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2. Património cultural

2.1. Evolução do conceito de património cultural

2.1.3 Autenticidade e integridade do património:

O termo «autenticidade», primeiramente citado pela Carta de Veneza (1964, p. 1)33, informa sobre a

existência de uma autenticidade que deve ser reconhecida e protegida por seus elementos envolventes:

Portadores de uma mensagem espiritual do passado, os monumentos históricos de um povo constituem um testemunho vivo das suas tradições seculares. A humanidade, que tem vindo progressivamente a tomar consciência da singularidade dos valores humanos, considera os monumentos como um património comum, reconhece a responsabilidade colectiva pela sua salvaguarda para as gerações futuras e assume o dever de transmiti-los com toda a riqueza da sua autenticidade.

Mas ainda não é suficiente, pois não consegue delimitar o que se entende por autêntico ou legítimo. São o Documento de Nara34 e a Carta de Brasília35 que elucidam e classificam o conceito de

autenticidade, na qual a História exerce um papel importante na afirmação do que é considerado legítimo:

A autenticidade, considerada por esta forma e afirmada na Carta de Veneza, aparece como factor essencial de qualificação respeitante aos valores. A compreensão da autenticidade desempenha um papel essencial a todos os estudos científicos sobre o património cultural, no planeamento da conservação e do restauro, bem como no âmbito dos procedimentos de inscrição usados pela Convenção do Património Mundial e de outros inventários do património cultural” (Documento de Nara, 1994. p. 3).

E,

O significado da palavra autenticidade está intimamente ligado à ideia de verdade: autêntico é o que é verdadeiro, o que é dado como certo, sobre o qual não há dúvidas. Os edifícios e lugares são objectos materiais, portadores de uma mensagem ou de um argumento cuja validade, no quadro de um contexto social e cultural determinado e de sua compreensão e aceitação pela comunidade, os converte em património. Poderíamos dizer, com base neste princípio, que nos encontramos diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o objecto material e seu significado (Carta de Brasília, 1995. p. 3).

A Carta de Cracóvia sintetiza e reforça a definição atribuída pela Carta de Brasília: “autenticidade é o somatório das características substanciais, historicamente provadas, desde o estado original até à situação actual, como resultado das várias transformações que ocorreram no tempo” (2000, p. 6).

E, somente no Documento de Madrid (2011, p. 6), a definição vai um pouco além ao citar claramente a imaterialidade, como elemento importante para se perceber a autenticidade:

33 ICOMOS (1964, p 1). Carta de Veneza sobre a conservação e o restauro de monumentos e sítios. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta %20de%20Veneza%201964.pdf. Acesso em 19/04/2017.

34 UNESCO, ICCROM e ICOMOS. (1994) Documento de Nara sobre Autenticidade. Nara, Japão. Disponível em https://www.culturanorte.pt/fotos/editor2/1994declaracao_de_ nara_sobre_autenticidade-icomos.pdf. Acesso em 21/04/2017

35 Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. (1995). Carta de Brasília. Documento Regional do Cone Sul sobre autenticidade. Brasília, Brasil. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20Brasilia%201995.pdf. Acesso em 21/04/2017.

25 É a qualidade de um bem patrimonial de expressar os seus valores culturais, através dos seus atributos materiais e dos seus valores intangíveis36, de uma forma verdadeira e credível. Depende do tipo de património e do seu contexto cultural.

O reconhecimento da imaterialidade dos patrimónios toma mais «corpo» com a publicação dos documentos oficiais emitidos por institutos e representantes a nível mundial que tratam do património (UNESCO e ICOMOS, por exemplo). Com o passar dos anos é inevitável desconsiderar o saber-fazer dos povos como peça chave importante para a compreensão das suas habilidades de representação de suas próprias culturas. Antes de um monumento ser erguido e concluído, fatores socioculturais e ambientais devem ser juntamente levados em conta, cuja finalidade é compreender a interação destas sociedades entre si, outras e o meio natural.

Quanto à Integridade do Património, a Carta de Veneza (1964, p. 3), em seu 14º artigo defende que “os sítios monumentais devem ser objectos de cuidado especiais a fim de salvaguardar a sua integridade, e assegurar que são tratados e apresentados de forma adequada”.

