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isabela Cabral Félix de Sousa

3. Opressão e fortalecimento feminino

A atuação das mulheres na sociedade vem sendo fortemente ancorada em conquistas das relações de gênero. Necessariamente, a mediação cultural deve refletir o estágio destes avanços em seus respectivos contextos. Os problemas femininos muitas vezes se associam ao desequilíbrio de poder nas relações com os homens e, em sociedades patriarcais como a brasileira, tais problemas não podem ser dissociados da opressão de gênero. As mulheres pobres, principalmente as negras ou mulatas, são mais afetadas que os homens pobres, pois sofrem de tripla discriminação: além da de raça e classe social, a de gênero. Qualquer discriminação acarreta efeitos negativos para a saúde da mulher, e a opressão que as mulheres sofrem aumenta-lhes os riscos de saúde (Sherwin, 1992). Esta opressão se manifesta em vários aspectos, tais como maior pobreza (Jacobson, 1993), maior violência de que são vítimas (Heise, 1993), menor oportunidade de trabalho (Sorensen & Verbrugge, 1987), menor acesso à comida e serviços de saúde (Khan et al. 1984), e menor acesso a educação (Fagerlind & Saha, 1989). No Brasil, embora as mulheres tenham superado os homens em todos os níveis educacionais, continua a ocorrer como em outros países discriminação no interio do sistema educacional (Rosemberg, 1992) pela reprodução de expectativas quanto à profissionalização distintas de acordo com gênero, já que os rapazes tendem a buscar áreas mais valorizadas socialmente como as técnicas e científicas e as moças costumam procurar áreas ligadas às humanidades, educação e saúde que tendem a ter menor retorno financeiro.

O fortalecimento das mulheres, principalmente as mais pobres, é fundamental para a criação de uma sociedade mais justa. Devido ao acúmulo de fatores de discriminação sofrida, as mulheres pobres têm sido vistas como a população mais necessitada de conquistar fortalecimento (Stromquist, 1993) e com mais potencial de transformar a realidade por ter visão diferente da população mais privilegiada (Bluter citado em Sleeter, 1991). Assim, nas experiências de vida dos oprimidos podem ser encontrados elementos potenciais de mudança do status quo, se estes forem utilizadas estrategicamente para o seu

Mulheres Migrantes na Busca e Conquista de Educação e Saúde: considerações de uma luta || Isabela Cabral Félix de Sousa

fortalecimento. Segundo Freire (1993: 122-123):

“A práxis revolucionária somente pode opor-se à práxis das elites dominadoras... Para dominar, o dominador não tem outro caminho senão negar às massas populares a práxis verdadeira. Negar-lhes o direito de dizer sua palavra, de pensar certo”.

Como muitas vezes o trabalho dos pobres pode ser manipulado pelas classes dominantes, é vital que o fortalecimento das mulheres seja de fato emancipatório para as mesmas. De acordo com Antrobus (1989), não é raro a questão de este fortalecimento ser explorada por algumas agências internacionais com o intuito de aumentar as atribuições sociais femininas, e não de mudar a situação de subordinação. O mesmo uso pode ser feito do termo multiculturalismo. Delle Donne (2000) alerta: “Podemos descobrir, por exemplo, que o discurso do multiculturalismo se traduz em uma atitude de comiseração ou pseudo-igualitária, faltando mesmo um processo de revisão crítica dos estereótipos ou de preconceitos étnicos dos quais está impregnado o senso comum, que se exprime no linguajar da vivência cotidiana e que resgata os códigos de transmissão da cultura de origem. (minha tradução, pág. 134)”. Assim, é importante que o multiculturalismo seja usado de maneira a realmente fortalecer as mulheres mais vulneráveis como as migrantes. É interessante a distinção de Molyneux (1985) sobre a conquista de poder feminino relativa a interesses práticos daquela referente a interesses estratégicos. Segundo a autora, enquanto os primeiros proporcionam conhecimentos e habilidades de desenvolvimento pessoal, sem questionar a subordinação da mulher frente ao homem, os últimos buscam a paridade entre os sexos. Na conquista de poder pelas mulheres pobres, é necessário que haja a combinação de ambos os interesses.

Embora sejam as mais pobres as mais necessitadas de conquistas, é preciso ressaltar que as conquistas femininas são para todas as mulheres. As conquistas estão ancoradas na criação do conceito de saúde reprodutiva. Nos anos 80 do século passado, surgiu o conceito de saúde reprodutiva baseado na concepção feminista de que todas as mulheres tinham direito ao controle de sua sexualidade e reprodução (Dixon-Mueller, 1993). Tal conceito de saúde reprodutiva não se limita apenas à liberdade das mulheres nos anos reprodutivos, mas se estende as outras faixas etárias.

Além disto, Sai e Nassim (1989) explicam como o conceito de saúde reprodutiva é muito mais amplo que o conceito de saúde materna, pois, além do primeiro incluir os homens, sugere também que os problemas de saúde vividos pelas mulheres se relacionam não apenas ao presente estado da mulher, mas à sua infância e adolescência. Não só programas de saúde materno-infantil tendem a negligenciar a saúde materna e priorizar a da criança (Heise, 1993), mas programas de planejamento familiar têm sido criticados por se restringirem às mulheres grávidas e casadas. Germain e Antrobus (1989) comentam inclusive que programas de planejamento familiar tendem a enfatizar a contracepção. E Oliveira et al. (1992) consideram esta ênfase limitada, pois não envolve a discussão da mulher quanto à sua sexualidade e qualidade de vida.

