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Desjudicialização da execução no direito português

5.1 Execução desjudicializada

5.1.1 Desjudicialização da execução no direito português

Dentre os países europeus, Portugal empreendeu, nas últimas décadas, intensa caminhada no sentido de desjudicializar a execução.

A técnica, importa observar, foi adotada como medida de combate à lentidão e à falta de efetividade da execução, conseqüências da incapacidade de o Estado-juiz dar respostas adequadas e proporcionar a satisfação do exeqüente195, sobretudo num cenário de significativa elevação da quantidade de demandas propostas.

Com efeito, diagnosticou-se que o crescimento econômico e a “generalização do

crédito ao consumo”, observados especialmente a partir da década de noventa, provocou o “endividamento e sobreendividamento das pessoas singulares e, também, das empresas” e

trouxe, como indesejável conseqüência, expressiva elevação da proporção das demandas executivas nos Tribunais196, boa parte delas, a propósito, concentrada nos grandes centros financeiros197.

195 Conforme constou da Exposição de Motivos do Decreto-Lei nº 38/2003, a “excessiva jurisdicionalização e rigidez” dos atos executivos “tem obstado à satisfação, em prazo razoável, dos direitos do exequente. Os atrasos do processo de execução têm-se assim traduzido em verdadeira denegação de justiça, colocando em crise o direito fundamental de acesso à justiça”.

196 B. S. SANTOS, A justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas, in Manifesto, nº 7, 2005, p. 84.

197 Observa V. C. RIBEIRO que, em razão da regra de competência para o processamento das execuções (lugar

do cumprimento da obrigação – art. 94/1, CPC Português), a expressiva maioria das demandas executivas concentra-se nos tribunais do Porto e de Lisboa, não coincidentemente o local da sede da “generalidade dos bancos e instituições financeiras de crédito” (As funções do agente de execução, 2011, p.17).

De outro turno, era nítida a percepção de que demandas de baixa complexidade jurídica tomavam expressivo tempo dos juízes e consumiam expressivos recursos do Estado198, a justificar que, tanto quanto possível, os atos de execução fossem delegados a outros agentes e custeados pelos interessados, de modo a desafogar-se os Tribunais e imprimir celeridade à execução.

Sob o aspecto processual, a despeito importantes alterações no Código de Processo Civil ao longo da década de noventa199, foi somente a partir do Decreto-Lei nº 38/2003 que Portugal implementou verdadeiramente “um projecto de reforma da acção executiva que,

sem romper a sua ligação aos tribunais, atribuiu a agentes de execução a iniciativa e a prática dos actos necessários à realização da função executiva”, com o declarado

propósito de “libertar o juiz das tarefas processuais que não envolvem uma função

jurisdicional e os funcionários judiciais de tarefas a praticar fora do tribunal” 200.

Em linhas gerais, norteou-se a desjudicialização operada em Portugal por força do aludido Decreto-Lei nº 38/2003 pelo escopo de limitar, tanto quanto possível, a intervenção do juiz no desempenho dos atos de execução201, atribuindo-os, via de regra, a

agente de execução privado, escolhido e remunerado pelo exeqüente, sem subordinação

hierárquica em relação ao juiz202, a quem cabe, “salvo quando a lei determine

diversamente, efectuar todas as diligências do processo de execução, incluindo citações, notificações e publicações”203, reservando-se ao juiz de execução essencialmente o “poder

geral de controlo do processo”204.

198 Depois de discorrer sobre indicadores estatísticos sobre as acções de dívida, concluiu B. S. SANTOS que

“estes indicadores mostram que os nossos tribunais, em matéria cível, estão afogados em processos que não tem nenhuma complexidade jurídica, mas que levam o Estado a gastar muitos milhares de euros para julgar cada uma daquelas acções” (A justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas, in Manifesto, nº 7, 2005, pp. 83-84).

199 Sobretudo por força dos Decretos-Lei nºs 329-A/95, 180/96 e 274/97. 200 Exposição de Motivos do Decreto-Lei nº 38/2003.