Dentro das definições da Carta da Nova Zelândia (ICOMOS-Nova Zelândia, 1993-2010, p. 7), a Integridade significa “o carácter completo ou intacto de um lugar, incluindo o seu significado e o seu sentido, conjuntamente com todos os atributos materiais e imateriais inerentes ao respectivo significado cultural.”

E mais, a mesma Carta (1993-2010, p. 2) é à favor das ações de proteção dos bens culturais cujo,

O objectivo da conservação é cuidar dos sítios com valor patrimonial cultural, das suas estruturas, dos seus materiais e do seu significado cultural. Em geral, esses sítios:

i) têm valores duradouros e podem ser apreciados por direito próprio; ii) ensinam-nos o passado e a cultura daqueles que vieram antes de nós;

iii) proporcionam o contexto para a identidade da comunidade, pela qual o povo se relaciona com a terra e com aqueles que se foram embora antes de nós;

iv) proporcionam variedade e contraste no mundo moderno, e uma base de medição com a qual podemos comparar os feitos actuais; e

v) proporcionam uma evidência visível da continuidade entre o passado, o presente e o futuro.

A ICOMOS (199937, cit. e trad. por Barranha 2016, p. 49) reitera e reforça:

O objetivo primordial da preservação e da conservação é manter a autenticidade e a integridade do património cultural. Nesse sentido, todas as intervenções devem basear-se em estudos e avaliações apropriadas. Os problemas devem ser resolvidos em função de condições e necessidades relevantes, respeitando os valores estéticos e históricos, assim como a integridade da estrutura física ou do sítio [...].

36 Segundo o mesmo documento, valores intangíveis podem incluir os valores históricos, sociais, científicos, associações espirituais ou o génio criativo. (p. 6).

37 ICOMOS. (1999). Principles for the Preservation of Historic Timber Structures. México. Disponível em https://www.icomos.org/images/DOCUMENTS/Charters/wood_e.pdf. Acessado em 26/04/2017

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Uma definição bastante específica acerca do património material (arquitetónico) que pode também ser análoga no contexto do património intangível, também emitido pela ICOMOS (2003, p. 2)38:

O valor do património arquitetónico não se limita à sua aparência; reside também na integridade de todos os seus componentes, como produto único da tecnologia construtiva específica do seu tempo. Consequentemente, a remoção de estruturas interiores, mantendo apenas as fachadas não corresponde a critérios de conservação.

Se aplicarmos a citação acima ao património imaterial, pode perceber-se que este pode não estar vinculado somente à sua forma representativa, teatral (como a dança, ritos e festividades, por exemplo); é algo que tem um valor profundo, que seja e pertença à identidade de seus criadores e representantes, e não pode ser utilizada para outros fins, senão a representação da sua cultura.

E, de forma a especificar um pouco mais o que se compõem os critérios de integridade de um bem cultural, o Documento de Madrid (ICOMOS, 2011, p. 6) elenca três fatores que podem avaliar determinado património:

Integridade é a medida da conservação do estado original na sua totalidade, do património construído e seus atributos e valores. A análise do estado de Integridade requer, portanto, uma avaliação de até que ponto o bem:

1 – Inclui todos os componentes necessários para expressar o seu valor.

2 – Assegura a completa representação das características e processos que transmitem o significado do bem.

3 – Sofre efeitos adversos de intervenções e/ou negligência”.

Reconhecer e manter a integridade de determinado monumento é uma tarefa fundamental para que se reconheça o seu valor e se possa avaliar as suas condições físicas e não físicas de existência, de modo de ser e de estar. Acaba por ser flexível em determinação das características do monumento em si e também das estratégias e intenções da comunidade ou país detentor do património.

Este conceito, da integridade, auxilia no reconhecimento da unicidade e pode ser importante para evitar, prevenir ou mitigar representações incoerentes ao que o bem representa e, também, serve de parâmetro para a evolução cultural do povo assim como perceber seu grau de pertencça ou distanciamento com as manifestações de património.