Destaca-se que o discurso do fortalecimento ou empowerment feminino, ancora-se no direito das mulheres controlarem seus próprios corpos. Como princípio feminino, esta noção está associada à autonomia. Dixon-Mueller (1993) destaca que o conceito de saúde reprodutiva implica no direito das mulheres à sexualidade e à reprodução. A autora explica ainda que a liberdade para viver a saúde se fundamenta em três tipos de direitos: o controle sobre o próprio corpo, a informação e os meios para controlar a fertilidade e a decisão de ter filhos, o número e a época de tê-los.

O fortalecimento feminino deve ser definido para além da saúde reprodutiva também. Uma definição de fortalecimento feminino é a descrita por Stromquist (1993). Esta autora explica que este fortalecimento leva mais à autoconfiança do que à confiança em intermediários, promove ações

ligadas às necessidades, e provoca transformações coletivas substanciais. Para Stromquist (1993), esta conquista, além de envolver identidade pessoal, estimula a reflexão sobre os direitos humanos. A autora explica que tal conquista de poder pelas mulheres pode ocorrer nas dimensões psicológica, cognitiva, econômica e política. Schrijvers (1991) acrescenta outra dimensão, ao sugerir a autonomia física das mulheres, um tipo de conquista de poder sobre o próprio corpo. Sendo ampla a proposta de as mulheres conquistarem fortalecimento, ela implica mudanças em necessariamente várias dimensões.

4. Conclusão

A conquista de qualquer direito, como o da educação e da saúde, está aliada a um processo mais amplo de fortalecimento das mulheres. Neste sentido, trata-se de um processo multidimensional que requer mudanças individuais e institucionais (Germain & Antrobus, 1989 & Stromquist, 1993). A conquista de direitos deve ser promovida preferencialmente pela mulher pobre, que acumula as opressões de gênero, classe, e muitas vezes, de raça. Qualquer opressão social pode aumentar as chances da incidência de doenças e do não atendimento aos direitos básicos de educação e saúde. Estas opressões também podem ser fatores que contribuem para que algumas mulheres desejem ou busquem o movimento de migrar dentro ou para fora do país. No entanto, o deslocamento em si não necessariamente é marcado previamente por uma opressão. Em outras palavras, passar a viver uma outra vida em outro local pode ser uma contingência.

De qualquer modo, como a migração não necessariamente assegura melhores condições de vida no novo local,a busca por direitos em outro contexto social pode ser muito sofrida e solitária para as mulheres migrantes. Esta procura também pode se tornar coletiva quando algumas mulheres se articulam através de redes sociais e organizações governamentais, não governamentais e religiosas. Embora a conquista dos direitos possa vir a ser incerta, a luta coletiva por eles já é um grande conquista.

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Mulheres Migrantes na Busca e Conquista de Educação e Saúde: considerações de uma luta || Isabela Cabral Félix de Sousa

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. acedido em 01/08/2004].

Resumo: O objetivo desta apresentação é pensar os conceitos

de cultura, identidade e etnicidade, tomando como base empírica os descendentes de imigrantes italianos na região sul do Brasil e utilizando como referencial teórico os estudos culturais, de modo especial os textos de Stuart Hall.

Palavras-chave: Identidade; Etnicidade; Imigração.

Em vários trabalhos, especialmente naqueles escritos por imigrantes ou seus descendentes, encontramos uma reificação do conceito de cultura, e uma naturalização do senso comum de que a cultura “está no sangue”. Este tipo de visão também aparece em vários depoimentos e entrevistas que coletamos.

O conceito de cultura é ao mesmo tempo central e problemático na Antropologia, mas não é nossa intenção fazer uma revisão das muitas teorias sobre o assunto; indicaremos apenas o sentido no qual ele será utilizado neste trabalho.

Interessa-nos especialmente a relação entre cultura e identidade, na forma enunciada por Goffman (1978), que afirma que a cultura é produzida através de negociações no âmbito das interações sociais, posição bastante próxima da de Firth (1974) para quem a cultura é socialmente produzida a partir da organização social. Para Geertz (1978) a cultura é uma rede de símbolos significativos, por isto ele a define como um sistema integrado de valores que os atores colocam em prática.

Mas o autor que melhor se adeqüa ao que observamos no sul do Brasil é Stuart Hall. Segundo Hall percebe-se atualmente uma desintegração das identidades nacionais pela tendência da homogeneização cultural da globalização, em função disto, há um reforço das identidades nacionais e outras locais e particularistas em virtude da resistência ao processo de globalização. Como síntese deste choque as identidades nacionais estão em declínio mas novas identidades, que ele chama de híbridas, estão tomando o seu lugar (Hall, 1999). Com estas afirmações, Hall nos dá pistas interessantes e inovadoras para compreender o contexto cultural que observamos no sul do Brasil como parte de um processo mundial, onde culturas locais e nacionais mesclam-se com aspectos novos trazidos pela globalização e resultam no que o autor vai chamar de “culturas híbridas”.

Contudo esta reafirmação do regional não é totalmente nova, já em 1963 em um artigo escrito originalmente em inglês, Freyre (2000: 119) afirmava:

Alguns estudiosos da situação internacional como ela se tem desenvolvido no mundo desde a revolução Industrial da Europa (…)

Cultura,

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