Pouquíssimos textos do AT ressaltam os conceitos bíblicos de eleição e graça mais do que os relatos que envolvem Jacó. Conforme já assinalado, Deus diz que Jacó dominará sobre Esaú, quando os gêmeos ainda se em purram no ventre da mãe (25.23). A predição divina cumpre-se parcial mente quando Jacó ganha o direito de primogenitura, desconsiderado por Esaú (25.34) e rouba a bênção que Esaú deseja desesperadamente (27.1- 40). Devido ao rancor de Esaú por Jacó, seus pais enviam o “abençoado” para morar com seu tio Labao (27.42—28.2; v. o papel de Labão em Gn 24). No entanto, antes de Jacó partir, o pai declara com todas as letras que ele deve levar adiante a fé abraâmica e receber a bênção (28.3,4). E certo que, até este momento, Jacó não demonstrou um caráter piedoso. Em vez disso Deus escolhe antes que essas ações pudessem acontecer, algo para o qual Paulo chama a atenção em Romanos 9.10-18. Deus abençoa Jacó mais do que a Esaú por amor a Jacó, uma idéia ressaltada em Mala quias 1.2,3. A graça divina seleciona este homem terrivelmente imperfei to, não por causa de mérito algum de sua parte.43 O amor determina a decisão, e esse amor é tão grande por Jacó quanto é por Abraão e Isaque, pois as promessas divinas feitas anteriormente permanecem de pé.
O que não se diz a essa altura de Gênesis é se a escolha divina de Jacó inibe a fé e a obediência por parte do escolhido. Lenta, perceptível, até mesmo inexoravelmente, o Senhor torna o eleito uma pessoa de fé, mas a empreitada não é nem rápida nem fácil.44 Deus começa a obra da mesma maneira como fez com Abraão e Isaque — mediante revelação e promessa (28.10-22). Cada promessa feita a Abraão e Isaque é oferecida a Jacó: terra (28.13), descendentes (28.14), ser bênção para todos os povos da terra (28.14) e a presença divina ininterrupta (28.15). Jacó aprende, sem ter dúvida alguma, o significado de possuir o direito de primogenitura e a bênção da família de Abraão.45 Ele parece impressionado por ter recebido tais promessas, mas esboça uma reação ambígua, insignificante quando
43V. Rm 9.10-18.
44Observe-se a excelente abordagem que Victor Paul Hamilton faz do crescimento da fé de lacó em Handbook on the Pentateuch, p. 117-28.
45Von Rad, O ld Testament theology, vol. 1, p. 172 (publicada em português com o título Teologia do Antigo Testamento).
comparada com a maneira de seu avô e seu pai reagir aos encontros iniciais com Deus. Como se estivesse negociando com Esaú ou o líder de alguma tribo, Jacó promete fazer do Senhor seu Deus só se ele puder voltar em segurança para casa em algum momento no futuro. O amor divino por Jacó não está condicionado a obras, mas Jacó parece decidido a não ofere cer seu amor por tão pouco.
As circunstâncias na vida de Jacó acentuam as conseqüências de querer bênçãos sem oferecer uma fé obediente e sem ressalvas. Ao mesmo tempo revelam que os propósitos e as promessas de Deus acontecerão, não impor tando quão difícil seja seu cumprimento. Por exemplo, em algum mo mento no futuro Jacó tem doze filhos e uma filha. Os doze filhos tornam- se o começo das doze tribos de Israel e, dessa forma, o elemento catalisador para Deus cumprir as promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó de que uma grande nação descenderia deles.
Contudo, para ter esses filhos, Jacó tem de se casar com duas mulheres, uma que ele ama e uma que ele não ama (29.15-30), por ter sido engana do pelas mulheres e pelo pai delas, Labão (29.1-14). Ele sofre com a divi são dentro de casa provocada pelas mulheres, que competiam entre si pela atenção de Jacó (v. Gn 30.8), e labuta sob os olhos atentos de seu sogro, Labão, preocupado em tirar vantagem (30.25-43). Finalmente Jacó fica rico, da mesma maneira como acontecera com o pai e o avô, mas só depois de duas décadas de trabalho árduo para Labão, cujos filhos entendem que a prosperidade de Jacó é prejudicial à família deles (30.1,2). No sogro Jacó vê alguém tão desejoso de enganar, tão desejoso de atingir os próprios objetivos, tão desejoso de fazer negócios quanto ele próprio. G. J. We- nham assim sumaria esses episódios:
Apesar disso, por meio dessas experiências os propósitos divinos avan çaram. Jacó recebera a promessa de que teria uma multidão de descen dentes, e foi por intermédio da desamada Lia e da serva desta, Zilpa, que oito das doze tribos tiveram origem. Desse modo, mesmo a trapa ça de Labão e Jacó podem ser suplantadas de modo a fazer o plano divino se cumprir (v. Os 12.2). Pecados humanos podem ter adiado a volta de Jacó para sua terra natal, mas os demais aspectos das promes sas feitas tiveram seqüência durante sua infeliz peregrinação pela Meso- potâmia.46
Até este momento da história, Deus manteve cada promessa relevante feita a Abraão, Isaque e Jacó. Assim mesmo Jacó permanece alguém não
muito fiel. Entretanto, quando o Senhor promete estar com Jacó caso este retorne (31.3), mesmo esse problema tem solução. Jacó receia voltar por causa do rancor de Esaú, de modo que divide a família em grupos e envia presentes a Esaú (32.1-21). Ao mesmo tempo ora fervorosamente para que Deus, que prometera estar com ele, proteja-o do irmão (32.9-12).
