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É sabido que, no passado, os estudiosos do direito processual pouca atenção dedicavam à execução. O tema despertou o interesse da doutrina apenas mais recentemente e foi abordado, essencialmente, pelo prisma da jurisdição.

Como observou R. PERROT, proferida a decisão, declarado o direito, a sua efetivação parecia relacionar-se a um outro mundo, o do imperium, um mundo estranho à ciência processual, não pertencente ao judiciário, mas aos agentes da força pública.

Modernamente, constatado interessar ao jurisdicionado a satisfação e não o mero reconhecimento de seu direito, passou-se a abortar o tema considerando ser o imperium

inseparável da jurisdictio, este último o complemento natural da primeira127.

As relações estabelecidas entre execução e jurisdição, intensificadas a ponto de se afirmar que a execução teria natureza jurídica de jurisdição, merecem ser revisitadas para melhor contextualização do tema em exame nesta tese.

3.3.1 Natureza jurídica da execução civil

Embora em sua origem remota a execução tenha tardado mais a entrar no rol das atividades do Estado do que a cognição128, e a despeito de se haver sustentado, com mais força no passado do que modernamente, a tese de que a execução pertenceria, dentre as atribuições estatais, à função administrativa129, prepondera largamente na doutrina o reconhecimento do caráter jurisdicional da execução.

Observava E. T. LIEBMAN130 que a função jurisdicional

127

Les enjeux de l’exécution des decisions judiciaries en matière civile, in L’ exécution des décisions de justice en matière civile, 1998, p. 9

128 Lembra-o C. R. DINAMARCO (Execução Civil, 1994, p. 188).

129 O. A. SILVA, remetendo ao pensamento de HELLWIG e de P. CALAMANDREI, observa que, “para ambos os juristas, execução é ‘um ato executivo do Estado’, portanto não mais jurisdicional, mas praticado pelo juiz enquanto agente do Poder Executivo” (Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, 1997, p. 45). 130 Processo de execução, 1980, p. 5.

não consiste só em julgar, isto é, declarar qual seja a regra jurídica concreta estabelecida pelo direito para regular o caso submetido a julgamento, mas também em realizar praticamente a regra sancionadora decorrente da inobservância daquela primeira regra, isto é, do inadimplemento do obrigado. (...) o conhecimento e julgamento da lide (processo de cognição) e a atuação da sanção (processo de execução) são duas formas igualmente importantes da atividade jurisdicional, que se complementam, estando uma a serviço da outra.

Conclui, assim, que “é quase desnecessário declarar que deve rejeitar-se a opinião,

que é feita, aliás, com freqüência sempre menor em tempos recentes, segundo a qual a execução seria atividade puramente administrativa”131.

Fez-lhe coro C. R. DINAMARCO, que considera tipicamente jurisdicionais tanto os

atos executivos quanto a tutela, vale dizer, o resultado que tais atos proporcionam. O desempenho dos atos executivos desvelaria a nítida característica da substitutividade presente na jurisdição: não podendo alcançar com mão própria a satisfação do crédito inadimplido, o credor haveria de acorrer ao Estado-juiz, que se substitui àquele para persegui-la. A atividade de realização dos atos executivos, ademais, também traria, dentre outras, a marca da inevitabilidade, que igualmente caracteriza a jurisdição. Pela perspectiva do resultado, seria jurisdicional a tutela executiva na medida em que a

satisfação do credor elimina a crise de adimplemento e proporciona a pacificação com justiça, escopo social magno da jurisdição132

Para o professor paulista, a cogitação de enquadramento da execução como

atividade administrativa se deveu, sobretudo, ao mau vezo de determinar a natureza da jurisdição segundo o órgão que a exerce133.

131 E. T. LIEBMAN, Processo de execução, 1980, p. 5. 132

Instituições de direito processual civil, v, IV 2009 pp. 55-56. Em obra anterior, o referido autor foi igualmente categórico quanto ao caráter jurisdicional da execução: “na atividade desenvolvida pelo Estado no processo executivo, encontram-se as características essenciais da jurisdição, como o escopo social de pacificação, o jurídico de atuação da vontade concreta da lei e o traço de substitutividade. Só isso bastaria (...) para se pôr fora de dúvida a jurisdicionalidade da execução forçada” (Execução Civil, 1994, p 190). 133 Explica C. R. DINAMARCO que os sergents du roy, agentes de execução no antigo direito francês, eram

órgãos diretamente ligados ao monarca, e não ao juiz. Como tais agentes eram alheios ao Poder Judiciário, sustentou-se - equivocadamente, no entendimento do mencionado professor – que não poderiam realizar atividade jurisdicional; no entanto, s reconhecendo-se que as atividades que desempenhavam eram nitidamente públicas, concluiu-se que a execução forçada pertenceria à função administrativa do Estado, ainda que conexa à jurisdicional (Execução Civil, 1994, pp. 84 e 189).

Não se trata, contudo, de um assunto completamente superado.

Se está em crise e reclama por revisão o próprio conceito de jurisdição, que já não pode mais ficar circunscrita ao Estado e, mais limitadamente ainda, ao Poder Judiciário134, certamente o enquadramento da execução sob os moldes da jurisdição também merece ser repensado.

