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3. Património imaterial, turismo e gastronomia: problematização

3.1. O Património imaterial nas sociedades pós-modernas

A experiência de longo dos anos, reportada pela bibliografia disponível, mostra-nos que o reconhecimento de um património depende de critérios «subjetivos», e cabe muitas vezes ao conhecimento científico aplicado, através das metodologias supostamente objetivas, reforçar a sua importância e legitimar o seu significado.

41 Resolução do Conselho dos Ministros de Portugal. Publicado no Diário da República – 1 série B, nº 171, de 26/07/2000. Disponível em https://dre.pt/application/conteudo/ 314179. Acesso em 25/04/2017.

42 Zygmunt Bauman foi um Sociólogo, pensador, professor e escritor polaco. Foi um dos críticos mais conhecidos sobre a Sociedade Moderna e é o autor da expressão “Modernidade Líquida”, para designar a fluidez do mundo onde os indivíduos não possuem mais padrão de referência. Disponível em https://www.ebiografia.com/zygmunt_bauman/ Acesso em 20/05/2018.

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Nota-se também, que um bem pode ser avaliado e considerado de valor, sob vários prismas. Condição que tanto se aplica aos elementos materiais, objetos de (re)interpretações, quanto aos imateriais, ainda mais vulneráveis a essa subjetividade.

Entre os aspetos associados a essa subjetividade, ao serem elencados, sublinha-se a temporalidade, as áreas de interesses e, mais amplamente um conjunto de fatores culturais e sociais complexos.

Com a temporalidade percebemos que um elemento que antigamente não era de valor, hoje pode vir a ter visibilidade. As preocupações no resguardo de memórias podem mudar de tempos em tempos. Para Jorge (in Ramos, 2002, p. 11),

No sentido do património se nos apresentar, de facto, como um valor de memória que, de algum modo, projecta na contemporaneidade a presença daquelas origens que nós, protagonistas da actualidade, constituímos como sendo nossas. Ora, essa presença só pode ganhar uma expressão imaterial no presente, já que obviamente ela pertence ao passado. E, nessa medida, deve ser interpretada sobretudo como representação desse tempo e daquilo que de significativo nele sucedeu.

Quanto à área de interesse estão vinculadas as áreas de estudo ou afinidade. Um bem pode ter mais de um valor atribuído, conforme as descobertas e relevâncias encontradas e valoradas. Jorge (2002, p. 12) afirma:

isto pode significar que um mesmo objecto pode ser simultaneamente suporte de diferentes modalidades de património, ou até mesmo de patrimónios diferentes, ou seja, veiculando diferentes valores de memória. O mesmo objeto que pode ter diferentes modalidades de património (histórico e arquitectónico, ou arqueológico e artístico, de forma simultânea), e ser interpretado como material e/ou imaterial.

Já os fatores culturais e sociais, sob o prisma sócio antropológico, englobam as singularidades culturais associadas aos grupos e comunidades, modos de vidas e as técnicas operativas, isto é, a modos de fazer atribuíveis a determinados contextos culturais, também desse modo se favorecendo a ideia de uma singularidade que deve ser protegida.

Num outro plano, mas nesta mesma linha, situam-se os valores sociais, associáveis à experiência religiosa, cívica, profissional ou de classe social, comunitária, etc., dimensões que definem a intricada relação entre património e identidade social.

Essa perceção já está embasada em Documentos e Cartas oficiais como a Carta de Veneza (UNESCO, 1964), Carta da Nova Zelândia (ICOMOS-Nova Zelândia, 1993-2010), e Principles for the

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Preservation of Historic Timber Strutuctures (ICOMOS, 1999). Esta prerrogativa está de acordo com a preservação do património (imaterial, inclusive), e busca estratégias para a sua permanência.

Contudo, ao imergir-se na temática da imaterialidade, uma das problemáticas essenciais está tanto na sua definição, quanto na sua preservação (as técnicas e os procedimentos). De acordo com Ana Cristina Leite (cit. em Ramos, 2003 p. 24), estão distantes de uma consensualidade:

Mas, se hoje conseguimos estabelecer mecanismos para preservar o património constituído, o dito património material, a obra de arte, a arquitectura, o mesmo já não acontece em relação ao património imaterial, até porque este, na realidade, ainda não está ou não foi (nem, a bem dizer, será nunca) identificado na sua totalidade.

