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3. Património imaterial, turismo e gastronomia: problematização

3.2. Património gastronómico e turismo gastronómico

3.2.3. Turismo cultural e turismo gastronómico

O turismo de culinária e gastronómico costuma ser praticado por uma parcela significativa de turistas, mais exigentes e curiosos, que buscam uma experiência mais intensa e imersiva no local visitado. De acordo com Turismo de Portugal (2006, p. 9):

[...] espera-se uma tendência crescente na intenção de realizar viagem desta natureza, justificados tanto pela crescente necessidade das pessoas de descobrir e aprofundar culturas, como pelo novo apelo que assume a gastronomia e o vinho na sociedade, que deixam de ser simples alimentos de primeira necessidade e passam a ser elementos integrantes da nova cultura do bem-estar.

Sobre o assunto, Almeida (2014, p. 174) também afirma:

Como é sabido, a experiência turística que permanece na memória da viagem, é aquela que se associa aos sentidos; desde logo o olhar, mas também os cheiros, o paladar, ou não fosse o turismo a procura de alternâncias não só de estar, mas também de ser, um desejo de transformação temporária.

Estas experiências, proporcionadas de formas mais intensas e com apelos, não somente ao paladar, constituem uma forma de conectar o turista ao universo local.

A autora aborda a interação das famílias locais que vão interagir com os turistas, como forma de proporcionar aos visitantes uma maior experiência sobre a culinária local e os estilos de vida que se lhes associam (Almeida, 2014, p. 174):

Neste caso, o habitante local, não só deverá saber cozinhar ou conhecer a culinária local, como deverá saber receber os turistas e proporcionar-lhes uma experiência o mais acolhedora e autêntica possível, associada à cultura e o estilo de vida local.

No entanto, a mesma Almeida (2014, p. 174) alerta para o perigo de se cair no simulacro, em termos destas experiências. Sobre isto diz:

Não raro, estas experiências acontecem em ‘locais tipificados’ ou tomados como tal, que recriam um mundo etnográfico (rural ou piscatório), em representação do ‘autêntico’, através da confeção, exibição ou venda dos alimentos. A apropriação turística alimentar refere-se sobretudo a processos de ‘mercadorização’ e ‘hibridização cultural’, mas que se verificam também, em eventos locais, regionais – rituais de comensalidade – respeitantes à (re)construção identitária regional.

Ou seja, chama-se a atenção para a designada hospitalidade “mercadorizada”, com papéis e roteiro de condutas exercidos pelos recetores, para dar a impressão de que se proporciona aos convidados uma vivência «autêntica». O simulacro reside no facto de que os anfitriões, orientados para dar um toque “único”, dizem que a culinária ainda é feita à moda antiga (com fogão a lenha, por exemplo, quando na verdade, essa técnica de cozedura já está abandonada).

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Segundo Reisinger (in Almeida 2014, p. 177),

Trata-se de um jogo de autentificação entre hóspedes e anfitriões, uma linguagem tão comum à procura da “autêntica” experiência turística. E neste jogo ainda que a autenticidade de alguns elementos seja forjada e levante suspeitas, a gastronomia exótica, a integração numa atmosfera familiar, onde se partilhava uma intimidade por regra reservada a conhecidos e amigos, constitui um conjunto de vivências com valor de experiência única para os turistas.

Nestes casos, o que está em causa é a sustentabilidade cultural deste tipo de turismo gastronómico.

Porém, em alguns casos, pode acontecer o contrário. Mykletun (in Fernandes e Richards, 2017, p. 19) cita que alguns alimentos não são acessíveis, nem atraentes, e podem até constituir-se como algo "assustador". Fernandes e Richards (2017, p. 19) enfatizam, pois, um elemento gastronómico local não garante o sucesso deste património, enquanto oferta produto turístico.

Para remediar estas situações, surgem propostas de fusão. Estas passam pela criação de uma relação que une os dois "mundos” (tradicional e contemporâneo). Este desafio, segundo Fernandes e Richards (2017, p. 19) pode ser interessante e agradável para o turista, quando bem pensado e estruturado. Parte-se do princípio de que esta adaptação pode ser suficientemente para que o turista sinta a proximidade com a região visitada.

Algumas formas de adaptação (quando exequíveis) podem seguir critérios como: disponibilidade do alimento, da mão-de-obra e de materiais; paladares exigentes, restrições alergénicas, de açúcares, baixo teor de hidratos de carbono, gluten-free, alimentação vegetariana ou vegana, por exemplo. Isso pode aproximar o turista com alguma restrição alimentar à cultura gastronómica local.

É a comunicação entre a comunidade local e o turista que torna o sucesso destas experiências mais viável. Uma vez que a própria sociedade local reconheça a sua riqueza e saiba o seu potencial, algumas adaptações, destinadas ao mercado global, podem servir como porta de entrada à imersão da sua culinária mais profunda e genuína. Neste caso, o habitante local percebe estas alterações, não como uma perda da sua identidade local, mas como uma forma de criar pontes com o turista globalizado, (leigo ou especialista), de forma confiável e respeitosa, e indo de encontro a algumas de suas limitações.

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À primeira vista, pode interpretar-se este fenómeno como uma relação não genuína da gastronomia local e tradicional57, mas o fenómeno do turismo parece provocar novas, e quiçá, constantes

adaptações ao que antes se entendia por tradicional ou convencional.

