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Se a resolução de conflitos por meio de técnicas distintas da jurisdição estatal já não mais causa estranheza, a ponto de se cogitar do exercício de atividade jurisdicional por órgãos não integrantes do Estado, o mesmo não se pode dizer do exercício da atividade

executiva.

Abstraindo-se de técnicas primitivas cabíveis em sociedades desprovidas de um Estado suficientemente consolidado, pelas quais cabia ao particular empregar sua própria força para satisfazer os próprios interesses, o desenvolvimento da civilização conduziu ao fortalecimento do Estado e a evolução da execução caminhou no sentido de sua

estatalização117.

Com a ressalva de não se pretender fazer afirmações calcadas em impossível

certeza histórica, ensina C. R. DINAMARCO que sociedades primitivas haviam de recorrer à

autotutela, desequilibrada na medida do jogo de forças entre exeqüente e executado,

podendo culminar nos extremos de desproporcional sacrifício deste último ou de completa insatisfação do primeiro118; a consolidação do Estado e atribuição, a este, do desempenho dos atos de execução, permitiu que as atividades de satisfação coercitiva dos interesses do credor pudessem se realizar de maneira humanizada e equilibrada.

mesmo fenômeno: o da desjudicialização (A justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas, Manifesto, nº 7, 2005, pp. 81-82).

117 Destacando o acentuado caráter privado das legis actiones per manus iniectonem e per pignoris capionem

nos primórdios do Direito Romano e a reduzida participação do Estado em tal período, v. E. BETTI, Processo civile – Diritto romano, in Novissimo Digesto Italiano, v. XIII, 1957, pp.1117-1118. Sobre a evolução histórica da execução, no largo espectro temporal que compreende desde a provável fundação de Roma (séc. VIII a. C.) até as Ordenações Filipinas, realçando sua progressiva, mas nem sempre linear e constante, trajetória do particular para o público, do privado para o estatal, para concluir que tal trajetória reflete a busca pela centralização do poder, cf. J. R. MORAES, Evolução histórica da execução civil no direito lusitano, passim, 2009.

118 Aponta C. R. DINAMARCO que, na autotutela “por um lado praticam-se excessos, com a imposição de sacrifícios a quem não deve, ou de sacrifícios desumanos, ou superiores ao débito; por outro lado, permite- se que fiquem sem proteção os direitos de quem não tem força suficiente para arrebatar ao adversário o que lhe é devido, ou os de quem não se dispõe à prática da violência, nem tem suficiente astúcia” (Execução Civil, 1994, p. 30).

Modernamente, difícil desvincular, do Estado, a execução, sendo praticamente consenso afirmar-se a existência de monopólio estatal da execução119, corolário do

monopólio estatal da força (imperium)120.

3.2.1 Execução, imperium e emprego de força física

Dado o caráter prevalentemente prático da execução, para que possa operar modificação no mundo sensível para torná-lo conforme ao direito, avulta na execução o emprego, efetivo ou potencial, da força (imperium)121.

Importa notar, contudo, como bem destaca P. CALAMANDREI, que as modificações no mundo sensível não necessariamente são acompanhadas do uso de força física122.

Cogitando-se de execução por quantia, a transferência coercitiva do imóvel expropriado, que deixa de integrar o patrimônio do executado e passa a integrar o patrimônio do adquirente – ato de fundamental importância para o tema aqui examinado – prescinde de força física, que será necessária, no entanto, para eventual obtenção da posse123.

Mister não confundir, pois, o imperium de que é investido o Estado – e que legitima a transformação característica da execução, para satisfazer o interesse do credor independentemente e até mesmo contra a vontade do devedor – com o efetivo emprego de

força física, um dos possíveis desdobramentos do imperium para remover certas

119

Observa J. R. MORAES que “a luta pelo monopólio estatal da execução foi também a luta pela conquista da jurisdição” (Evolução histórica da execução civil no direito lusitano, 2009, p. 242).

120 Emprega-se aqui o termo imperium em seu sentido vulgar de poder máximo, de comando absoluto,

atrelados à autoridade e à soberania de quem o detém, a exigir a submissão daqueles contra os quais o imperium se exerce. É sabido, no entanto, que, sob perspectiva histórica, não é possível identificar um conceito unívoco e imutável de imperium (v. L. BOVE, Imperium, in Novissimo Digesto Italiano, v. VIII, 1957, pp. 209-212). Ainda sob o aspecto histórico, acentuando a distinção entre o imperium - detido pelo pretor romano e característico dos interdicta-, e a iurisdictio – esta exercida por meio da actio -, cf. O. A. SILVA, Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, 1997, esp. pp. 25-32.

121 Como observou R. VACCARELLA, é possível afirmar, por influência histórica emanada do direito romano,

que a execução pertence mais à esfera do imperium mais do que a da jurisdição (Titolo esecutivo, precetto, opposizione. 2. ed., UTET, 1993, p. 12, apud O. A. SILVA, Jurisdição e execução na tradição romano- canônica, 1997, pp. 41-42). Sobre o ponto, v. ainda itens 2.1 acima e 3.3.1 abaixo.

122 Instituciones de derecho procesal civil, 1943, p. 91.

resistências concretas que obstacularizem a transformação, que normalmente se reserva ao Poder Judiciário124.

A distinção parece óbvia, mas será preciso tê-la presente para constatar que a

execução extrajudicial de que aqui se cuida repousa, em última análise, no imperium

estatal, de cuja parcela – nos limites suficientes para a expropriação, mas sem alcançar o emprego da força física – é investido, por força de lei, o agente que a conduz, ainda que estranho aos quadros do Poder Judiciário.

Vale lembrar, com J.J. CANOTILHO, que é possível divisar, no processo, dimensões

que não exigem a intervenção do juiz e podem ser atribuídas a outros agentes125. Na hipótese em questão, o fenômeno que se manifesta, para F.P. RIBEIRO, é o de delegação do exercício do império a agentes que passam a desempenhar função pública de forma privada126.

É o Estado, pois, quem autoriza um agente não-juiz a operar, na execução extrajudicial, a transformação sensível que satisfaz o credor independentemente do recurso à força física: este, se necessário, haverá de ser prestado diretamente pelo Estado, por meio do Poder Judiciário.

124 Como observa A. PROTO PISANI, nos processos de execução forçada, às vezes, pode ser necessário o emprego da força física, mas tal recurso não poder ser exercido pelos sujeitos apartados do poder judiciário (Lezioni di diritto processuale civile, 2006, p. 694). Registra A. BONSIGNORI que se o devedor não desiste de atitudes que o fazem permanecer na posição de inadimplente, será necessário o uso do emprego da força física para modificar a situação material. Mas tal emprego não pode ocorrer se não por indivíduos pertencentes ao poder judiciário (L´Esecuzione Forzata, 1996, p. 5).

125

Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003, p. 664.

126 “Acredita-se que o império também pode ser delegado, por opção legislativa, mas de modo a mantê-lo sob a esfera estatal. Os atos de constrição patrimonial não podem ser realizados por qualquer particular, mas sim por entes delegados do próprio Estado, que assim possam exercer função pública de forma privada. Vale lembrar que o ofício delegado é de competência do Estado, cuja titularidade é mantida, tão somente o exercício desse ofício é transferido a um particular” (Desjudicialização da execução civil, Tese (Doutorado), 2012, p. 43).

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