201

Nas palavras de P. COSTA E SILVA, era objetivo da reforma da ação executiva “restringir as competências primárias do tribunal da execução a um mínimo possível. O tribunal só intervém quando é de todo impossível negar a natureza jurisdicional do ato a praticar. Nos demais casos, evita-se tanto quanto possível o contacto do tribunal com a execução” (A reforma da acção executiva, 2003, pp. 11/12).

202

Sobre o ponto, v. nota 183 acima.

203 Art. 808/1 do Código de Processo Civil Português. 204 Art. 809/1 do Código de Processo Civil Português.

As significativas alterações pretendidas pelo legislador português não surtiram efeito positivo imediato205 e, aos 20 de novembro de 2008, sobreveio novo diploma legal, o Decreto-Lei 226/2008, com o declarado objetivo de “aperfeiçoar o modelo de Reforma da

Acção Executiva” implementado cinco anos antes, “aprofundando-o e criando condições para ser mais simples, eficaz e apto a evitar acções judiciais desnecessárias”206.

Por força do novo diploma, alargou-se a competência do agente de execução e se restringiu ainda mais o rol de atribuições do juiz.

Certo é que a execução ainda se inicia por requerimento do exeqüente, dirigido ao Tribunal207. Já não cabe, contudo, à Secretaria do Tribunal, o primeiro controle formal sobre o ato208, nem tampouco, em regra e de ofício, ao juiz209. Será o agente de execução, preferencialmente já indicado pelo exeqüente210, quem receberá o requerimento executivo

205

Asseverou M. D. SERRA que “se nos for permitido fazer um balanço da reforma de 2003, e nomeadamente pelo prisma de quem também trabalha no terreno, como advogado, poderemos afirmar que a situação foi em certos períodos de tempo, um verdadeiro caos” (Breve análise crítica de algumas das alterações ao regime da acção executiva portuguesa. A reforma de 2003 e a recente reforma com o D.L. nº 226/2008. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/14066>. Acesso em: 16.04.2011). Dentre os inúmeros problemas apontados pelo autor, que teriam impedido que a reforma fosse bem sucedida, destacam- se “a falta de Tribunais de Execução, a incompreensão entre Solicitadores e Juízes, entre Solicitadores e Advogados, a inexistência de depósitos públicos para a guarda dos bens penhorados, dificuldades informáticas, dificuldade de acesso dos Solicitadores às bases de dados públicas e privadas” (ob. cit.). 206 Exposição de Motivos do Decreto-Lei nº 226/2008.

207 Art. 810/1 do Código de Processo Civil Português. Em tal requerimento, acompanhado do título executivo

judicial ou extrajudicial, o exeqüente deve, dentre outros requisitos identificar e qualificar as partes, indicar o endereço profissional de seu mandatário judicial, designar o agente de execução, indicar os fins da execução, expor sucintamente os fatos que fundamentam o pedido (se não constarem do título executivo), formular o pedido, declarar o valor da causa, liquidar a obrigação e escolher a prestação, indicar, se possível, o empregador do executado, suas contas e seus bens e requerer a citação prévia ou sua dispensa (Art. 810/1 , “a” a “j”). O requerimento executivo e os documentos que o acompanhem devem ser apresentados ao Tribunal preferencialmente por via eletrônica e assim são transmitidos ao agente de execução designado (art. 810/7 do Código de Processo Civil Português).

208 Sob a égide do Decreto-Lei nº 38/2003, a Secretaria do Tribunal deveria recusar-se a receber o

requerimento de execução que não preenchesse requisitos formais, que carecesse de título executivo ou ainda se fosse “manifesta a insuficiência do título apresentado” (art. 811/1, “a” a “c”, do Código de Processo Civil Português, em sua redação anterior), cabendo deste ato reclamação para o juiz (art. 811/2 do citado Código).