O desafio é saber o quanto preservar e o quanto inovar e quanto se deve versatilizar uma tradição gastronómica para atender a um público, em particular, e quanto manter-se autêntico em relação às suas raízes.

Em casos específicos, a adaptação pode permitir o intercâmbio cultural e gastronómico. É o caso da alheira, um enchido português à base de pão de trigo, carne e temperos. Uma das versões populares de sua origem (entretanto não comprovada) é dos judeus, que a criaram somente com carne de aves e de caça; uma alternativa aos enchidos disponíveis na região em que eram em sua maioria feitos à base de carne de porco. Essa adaptação alimentar (os judeus não comem suínos), em criar um enchido que se assemelhasse aos enchidos locais com porco, seria uma estratégia de sobrevivência na Idade Média, contra as perseguições da Igreja Católica durante o período da Inquisição. Hoje, já incorporada a culinária nacional e tornou-se um ícone.

Este produto já apresenta variações quanto aos seus ingredientes, podendo ser feitas de carne de porco, de javali, de galo, de vitela, de cogumelos58, light, de bacalhau ou vegetariana59, podendo ser

oferecidas a um leque variado de consumidores (inclui-se os turistas), consoante as suas restrições alimentares ou culturais.

Esse produto com história, conforme citado por Zuin e Zuin (2008, p. 109) poderá inclusive, conforme a possibilidade e a curiosidade, estimular a vontade de experimentar as versões mais tradicionais. Fernandes e Richards (2017, p. 32-33) defendem estas fusões ou “harmonização” entre os universos tradicionais e contemporâneos, como é o caso de uma

[...] possível relação entre o modelo tradicional e inovação no setor de alimentos e vinho, com base na criação de uma ligação entre o velho e o novo. Inovar a cozinha tradicional, mantendo os sabores, mas usando técnicas modernas (Epoch Taste 2015) é uma boa maneira de revitalizar a comida e vinhos locais e uma maneira possível para a "especialização inteligente" (Cavicchi e Stancova 2011).

O exemplo da região do Minho mostra como até mesmo uma área que tem uma forte ligação com a tradição pode inovar, mas somente se ele executa certas ações.”

57 Segundo Zuin e Zuin (2008, p. 109) alimentos tradicionais são os alimentos chamados, também, de produtos com história, pois constituem-se e fazem parte de um local e de uma determinada cultura, sendo produzidos, também, com a matéria-prima de determinada região. Devido aos conhecimentos e saberes-fazeres presentes nesses alimentos, através de gerações, a sua produção resgata não só a história envolta neles, mas o carácter histórico do próprio produtor.

58 A alheira de Cogumentos é confecionado pela empresa Grão-a-grão. Disponível em https://www.graoagrao.com/fumeiro/. Acesso a 18/05/2018 59 As alheiras Vegetariana, Bacalhau ou a Light são produtos confecionados pela Eurofumeiro. Disponível em http://www.eurofumeiro.com/produtos/eurofumeiro.html. Acesso em 18/05/2018.

45 Em primeiro lugar, convém "reinventar" os pratos, a fim de torná-los atraente para os turistas. Encontrar o equilíbrio certo entre a tradição e a inovação é difícil, mas é preciso para inspirar a imaginação do chef. É uma nova maneira de proteger a comida e o vinho adotando uma perspectiva retro inovadora ou, como definido por

Geoff (Universidade Wall of Waterloo), a "continuidade com a mudança." Esta abordagem exige tanto

conhecimento do passado e uma orientação para o futuro e considerar como e em que medida as necessidades e gostos dos consumidores modernos.

Em seguida, o que é preciso para melhorar o ambiente que serve a comida, enquanto os consumidores estão mais interessados em prazer, a diversão e a experiência à materialidade. Isto significa concretamente: para recriar uma atmosfera que lembra da terra e da cultura das pessoas que vivem lá; melhorar a comunicação, por exemplo, através da forma de narrativa; criar itinerários de Vinho e comida e combiná-lo com visitas a locais culturais e naturais.

Até mesmo, em termos de perfis de mercado, para Fernandes e Richards (2017, p. 33),

O turista, na verdade, quer saber como as influências culturais e ambientais mudaram a paisagem. Para o efeito, é útil ter as estratégias locais e marketing. Estes incluem atividades como: inventário dos usos e costumes tradicionais; aumentar o valor acrescentado dos produtos regionais; fornecimento de restaurantes locais com produtos locais em um tempo razoável.

No entanto, podem existir problemas nas adaptações da gastronomia tradicional, em que “[...] adaptando os gostos alimentares locais para o consumidor global pode causar um afrouxamento do vínculo com a terra e transformar o património gastronómico em algo falso, criado especialmente para os turistas” (Fernandes e Richards 2017, p. 20).

A gastronomia tradicional serve para que o turista identifique os alimentos locais e esteja em contacto com elementos que existem há muito tempo e tenham uma relação com o espaço em que se insere. A sua adaptação, pode ser viável e bem-sucedida, mas deverá ser pensada, estruturada e gradual (Fernandes e Richards, 2017, p. 22-23).

Tanto para usufruto do turismo, mas sobretudo para a manutenção de tradições, nomeadamente dos géneros alimentos, uma das alternativas sustentáveis encontradas, é a criação das denominações de origem. Estas, que certificam a origem e técnica de uma especialidade produzida, englobam a cultura, as tradições das comunidades e a manutenção de suas paisagens.