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Viagem de uma

antropóloga a um

país à rasca

Joana Bahia

estranhamente neste dia não vi a presença das organizações que lidam com os imigrantes.

Com a visita dos presidentes brasileiros, o orgulho dos portugueses nas ruas, especialmente das gerações mais antigas, estava decididamente abalado com os comentários pouco sutis da imprensa portuguesa diante da possibilidade de Portugal se tornar credor do Brasil. Por que pedir dinheiro aos brasileiros? Essa foi uma das tônicas nas tascas e vielas de Lisboa a Caparica (outra área de grande concentração de brasileiros).

Enquanto isso os brasileiros daqui pensavam no retorno, “será que era viável voltar depois de tantos anos ao Brasil? Para uma economia que sempre nos traiu? E para onde? Para uma cidade perdida no meio de Rondônia?” Lembrando que muitos brasileiros saem de cidades que pouco se veem nos mapas brasileiros e que se encantam pela “metrópole” Lisboa. Aos poucos os brasileiros reconstroem o difícil retorno e outros repensam o quê de libertário veio no próprio movimento de migrar e por conta disso não se vale à pena voltar. A liberdade de ser um outro brasileiro, com outra religião, com novas opções sexuais e novas liberdades e direitos que talvez não tivessem no Brasil. Migrar não se trata de um reflexo de cunho econômico, mas de um fenômeno complexo que reúne várias facetas, incluindo a de ordem afetiva e pessoal. Essas questões fizeram parte das minhas primeiras semanas como imigrante e também como pesquisadora das migrações e religiões. Desta vez, as questões estavam conjugadas no tempo presente.

Mas vários outros Portugais daí surgem, que não são apenas frutos de uma crise política e econômica, mas resultante do que tem se passado na esfera das migrações, das trocas e dos hábitos culturais. Em poucos anos que algumas leis foram aprovadas, refletindo uma dinâmica de mudanças que não são apenas ecos das mudanças geracionais no país2, mas também envolvem a presença de novos grupos migratórios que lentamente tem sido parte da cena urbana, cultural e política da cidade. Não vemos mais portugueses nos metros e autocarros, mas rastafáris, africanos, brasileiros, russos, diferentes grupos do Leste Europeu e em escala menor os ciganos. Ao largo da criseeconômica no país temos uma economia dos imigrantes que gera milhões de euros e da dinâmica social em bairros como São Jorge de Arroios. Portugal se tornou em poucas décadas uma enorme Martim Muniz com seu comércio multiétnico e multi religioso.

E as novas gerações de portugueses têm outras feições e novas línguas.

Mudaram de cor, de roupa e se recriaram a partir dos seus próprios anseios e vagas certezas e dos modos como lêem e revêem suas relações com a cultura do outro. E de que modo o cenário religioso contribui para pensarmos nisso?

Muitos migrantes de países africanos chegaram a Portugal ainda em fins dos anos 70 após o período das guerras coloniais, seguido nos anos 80 e 90 pelos brasileiros, imigrantes do Leste Europeu e indianos. Os sujeitos de diferentes nacionalidades que emigraram para Portugal até meados da década de 1990 encontraram uma escala na qual foram inseridos, principalmente pelo fato de que até 1998 a maior parte da imigração em Portugal foi composta por gente das ex-colônias (Machado, 2006: 119). A presença de imigrantes dos Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e do Brasil em Portugal, majoritariamente facilitou a perenidade do pensamento colonial. Essa perenidade resultou na reconstrução dentro de Portugal da antiga ordem imperial, agora reorganizada com base nas populações imigrantes.

A imigração mudou a face de Lisboa, transformando a cidade em lócus de uma sociedade multiétnica e multicultural não apenas num sentido religioso. As novas religiões emergem num

2 Cabe lembrar a importancia e o impacto das seguintes leis : Lei da Liberdade religiosa em Portugal» Lei nº 16/2001; Lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo » Lei nº 9/2010 de 31 de Maio; Lei que legaliza a Interrupção Voluntária de Gravidez (IVG) até 10 semanas, a pedido da mulher » Lei nº 16/2007 (de 17 de Abril) aprovada em Junho de 2007 e a Lei de descriminalização da droga em Portugal » Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro (em vigor a partir de 01/07/2001).