209 Também sob a égide do Decreto-Lei nº 38/2003, exercia o juiz o “poder geral de controlo do processo”

(art. 809/1), cabendo-lhe indeferir liminarmente o requerimento executivo, se manifesta a falta ou insuficiência do título e a secretaria não tenha recusado o requerimento (art. 812/2, “a”, do Código de Processo Civil Português, revogado pelo Decreto-Lei nº 226/2008). No regime atual, caberá ao agente de

execução provocar o controle prévio, remetendo o processo para despacho inicial nas hipóteses do art.

812/D do Código de Processo Civil Português; sem prejuízo de as partes acorrerem ao juiz, que, no entanto, deixou de exercer o controle prévio de ofício.

210 Já no requerimento executivo deve o exeqüente indicar o agente de execução (art. 810/1, “c”, do Código

e os documentos que o acompanham211, verificará se é caso de haver despacho inicial pelo juiz de execução212 ou de proceder-se imediatamente à penhora213.

Na seqüência do procedimento, os atos são realizados, via de regra, com elevada dose de autonomia, pelo agente de execução, a quem cabe, dentre outros misteres, consultar informações sobre o patrimônio do executado214; efetuar a penhora, observando- se a ordem legal215, constituir-se como depositário216, requerer diretamente o auxílio de força policial se encontrar resistência217 e cuidar da expropriação do bem penhorado218 e pagamento ao credor.

No desempenho das diligências executivas que lhe cabem, o agente de execução acaba por tomar decisões, compreendidas em sentido amplo de resultado do exercício de processo mental, sem que isto implique julgamento de pretensões das partes e exercício de

jurisdição219.

211 O que deve ser feito preferencialmente por via eletrônica (art. 810/7 do Código de Processo Civil

Português). Também pode o exeqüente substituir livremente o agente de execução (art 808/6 do referido Código).

212 As hipóteses em que o despacho inicial é necessário estão previstas nas alíneas do art. 812/D do Código

de Processo Civil Português. Dentre elas, destacamos a de “o agente de execução duvidar da suficiência do título ou da interpelação ou notificação do devedor” (alínea “e”).

213

O que deve ocorrer se o título executivo for “decisão judicial ou arbitral”, “requerimento de injunção

no qual tenha sido aposta a fórmula executória ou ainda dependendo-se da combinação da qualidade do

título (“documento exarado ou autenticado por notário, ou documento particular com reconhecimento presencial da assinatura do devedor”) com o valor da dívida (se superado o “valor de alçada do tribunal da relação”, deverá o exeqüente comprovar “ter exigido o cumprimento por notificação judicial avulsa”) e o objeto da penhora (“não recaia sobre bem imóvel, estabelecimento comercial, direito real menor que sobre eles incida ou quinhão em património que os inclua”), hipóteses expressamente contempladas no Art. 812-C, “a” a “d”, do Código de Processo Civil Português. Também se dispensa o despacho liminar, dentre outras hipóteses esparsas no referido Código, “nas execuções fundadas em título extrajudicial de empréstimo contraído para aquisição de habitação própria hipotecada em garantia” (art. 812-F/2, “c”).

214 Art. 833-A do Código de Processo Civil Português. Permite-se ao agente de execução, “sempre que necessário e sem necessidade de qualquer autorização judicial, à consulta, nas bases de dados da administração tributária, da segurança social, das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes, de todas as informações sobre a identificação do executado junto desses serviços e sobre a identificação e a localização dos seus bens” (art. 833-A/2).

215 Art. 834 do Código de Processo Civil Português. 216

Art. 839 do Código de Processo Civil Português, ressalvadas situações excepcionais e ainda as de o exeqüente consentir que seja depositário o próprio executado ou outra pessoa designada pelo agente de execução.

217 Art. 840 do Código de Processo Civil Português. 218

Art. 866-A e ss. do Código de Processo Civil Português.