Para compensar os temores de Jacó, o Senhor toma medidas extraordi nárias para assegurar, eleger, o caráter da fé de Jacó. Tarde da noite, perto do rio Jaboque, Jacó é atacado por alguém cuja identidade é revelada pou co a pouco no relato. Primeiro, quem luta com Jacó é chamado “homem” (32.24), mas não é um homem qualquer, pois ele apenas “toca”47 a coxa de Jacó, e isso é o suficiente para deixá-lo manco para o resto da vida (32.25,31,32). Segundo, o atacante pede ao tenaz Jacó que o solte, assina lando que o novo dia está rompendo. Este atacante é um espírito fluvial que tem medo da luz, uma idéia proposta por Westermann,48 ou é apenas alguém pronto a conduzir o encontro ao ápice? A situação fica clara quan do o atacante muda o nome de Jacó para Israel, ou de “alguém que agarra o calcanhar” ou “suplantador” para “ele luta com Deus”, e assegura-lhe que ele “venceu”. Ao abençoar Jacó e mudar-lhe o nome, o atacante revela- se superior ao homem que acabou de ficar manco e receber um novo nome. Encerrado o episódio, o texto diz que Jacó acredita ter sorte de estar vivo, pois acha que viu a Deus e sobreviveu (32.30). Jacó não é da opinião de que teve um encontro com um espírito fluvial. Ele encontrou-se com al guém que lhe conhece o passado, o presente e o futuro. No livro de Gêne sis só Deus se enquadra nessa descrição.
Mas será que Deus realmente age dessa maneira? Será que o Senhor insiste numa forma tão determinada de obediência? Será que Deus empre ga coerção física para alcançar objetivos espirituais? Será que a eleição che ga a esse ponto? Essas perguntas teológicas pertinentes têm recebido res posta negativa da parte de muitos estudiosos que acreditam na infiltração de elementos míticos ou lendários neste trecho de Gênesis. Acreditam no objetivo teológico do texto de explicar que a escolha de Israel remonta às experiências de Jacó em épocas e lugares no passado distante. De maneira que, no entendimento deles, a eleição é a ênfase principal do texto, embo ra os detalhes não sejam totalmente exatos.49
Deus certamente opera de modo bem parecido em outros textos canó nicos. Por exemplo, Jeremias acredita que seu ministério ocorre sob uma
47Aqui o verbo não se acha no grau intensivo. 48Genesis, vol. 2, p. 409.
compulsão que ele assemelha ao estupro (Jr 20.7-12). O trabalho de Eze quiel pode ter incluído um período de mudez provocada por Deus (Ez 3.26), e as provações de Jó incluíram sofrimento físico (Jó 1 e 2). No NT, a entrada de Paulo na igreja e no ministério começa com cegueira provocada por uma luz brilhante enviada por Deus (AT 9.1-19). Claro está que, canonicamente falando, as experiências de Jacó são, sem dúvida alguma, incomuns, mas não totalmente ímpares. Às vezes eleição e serviço trazem consigo pressões não apenas emocionais e espirituais, mas também físicas. Deus, ao chamar, preparar e disciplinar os escolhidos, não está limitado a algum aspecto isolado da existência humana.
Por trás da singularidade deste relato acham-se duas questões teológi cas vitais que caracterizam a totalidade da experiência de Jacó com o Se nhor. Primeiro, Deus luta com Jacó porque Jacó é uma peça chave no cumprimento das promessas a Abraão, e por sua vez são a resposta do Senhor para o problema do pecado da raça humana. Por essa razão a elei ção de Jacó é a etapa mais recente no processo redentor. Segundo, Deus luta com Jacó e modifica-lhe o nome para assegurá-lo da “vitória”. Ele voltará para casa e será abençoado. Esaú não o matará. Cumprir-se-ão to das as promessas divinas feitas em Gênesis 28.10-22, e foi respondida a oração em que Jacó pediu ajuda em Gênesis 32.9-12. A cena tem, portan to, o impacto teológico de demonstrar a misericórdia divina para com Jacó e também para com a raça humana, visto que as promessas de Gênesis
12.1-9 tornam-se realidade.