Com isso, como identificar o património imaterial enquanto herança de uma comunidade? E como esta mesma comunidade percebe seu modus vivendi e «sinta-se» pertencente a esta manifestação? E esse «pertencimento» é suficientemente forte para manter vivas as suas tradições e costumes? E, talvez mais desafiador, como definir a cultura «legítima» e como manter a identidade face às influências sociais, económicas e culturais decorrente da globalização, que cedo ou tarde, vem pôr a prova a resistência destas culturas?

Nos próximos parágrafos, debruçar-nos-emos em duas controvérsias atuais: o fenómeno do comportamento «líquido» das sociedades contemporâneas; e também a tendência da patrimonialização «cristalizada» como forma de salvaguardar os bens culturais (materiais e imateriais).

O ser humano está em constante processo de transformação, e produzindo novas culturas. Conforme a sua interação social, ambiental, cultural e as tecnologias produzidas (somadas às suas necessidades e ambições), os produtos e serviços (bens tangíveis e intangíveis), mudam de tempos em tempos. Conforme esta mudança sucede, a forma humana de observar, valorizar e valorar a sua cultura também se altera.

Esta constante mudança é teorizada por Zygmunt Bauman (2001, p. 10-11) que define a pós- modernidade como «modernidade líquida». Compreende-se que a sociedade atual não busca mais por definições sólidas e rígidas, e está sempre a preferir o novo e o que pode ser facilmente mudado, mutável e principalmente substituível A transição é projetada tanto na identidade do indivíduo quanto na comunidade e seus conjuntos de valores, que passam a ser consumidos e descartados com maior frequência e facilidade.

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O período pós-moderno trouxe consigo o «consumo» como a grande forma de identificação de uma comunidade. Seja ela a maior produtora (a globalização e as ferramentas tecnológicas permitem alcances mundiais ao acesso de novas culturas e novos consumos); ou como a maior consumidora, conforme o poder de compra que possui e as suas novas necessidades emergentes.

E neste caso, o poder e a capacidade em se adaptar às tendências do consumo passa a ser uma nova ferramenta de «diferenciação» dos indivíduos e das sociedades. Isso gera e mantém o constante paradigma do novo versus obsoleto, qualidade versus quantidade, duradouro versus efêmero.

Bauman, autor da terminologia “modernidade líquida”, resgata o significado de liquidez e fluidez enquanto características físico-químicas dos estados da matéria (sólida), precisamente aplicável ao comportamento da sociedade contemporânea:

[...]. Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana criou? "Fluidez" é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos, como a Enciclopédia britânica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles "não podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis" e assim "sofrem uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão' Essa contínua e irrecuperável mudança de posição de uma parte do material em relação a outra parte quando sob pressão deformante constitui o fluxo, propriedade característica dos fluidos. Em contraste, as forças deformantes num sólido torcido ou flexionado se mantêm, o sólido não sofre o fluxo e pode voltar à sua forma original. [...]. (1925 p.7)

Esta «alta tensão», encontrada no fim do primeiro parágrafo da citação pode ser associada com a forma em que a sociedade atualmente tende a sempre romper os seus próprios valores rígidos (ou sólidos).

A rigidez, que costuma perdurar gerações, impede o fluxo da mudança, do novo, das alterações das formas da vida se manifestar. E romper (ou nas palavras do autor, “derreter”) essa solidez permite que a sociedade, em sua nova fase, possa se manifestar com mais “leveza” e sem o “peso” dos estigmas, tabus e valores antigos, e a comunidade sente-se «livre» para viver novas experiências sociais, humanas, de consumo, ou a que sente-se instigada.

O consumo, anteriormente vinculado ao poder de compra e de bens materiais, da estabilidade financeira e de bens pessoais, passa também a atingir o nível imaterial, de novas culturas, valores e experiências. E, para manter-se sustentável, é preciso constantemente mudar e não transmitir a ideia de tédio, ultrapassado ou rígido.

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De forma a corroborar, a velocidade com que as novas tecnologias vêm progredindo, traz à sociedade pós-moderna, uma sensação de urgência no consumo de bens e serviços, para que esta sinta-se no presente e estejam atentas às tendências do futuro. São constantes “atualizações”, que geram também uma ininterrupta ansiedade nos indivíduos, em que não se permite tolerar a “lentidão” ou a “quotidianidade” da vida.

Neste universo de experiências disponíveis, e com a tendência do consumo dos bens e de serviços, o turismo passa a crescer em todo o mundo e o desdobramento de experiências e oportunidades que uma viagem podem proporcionar, torna a atividade altamente atrativa.

