonização portuguesa, algo reconhecido inclusive na Constituição do país3.

Pela síntese que fizemos do livro, podemos notar que, em sua simplicidade, o enredo traz reflexões profundas sobre sabedoria, paz e distância. O velho homem timorense está, ainda que livre para buscar mais conhecimento, preso a um espaço cuja distância o separa de eventos importantes que acontecem do outro lado do mundo. No entanto, a limitação espacial é rompida pela fé, pelo desejo profundo de render homenagem a quem é tido como fonte de salvação e esperança. Na impossibilidade da presença física, ele e todo seu povo estarão representados junto a Deus através do presente simples.

O Anjo do Timor se torna a ponte capaz de unir lugares tão distantes. Ele rompe, com suas asas, a barreira concreta dos continentes, sendo capaz de estar junto ao Deus menino e de interceder pelo povo que sofre. Nesse sentido, podemos considerá-lo como um símbolo da Lusofonia, no seu discurso de unificação de países tão diferentes em torno da suposta unidade da língua portuguesa.

Através da fé católica, fundamental para difundir o português, temos representada na narrativa de Andresen o modo como o povo timorense pertence à comunidade lusófona. Ele tem ali sua identidade, especialmente representada pelo presente singular que envia ao Deus menino: a caixa de sândalo, um dos símbolos do país, com as pedrinhas, índice da simplicidade do povo timorense. Não se deseja impressionar com um presente caro, mas sim dar algo que seja adequado a um menino. Como o Anjo do Timor leva um objeto que sempre pertenceu ao liurai, podemos considerar que ele transporta a memória do povo timorense, presenteando a Jesus com seus momentos de diversão e paz vividos na infância.

O presente do liurai é carregado de votos de alegria e tranquilidade, sentimentos que reinavam no passado do povo timorense. Ele é oferecido a Jesus em ato de generosidade, no que pode representar o desejo de pertença àquela benção que salvaria os homens. No entanto, em um momento de profundo desespero do povo, aquele passado de tranquilidade se torna um símbolo para pedir uma ação de Jesus, para que ele seja capaz de construir no futuro do povo aquela mesma sensação de acolhimento que o próprio liurari lhe havia oferecido.

Na linha de leitura que propomos neste artigo, do descompasso entre o discurso e o projeto da lusofonia, acreditamos que O Anjo do Timor possa ser tomado como um exemplo significativo de como esse processo ocorre. O Anjo materializa a possibilidade de união entre povos em torno de um forte elemento cultural comum (no caso, a fé católica) e com uma superação de quaisquer distâncias (nesse caso, física) entre eles. Como resposta a seu oferecimento, ao seu desejo de pertença a um Deus que está tão distante daquele povo, há, em momento de profunda dor e desespero, o pedido de um auxílio, de atenção.

2 Não vamos nos aprofundar nos detalhes da tragédia. Apenas para indicar o tamanho da violência empregada, recorremos a constatações dos próprios indonésios, tal como registradas por Magalhães: “Disseram-me que cerca de 60.000 timorenses tinham sido mortos até agora. Consideramos este número muito elevado porque isto significa que 10% da população tinha morrido. Mas quando referimos esses dados a dois padres de Dili, eles disseram-nos que segundo suas estimativas, o número de mortos rondava os 100.000. O desejo de integração na Indonésia começa a diminuir devido à má experiência da ocupação das forças invasoras (roubos, incêndios, violações de raparigas, etc).” (2001: 34)

3 Na sua vertente cultural e humana, a Igreja Católica em Timor-Leste sempre soube assumir com dignidade o sofrimento de todo o Povo, colocando-se ao seu lado na defesa dos seus mais elementares direitos. (Timor-Leste, 2002: 7)

A lusofonia em Timor-Leste: entre o discurso e o projeto || Patrícia Trindade Nakagome

O pedido literário que se faz ao Deus menino é de natureza semelhante ao que leva Sophia Andresen a escrever: a necessidade de chamar a atenção do mundo, especialmente dos portugueses, para o absurdo sofrido pela população timorense. Pede-se, então, que o discurso da integração lusófona se faça projeto concreto: ações que possam salvar vidas.

No tópico seguinte, em que discutiremos um caso efetivo de recepção do livro, veremos como esse descompasso entre discurso e projeto se faz ainda mais evidente: não mais como matéria literária, mas como substrato diário da formação da população timorense.

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