219 “além das diligências próprias do processo de execução (penhora, venda e pagamento), também incumbe ao agente de execução a tomada de decisões que, embora não se confundam com a resolução de um litígio, ou seja, que não envolvam a função jurisdicional típica (dizer o direito e zelar pelo cumprimento do ordenamento jurídico vigente), decerto resultarão numa necessária cognição, mesmo que superficial, típica da natureza do próprio procedimento executivo. Não é por outro motivo que compete ao agente de execução ‘avaliar a prova documental que lhe é apresentada para demonstração de que a condição se verificou ou de

Reserva-se a atuação do juiz, segundo declaração expressa do legislador, “para as

situações em que exista efectivamente um conflito ou em que a relevância da questão o determine”, tal como ocorre, exemplificativamente, acaso se torne necessário “proferir despacho liminar, apreciar uma oposição à execução ou à penhora, verificar e graduar créditos, julgar reclamações, impugnações e recursos dos actos do agente de execução ou decidir questões que este suscite” 220.

Embora pareçam prevalecer os aplausos, a doutrina não deixa de tecer críticas às reformas empreendidas na execução civil portuguesa221.

Ademais, no que toca mais de perto à segunda parte do presente estudo, interessante notar que Portugal não dispõe de procedimento específico para a execução dos créditos pecuniários dotados de garantia hipotecária: a satisfação destes deve ser perseguida no processo executivo ordinário222, largamente desjudicializado.

que o exequente efectuou ou ofereceu prestação (cfr. art. 804º, n. 1); deferir, se não houver oposição do exequente, o requerimento do herdeiro para o levantamento da penhora sobre bens próprios (cfr. art. 827º, n. 2); reduzir, segundo certos critérios, a penhora que foi efectuada em várias contas bancárias de que o executado seja titular (cfr. art. 861º-A, ns. 3 e 4); deferir o requerimento de suspensão da instância apresentado pelo exequente e pelo executado com base no acordo para o pagamento em prestações da dívida exequenda (cfr. art. 882º, n. 1)” (S. GARSON, A desjudicialização da execução hipotecária como meio alternativo de recuperação de créditos, Dissertação (Mestrado), 2006, p. 35).

220

Exposição de Motivos do Decreto-Lei nº 226/2008.

221 J. LEBRE DE FREITAS registra que, se com a reforma da acção executiva (Decreto-Lei nº 38/2003), “o juiz tinha o poder geral de controlo do agente da execução, que lhe era lícito exercer oficiosamente”, inclusive para destituí-lo “com fundamento em actuação processual dolosa ou negligente ou em violação grave de dever estatutário”, a partir da reforma da reforma (Decreto-Lei nº 226/2008) “os poderes do juiz aparecem drasticamente limitados (...) ao mesmo tempo que é concedido ao exequente o direito de livre destituição do agente de execução” - o que, em seu entender, ameaça descaracterizar a já referida natureza mista do agente de execução (funcionário público e profissional liberal – v. nota 169 acima) “acentuando desequilibradamente as características dum contrato de mandado” -, concluindo que “algumas limitações do poder jurisdicional depois da reforma da reforma não deixam, porém, de pisar um risco que não deveria

ser pisado” (A acção executiva depois da reforma da reforma, 2009, pp. 27-28, notas 59 e 60). P. COSTA E

SILVA, que de forma geral parece enaltecer as reformas, externa preocupação quanto ao elevado custo da execução e receia que só as grandes execuções tenham celeridade (A reforma da acção executiva, 2003, p. 12). M. D. SERRA, por seu turno, tece contundentes críticas e defende que o aumento dos poderes do agente de execução encerraria clara inconstitucionalidade, por violação da reserva de juiz consagrada pelo art 202, nº 2, da Constituição Portuguesa (Breve análise crítica de algumas das alterações ao regime da acção executiva portuguesa. A reforma de 2003 e a recente reforma com o D.L. nº 226/2008. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/14066>. Acesso em: 16.04.2011).

222 Como registra I. M. CAMPOS, de há muito não existe em Portugal “um procedimento especial da venda da coisa hipotecada, a execução hipotecária como processo autónomo foi abolida com o Código do Processo Civil em 1939. Para executar uma dívida garantida por hipoteca, tem de seguir-se o processo executivo ordinário” (Particularidades da execução de hipoteca, in A reforma da acção executiva, 2001, p.2).

5.1.2 Notas sobre a desjudicialização da execução em outros

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