Uma das críticas que se pode fazer ao suposto caráter jurisdicional da execução é que tal afirmação justificou-se, no passado, muito mais em razão da preocupação de que os atos executivos se desenvolvessem sob os cânones do devido processo legal e sem violar direitos fundamentais do executado do que, mais propriamente, em atenção à natureza, em si, da atividade realizada.

Com efeito, voltando-se os olhos à natureza da atividade desempenhada, é evidente a enorme diferença que há entre dizer o direito e em atuá-lo praticamente. Já a apontara C. NEVES, que recusava caráter jurisdicional à execução, nela vendo, isto sim, atividade juris- satisfativa135.

Atribuir caráter jurisdicional à execução, pois, padeceria de alta dose de artificialismo, por se ter classificado o fenômeno não em razão do que ele é, em sua essência, mas sim em razão de como se deseja que ele se manifeste.

Já não mais seria mais necessário, no entanto, recorrer a tal estratagema: seja jurisdicional, seja administrativa, o desenrolar da atividade executiva haverá de observar as garantias insculpidas na Constituição Federal, inclusive a do devido processo legal136.

134 V. item 3.1 acima.

135 “Quando se disse jurisdicional o processo de execução, partiu-se de falsa premissa, porque equívoco o próprio sentido do vocábulo jurisdição, dando margem a maiores dúvidas da doutrina, no plano de sua rigorosa conceituação. O próprio sentido etimológico da palavra brigava com tal amplitude de acepção. Dizer o direito é próprio e exclusivo do processo de conhecimento. Neste é que, em face de dúvida quanto ao juízo, se diz o direito que incidiu e se soluciona a lide, na medida de sua pré-composição pela lei. (...). Logo, na execução não pode haver atividade jurisdicional, porque essa já se cumpriu, no processo de conhecimento. O que há é atividade de tutela juris-satisfativa – não jurisdicional – porque o que se quer, nos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada, é satisfazer o interesse do litigante” (Classificação das ações, in Revista da Faculdade de Direito, nº LXX, 1975, pp. 348-349).

136

“Não é necessário forçar a natureza do processo de execução para que se apliquem a esta estrutura e tenha a ela a natureza que tiver as garantias do processo eqüitativo” (P. COSTA E SILVA, A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de resolução de controvérsias, 2009, p. 95).

Não se desconhece, de outro lado, o argumento, invocado em defesa da natureza jurisdicional da execução, de que não se pode resolver as crises jurídicas e alcançar a

pacificação social por meio de simples declaração do direito. A premissa, verdadeira, não

sustenta a conclusão: é inegável que ao Estado devem ser assegurados meios para fazer atuar, em concreto, os direitos que declara nas decisões condenatórias que profere ou que reconhece em outros títulos executivos; todavia, daí não se extrai que a execução integra a

jurisdição137.

Da mesma forma, a premissa de que o modelo executivo brasileiro do Código de Processo Civil consagra o monopólio judicial da execução – e mesmo que se queira atribuir a tal execução ares de jurisdicionalidade – não sustenta a conclusão de que a execução tenha, sempre e em qualquer hipótese, natureza jurisdicional138.

Mas o caso é que tal debate, em verdade, no mínimo diminuiu de importância, a ponto de não ser necessário tomar-se partido da discussão para assentar as conclusões que virão no curso deste trabalho.

Suficiente aludir ao reconhecimento de C. R. DINAMARCO, décadas depois de sustentar enfaticamente a jurisdicionalidade da execução forçada, de que a passagem do tempo acabou por convencê-lo de que não é tão importante saber se é jurisdicional ou

administrativa a atividade realizada na execução, posto que ambas são expressões de um

único Poder, o Poder do Estado139.

Ao que aqui interessa, mister anotar que a execução, amparada no imperium estatal, pode ter seu exercício atribuído a agentes de execução distintos dos juízes, quer se

137

“Se é evidente que, sem atividade de satisfação coactiva, não cumpre o Estado com a função de tutela das situações jurídicas individuais, nem toda a tutela de posições individuais implica jurisdição, não sendo as estruturas de tutela estruturas em que se exerce a actividade jurisdicional” (P. COSTA E SILVA, A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de resolução de controvérsias, 2009, p. 95).

138

“Da jurisdicionalidade da execução da sentença não decorre que tenha natureza jurisdicional toda e qualquer execução. (...) Constitui erro de lógica extrair-se, da natureza jurisdicional da execução de sentença, a conclusão de que é ou deva ser jurisdicional qualquer execução, porque a conclusão vai além da premissa (J.M. TESHEINER, Jurisdição, Execução e Autotutela, in J. M. TESHEINER et al, Instrumentos de coerção e outros temas de direito processual civil: Estudos em homenagem aos 25 anos de docência do prof. Araken de Assis, 2007, p. 381)

pretenda tenha ela natureza administrativa, quer se sustente tenha ela natureza jurisdicional.

Insiste-se que a afirmação da natureza jurisdicional da execução não seria um problema instransponível ao reconhecimento da legitimidade da execução extrajudicial, sobretudo no caso de se aceitar a proposição, examinada em tópico anterior, de que o exercício da jurisdição pode ser atribuído, pelo Estado, a não juízes140.

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