A Descoberta de Portugal. Viagem de uma antropóloga a um país à rasca || Joana Bahia

momento em que são protegidas pela lei de liberdade religiosa sancionada em 2001 e num contexto que o país se torna cada vez menos católico e mais ateu. Neste momento, Portugal possui judeus, grupos islâmicos, igrejas evangélicas (igreja de Nazaré), várias pentecostais e neopentecostais (incluindo a Igreja Universal do Reino de Deus /IURD, Assembleía de Deus e Maná), algumas igrejas africanas (quimbandistas) e práticas animistas trazida por uma variedade de migrantes africanos. E além disso as religiões afro brasileiras: umbanda e candomblé.

Há uma presença expressiva de brasileiros nas chamadas igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais. Muitos se concentravam por ordem crescente nas seguintes igrejas que paulatinamente se esvaziam com o retorno de brasileiros para seu país de origem. As variáveis classe, gênero, fluxos e tempo de migração interferem no campo pentecostal o que leva a uma grande dinâmica nos últimos dez anos. Temos então: Congregação (90% brasileiros, 10% portugueses, eles não usam tv e nem rádio, a propaganda é toda feita boca a boca, não cobram dízimos, os pastores e obreiros não são assalariados na igreja e em momento algum falam de dinheiro na Igreja);Adventista; Batista; Deus é amor (a maioria é de brasileiros, depois africanos e depois ciganos portugueses); Maná (brasileiros e portugueses, possui TV e toda a área de imagem é cuidada por brasileiros, a IURD (mais portugueses que brasileiros, pois se tornou uma igreja cara, inacessível para esta parcela da imigração brasileira), a Igreja Mundial do poder de Deus (nasceu da IURD).

Espíritos “transnacionais”

As religiões afro brasileiras entraram em Portugal nos finais dos anos 70 do século xx , com a abertura social trazida pela lei de liberdade religiosa instaurada com os ecos da revolução de 25 de abril de 1974. De acordo com Ismael por deus, Mãe Virgínia foi uma das primeiras portuguesas que tendo migrado para o rio de Janeiro no final dos anos 40 se iniciou na umbanda3 e trouxe a Portugal a

religião. Houve uma intensificação da umbanda e do candomblé na ultima década do século passado, período no qual alguns brasileiros desembarcaram em Portugal e se instalaram como sacerdotes, especialmente a partir da década de 80, com a intensificação dos fluxos de migrantes brasileiros.

Para alem das mudanças culturais e sociais vividas no pais a partir da abertura política e a chegada de levas de migrantes de varias nacionalidades (africanos, brasileiros e do leste europeu) e religiosidades, a cultura portuguesa se aproximou de suas praticas pagãs há muito tempo adormecidas. Neste sentido, as praticas sincreticas de ambas as culturas favorecem um largo campo de apropriações.

Não obstante a crise econômica presente em vários paises da Europa, temos um mercado religioso variado e em franco desenvolvimento.Houve um crescimento dos terreiros de candomble de norte a sul do país, pois não obstante o sucesso da umbanda em Portugal temos uma maior legitimação do poder e da força desses terreiros de candomble, pois chegar ao candomblé é atingir um estágio mais elevado (Capone, 2009).

Temos tanto brasileiros que trouxeram a religiao para Portugal, como portugueses que tanto a buscam aqui quanto a foram buscar por lá. E também africanos que ao migrar para Portugal buscaram manter a sua religiosidade. A adesão de pessoas do Leste Europeu é bem recente. A diversidade da imigração brasileira reflete também na diversidade religiosa e muitos brasileiros

são atraídos pela tolerância

das religiões afro brasileiras com a presença de homossexuais, travestis,

3 Umbanda é uma religião criada nos anos 20 na cidade do Rio de Janeiro, sendo considerada pelo seu caráter extremamente sincrético uma religião brasileira por excelência, se apropriando de elementos do kardecismo, catolicismo e assim como influências indígenas e africanas. Na umbanda cultuam-se e incorporam-se entidades, espíritos e não deuses: qualidades de exus, pombas giras, caboclos, baianos, pretos velhos, boiadeiros, marinheiros e povo do oriente. Não se incorporam orixás. As entidades da umbanda são arquétipos da sociedade brasileira, ligados a aspectos históricos e culturais do país.

transexuais (especialmente o segmento realcionado a prostituição, sendo os que ocupam os estratos mais marginalizados da imigração especialmente) em países em que a maioria das igrejas evangélicas presentes condena essas formas de opções sexuais.