Deus de fato protege Jacó de seu irmão (33.1-17) e também guarda o clã dos que os maltratam e mesmo da vingança perpetrada por eles própri os (34.1-31). Em resposta a isso Jacó erige um altar perto de Siquém (33.20), mas será seu desejo dedicar-se ao Senhor, nutrindo-lhe devoção especial conforme ele próprio prometera em Gênesis 28.21,22? A resposta aparece em Gênesis 35.1-5. Aqui Jacó recebe mais uma ordem divina para viajar, desta feita para Betei, o local da visão de Gênesis 28. Ali a família instalar-se-á e construirá um altar ao Deus que fala e protege (35.1).
Jacó percebe a importância da ordem, pois determina à família que se livre de todos os ídolos e purifique-se para a adoração (35.2). Jacó planeja cumprir o voto feito anteriormente (35.3), de sorte que a família entrega- lhe brincos e ídolos (35.4). Conforme observado por Derek Kidner,
qualquer impressão de que o culto patriarcal era livre e fácil é descar tada por estas exigências, que já apresentam os componentes estrutu rais da lei do Sinai em seu apelo para uma lealdade única, para a pureza cerimonial e para a renúncia da magia (“as argolas [...] das
orelhas” eram evidentemente objetos para encantamento; v. talvez Os 2.13).50
O fato de Jacó enterrar os ídolos ilustra a ausência de valor e vitalidade nessas imagens. Tais ídolos foram inicialmente roubados por Raquel em circunstâncias um tanto cômicas (v. Gn 31.22-35), somente para ser en terrados como meros objetos, o que são. Moisés certamente não tem qual quer respeito por essas imagens e, assim, remove-lhes qualquer idéia de dignidade ou valor.51 E impossível tratar o Deus que cria, chama, escolhe e protege da maneira como essas imagens foram tratadas.
Uma vez mais Deus se encontra com Jacó em Belém para reafirmar as promessas feitas a Abraão, Isaque e também a Jacó. Primeiro, Deus repete a mudança de nome inicialmente mencionada em Gênesis 32.28 como meio de lembrar Jacó da eleição e proteção divinas que ele possui (35.9,10). Segundo, Deus repete a promessa de uma nação (35.11). Terceiro, Deus torna a enfatizar a dádiva de terra (35.12). Finalmente os compromissos de Jacó tornaram-se mais importantes. Ele parou de negociar. Em vez disso, reconhece a fidelidade divina como incentivo para sua fidelidade. Este que luta para tornar-se alguém de fé, finalmente escolheu servir ao único Deus que não se pode roubar, sobre o qual não se pode sentar e que não se pode enterrar, o Deus de seus pais.
Síntese canônica: Jacó e eleição
Fora de Gênesis, três textos ressaltam a importância de Jacó no cânon. Oséias 12.1-6 descreve os principais acontecimentos da vida do patriarca como meio de implorar a israelitas do oitavo século a.C. a que se desvias sem do pecado, como seus ancestrais haviam feito. Durante a vida Jacó agarrou o calcanhar de Esaú e lutou com Deus, assim mesmo ele venceu e consagrou-se em Betei (Os 12.3,4). De igual modo Israel deve voltar-se para o Senhor com humildade, amor, justiça e paciência (Os 12.6). A interpretação apresentada por Oséias da vida de Jacó ressalta a peregrinação do patriarca rumo à fé no Deus único, peregrinação necessária aos contem porâneos de Oséias.
Conforme mencionado anteriormente, Malaquias 1.2,3 e Romanos 9.10-18 destacam o amor do Senhor por Jacó e a liberdade na eleição, respectivamente. No texto de Malaquias, o Senhor reafirma ao público do
50Gênesis: introdução e comentário, p. 162.
51Yehezkel Kaufmann, The religion o f Israel, from its beginnings to the Babylonian Exile, p. 145.
século quinto a.C. que a situação difícil pela qual passavam de modo al gum prova o desfavor divino. Pelo contrário, o amor demonstrado para com Jacó em Gênesis 25.23 continua sem diminuir, embora tenha sido ocultado devido à pecaminosidade e espírito queixoso do povo. Paulo ado ta um raciocínio semelhante em Romanos. Ou seja, ele enfatiza a compai xão divina na escolha de Jacó (Rm 9.15) e então declara que o amor medi ante o qual o Senhor elege, ocorre “para tornar conhecidas as riquezas da sua glória” (Rm 9.23). Finalmente, ele declara que a falta de fé por parte de Israel, não a falta de amor divino, causou a ruptura entre os dois. Israel reagiu buscando a justiça “como se fosse por obras” em vez de crer que somente pela fé pode existir o relacionamento com Deus (Rm 9.30-33).
Em cada um dos três textos usa-se a eleição para estimular as pessoas ao arrependimento e relacionamento com Deus; contudo, em cada texto os autores contam pesarosos como os descendentes de Jacó deixaram de per ceber o que o patriarca aprendeu mediante muitas experiências duras: o Deus único deseja devoção, fé e obediência exclusivas. Bênçãos e proteção procedem da graça e bondade divinas, não como recompensa por boas obras nem como direito tribal.