Assim, crescem os segmentos de mercado e também os de turistas (em volume e perfis), o turismo se espalha pelos mais diversos tipos de sítios e de experiências. E nos últimos tempos vêm crescendo o interesse pelo conhecimento dos espaços arquitetónicos artísticos e culturais, o que demanda a sua preservação. Neste sentido, o património, seja este material ou imaterial (este muito mais frágil face às constantes inovações).

A salvaguarda do património, de algumas formas, acaba por, indubitavelmente, colocar estes bens culturais em um isolamento temporal e cultural, que exige um distanciamento das influências da modernidade e das constantes transformações das sociedades. É manter ‘sólido’ um passado numa sociedade muito dinâmica, atualmente ‘líquida’.

Esse comportamento fluído da sociedade age como um excludente do passado (elemento sólido) não o valorizando como parte integrante e continuada do presente, mas sim como algo obsoleto. E passa a ser percebido somente como uma forma de consumo, uma “experiência”. O passado é peculiar e excludente da vida moderna. Assim como as velhas convenções e tradições não dizem mais respeito às novas formas de interação, o pertencimento com o património e a história é mais distante e impessoal, passível da objetificação.

Este distanciamento do presente, que “protege” os bens materiais, também é o que se conhece pela «cristalização» do património (neste caso, imaterial). Quando se cristaliza um bem imaterial, ao mesmo tempo que se pretende legitimar um «modo de ser e de se fazer», pode também gerar um simulacro, ou forma de manter um passado “ativo”.

E, seja através da cristalização, ou do simulacro, em ambos os casos, pode pôr-se tudo a perder. A solidificação não permite a mudança, a fluidez do curso natural da vida e da sua interação com o

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meio, impede a sua renovação e criatividade enquanto modo de “ser e estar” das populações (gerações presentes e vindouras).

Esta rigidez, percebida então como simulacro, torna-se uma ilusão, em tentar conservar o que já existiu. Não passa, somente, de uma representação daquilo que já foi o presente um dia. É, muitas vezes, insistir em algo que não diz respeito nem a comunidade (aos seus valores do passado e presente), e nem transmite a sua essência aos interessados (turistas), sendo praticada de forma teatralizada. E, quando objetificada, é explorada apenas (ou tão somente) para fins económicos e turísticos.

É constante a busca do futuro e trazê-lo o mais breve possível ao presente. Contraditoriamente, é esta mesma sociedade que se “preocupa” em conservar o passado (e o futuro passado) como forma de representação da sua evolução. É uma forma de perceber o quanto pôde evoluir ao passar do tempo, cria-se o seu distanciamento por não se sentir mais pertencente ao que um dia criou (Guillaume, 1980, in Jorge, 2003, p. 35) 43.

Quando se cita sociedade, insere-se tanto a comunidade consumidora da cultura e do património como também as comunidades produtoras. Não há um isolamento integral destes grupos face ao fenómeno da globalização (consumo, e acesso a outras formas de cultura).

Gera-se então o grande desafio de se estimular aos agentes atuais, o reconhecimento da importância desta cultura (para a diversidade) e o sentimento de pertença (enquanto elemento identitário). É motivar o discurso “evoluir sem perder as raízes”.

Na publicação O Registro do Património Imaterial (IPHAN, 2006, p. 28) é citada a necessidade de reinterpretação da definição da autenticidade (pela UNESCO e pelo ICOMOS) como forma de viabilizar uma ação mais efetiva para a conservação do património imaterial:

As estratégias recentes da Unesco para lidar com o problema da proteção da cultura tradicional e popular em curto prazo, contemplam a adaptação de métodos de classificação ou modalidades de ação ao contexto particular de cada país, ao invés do lançamento de ações estandardizadas; o estímulo aos possuidores do saber para facilitar sua transmissão, ao invés dos investimentos maciços unicamente nos registros e arquivos; e o fomento às expressões tradicionais ou populares contemporâneas, incluídas as mestiças, sem colocar em primeiro plano a noção usual de autenticidade. Aqui, vale notar, que em recente encontro promovido pelo Icomos, em Brasília, também se reivindicou que o tema da autenticidade deva passar por uma noção de identidade não cristalizada, mas dinâmica e passível de transformação.

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O reconhecimento em se permitir as tradições “respirar” enquanto organismos vivos, e não apenas forçá-las à uma conduta rígida e imutável respeita a sua inerente característica: reinvenção, mudança e adaptação.

3.2. Património gastronómico e turismo gastronómico