Há uma variedade de situações que mostram o circuito transnacional de pessoas, objetos e bens simbólicos entre Brasil, Portugal e também outros países. Temos pais de santo brasileiros e portugueses que mantem vinculos com suas respectivas familias de santo estejam estas representadas pelos ilês nos quais se iniciaram, sejam também com os brasileiros (membros de suas famílias), que migraram na década de 80 e que se encontram em vários países da Europa. Com as migrações nas décadas de 70 e 80 de brasileiros e africanos para o Europa, em especial para Portugal e as sucessivas crises em Portugal, os fluxos migratórios tendem a tornar este xadrez mais complexo. Portugueses indo trabalhar em África, Venezuela e Brasil, brasileiros indo para França, Alemanha ou mesmo retornando ao Brasil e também com os circuitos dos africanos temos um verdadeira mescla de situações. Isto é trânsitos de pessoas e espíritos.

A presença das entidades é apenas real para os religiosos e irreal para os pesquisadores, isso mostra que não obstante os espíritos serem parte da pessoa este não é parte da realidade descrita.

Baseando-me nos trabalhos de Hayes (2011), Boyer (1993) e Wafer (1991) realizo o que chamo provisoriamente de uma “etnografia dos espiritos“, isto é tomo como ponto de observação os efeitos e os produtos da possessão para seus praticantes4 e também busco entender como se dão as práticas

rituais afim de identificar não apenas apropriações e sincretismos, mas de que modo na linguagem religiosa temos metáforas pós coloniais que envolve as representações sobre a circularidade de simbolos no chamado Atlantico negro (Gilroy, 2001).

Segui então o espirito do caboclo Pena Dourada afim de perceber as circularidades de algumas práticas religiosas em ambos os países, especialmente Brasil e Portugal. Lembramos que os espiritos da umbanda falam um portugues arcaico, especialmente os caboclos, espiritos dos indios brasileiros, considerados os primeiros habitantes do Brasil que falavam guarani antes da chegada dos portugueses.

Portugal é chamado pelo caboclo de Putamagal, uma alusão a ideia de que ele veio antes dos putamagaleses, numa fina ironia de quem migrou juntamente com seu cavalo (aquele que o incorpora) que denota a visão de um índio brasileiro em terras lusitanas. E na sua prática ritual carrega a bandeira do Brasil nas costas, com o peso de quem carrega a nação e a identidade.

Os caboclos são os donos da terra, primeiros habitantes da floresta e das matas brasileiras (Teles;1995). Primeiro os caboclos, vindo de Aruanda, localizada no Congo, que quando destruido eles migraram para Angola, uma nova Aruanda. Mas também habitantes do Brasil, juntamente com os pretos velhos plantaram o axé, e depois chegaram os putamagaleses. Não obstante a ideia inicial de um sentimento nacionalista utópico, vemos uma infinidade de caboclos e uma possibilidade por que não dizer de incorporar elementos estrangeiros. Sejam de Aruanda, Congo, seja no Brasil ou em Putamagal.

Ao contrário dos orixás que são em número fixo, os caboclos são infinitos. Não obstante a tônica nacionalista em que primeiro eles são associados, há um sentido de “irmandade universal” em que espiritos não indigenas e não brasileiros podem ser incorporados. Conforme Wafer (op.cit:55), “talvez o link etimológico entre o caboclo e a mistura de raças torna a tradição do caboclo um veiculo simbólico para a incorporação no candomblé de elementos estrangeiros”.

Se por um lado circulam ideias sobre Brasil, África, novos Congos e Aruandas quando o caboclo vai para Portugal, por outro lado incorporar outras nacionalidades traz desconfiança a legitimidade da prática ritual original, mantida pelo axé que ficou no Brasil, pois assentamentos, ebós e feitiços lá

4 Concordo com Birman (2005) quando afirma que valorizar o ponto de vista do médium permite a melhor compreensão das relações de gênero e o espaço concedido a sexualidade, tema que desenvolvi em campo e em artigo que se encontra ainda no prelo.

A Descoberta de Portugal. Viagem de uma antropóloga a um país à rasca || Joana Bahia

ficaram trazidos pelos escravos. E de lá não voltaram para África e se voltam a Portugal foi por obra da migração brasileira5. Mas essa história não acaba ai...

Pordeus (2009) mostra a existência de espiritos portugueses, como o famoso Marinheiro Agostinho. Em alguns casos pretos e velhos e caboclos podem ser de entidades portuguesas “escondidas“, isto é se passarem por brasileiras para serem aceitos e inseridos no culto. Incorporar um espirito brasileiro confere uma certa legitimidade e autenticidade a prática religiosa, pois muitos veem com descrença (especialmente alguns os pais de santo brasileiros) o fato de se ter incorporado outra “nacionalidade”6.

Carinhosamente chamada de samba pelo caboclo Pena Dourada, Ana_cambona (portuguesa de origem africana) ou aquela que não incorpora e ajuda os espiritos na comunicação com as pessoas_ trouxe sua fé em São Cipriano para o terreiro, fruto de sua vivência espiritual no interior de Portugal no tempo em que quando retornara de África ela tomou uma bruxa como mãe espiritual. Deste então São Cipriano viaja muito.

Um dos aspectos de implantação das religiões afro brasileiras em Portugal está na reordenação das experiências da religiosidade popular portuguesa que estas operam. Não obstante o decréscimo do catolicismo no país7, isso não significa na prática de que não haja reorganização do que seja ser

católico e neste sentido as religiões afro brasileiras contribuem para esta tarefa8.

Breve conclusão: treze de maio regado a bacalhau com feijoada.

Prakash (1995) mostra os efeitos da desconstrução das narrativas mestras que colocavam a Europa no centro dos padrões de conhecimento e identidades sociais que eram autorizados pelo colonialismo e pelo domínio ocidental. Neste sentido, a ideia de pós colonialismo não se situa nem dentro e nem fora da história europeia, mas numa situação tangencial. Uma situação “in between

como afirma Bhabha (2001), isto é uma situação de prática e negociação.

A negociação cultural entre os grupos é o que nos interessa para entender de que modo Portugal é recriado pelo caboclo brasileiro e de que modo os portugueses e africanos vão reescrever uma África tendo ou não um Brasil como intermediário (pelo menos no plano religioso aqui abordado)? Obviamente temos uma diferenciação interna grande e neste sentido, me interessa pensar tantos os portugueses que nasceram em Portugal, Brasil e /ou África. A complexidade identitária, histórica e política torna distinto um português que nasceu em Quelimane, de outro que não saiu de Lisboa.

Neste sentido, concordo com Vale de Almeida que o pós colonialismo deve ser analisado sob a ótica do econômico e do político, e neste sentido acrescentaria mais um aspecto: religioso. O

5 Não obstante não tratarmos dessa questão neste trabalho, há uma concorrencia no plano espiritual para que os portugueses possam reviver uma certa originalidade da África que conheceram, buscando reafricanizar o candomblé.

6 Coincidentemente ou não, no meu trabalho de campo, encontrei vários marinheiros portugueses. Não sei se de fato a ótica colonial prevalece e também povoa o mundos dos espiritos.

7 Conforme relatório produzido pelo sociólogo Alfredo Teixeira temos um descrécimo dos católicos e um crescimento dos chamados não crentes. Observa-se uma diversidade religiosa maior nos arredores de Lisboa e Vale do Tejo. Temos ainda no relatório uma concentração de católicos na região norte com 43,6% em relação ao total da mostra. O que pude averiguar no meu trabalho de campo é que justamente na linha norte que temos um crescimento grande das religiões afro brasileiras, especialmente nas áreas tradicionalmente católicas como Aveiros, Braga e Porto. Página da web acessada em 18 de junho de 2013: http://www.snpcultura.org/catolicismo_e_outras_ identidades_religiosas_em_portugal_interpreta%C3% A7%C3%A3o.html O estudo foi conduzido pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião e pelo Centro de Estudos de Religiões e Culturas, da Universidade Católica Portuguesa e patrocinado pela Conferência Episcopal Portuguesa.

8 Cabe lembrar que o mesmo estudo não contempla as religiões afro brasileiras e que no Brasil comumente as pessoas que são filiadas a estas religiões se identificam nos censos como sendo católicas.Há uma campanha lançada em 2010 na cidade do Rio de Janeiro promovida pela Mãe Beata (Quem é de axé, diz que é!) que solicita aos adeptos da religião a se identificarem no censo e também como modo de dar visibilidade a mesma diante do crescimento das igrejas neopentecostais.

autor (op.cit) concorda com Hall (2003) no sentido de que o conceito de pós colonial é útil para caracterizar a mudança nas relações globais que marca a transição desigual da era dos impérios para o período pós independências. Mas o termo não poderá servir apenas para descrever um antes ou um depois, em forma de etapas históricas, mas sim reler a colonização como parte de um processo que é essencialmente transnacional e translocal.

Se os migrantes circulam levando suas histórias, seus espíritos também.

Lembramos que a

ideia de que a transnacionalização religiosa considera as adaptações

das práticas

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