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Deus único que elege e protege: Gênesis 28.1—36

Pouquíssimos textos do AT ressaltam os conceitos bíblicos de eleição e graça mais do que os relatos que envolvem Jacó. Conforme já assinalado, Deus diz que Jacó dominará sobre Esaú, quando os gêmeos ainda se em­ purram no ventre da mãe (25.23). A predição divina cumpre-se parcial­ mente quando Jacó ganha o direito de primogenitura, desconsiderado por Esaú (25.34) e rouba a bênção que Esaú deseja desesperadamente (27.1- 40). Devido ao rancor de Esaú por Jacó, seus pais enviam o “abençoado” para morar com seu tio Labao (27.42—28.2; v. o papel de Labão em Gn 24). No entanto, antes de Jacó partir, o pai declara com todas as letras que ele deve levar adiante a fé abraâmica e receber a bênção (28.3,4). E certo que, até este momento, Jacó não demonstrou um caráter piedoso. Em vez disso Deus escolhe antes que essas ações pudessem acontecer, algo para o qual Paulo chama a atenção em Romanos 9.10-18. Deus abençoa Jacó mais do que a Esaú por amor a Jacó, uma idéia ressaltada em Mala­ quias 1.2,3. A graça divina seleciona este homem terrivelmente imperfei­ to, não por causa de mérito algum de sua parte.43 O amor determina a decisão, e esse amor é tão grande por Jacó quanto é por Abraão e Isaque, pois as promessas divinas feitas anteriormente permanecem de pé.

O que não se diz a essa altura de Gênesis é se a escolha divina de Jacó inibe a fé e a obediência por parte do escolhido. Lenta, perceptível, até mesmo inexoravelmente, o Senhor torna o eleito uma pessoa de fé, mas a empreitada não é nem rápida nem fácil.44 Deus começa a obra da mesma maneira como fez com Abraão e Isaque — mediante revelação e promessa (28.10-22). Cada promessa feita a Abraão e Isaque é oferecida a Jacó: terra (28.13), descendentes (28.14), ser bênção para todos os povos da terra (28.14) e a presença divina ininterrupta (28.15). Jacó aprende, sem ter dúvida alguma, o significado de possuir o direito de primogenitura e a bênção da família de Abraão.45 Ele parece impressionado por ter recebido tais promessas, mas esboça uma reação ambígua, insignificante quando

43V. Rm 9.10-18.

44Observe-se a excelente abordagem que Victor Paul Hamilton faz do crescimento da fé de lacó em Handbook on the Pentateuch, p. 117-28.

45Von Rad, O ld Testament theology, vol. 1, p. 172 (publicada em português com o título Teologia do Antigo Testamento).

comparada com a maneira de seu avô e seu pai reagir aos encontros iniciais com Deus. Como se estivesse negociando com Esaú ou o líder de alguma tribo, Jacó promete fazer do Senhor seu Deus só se ele puder voltar em segurança para casa em algum momento no futuro. O amor divino por Jacó não está condicionado a obras, mas Jacó parece decidido a não ofere­ cer seu amor por tão pouco.

As circunstâncias na vida de Jacó acentuam as conseqüências de querer bênçãos sem oferecer uma fé obediente e sem ressalvas. Ao mesmo tempo revelam que os propósitos e as promessas de Deus acontecerão, não impor­ tando quão difícil seja seu cumprimento. Por exemplo, em algum mo­ mento no futuro Jacó tem doze filhos e uma filha. Os doze filhos tornam- se o começo das doze tribos de Israel e, dessa forma, o elemento catalisador para Deus cumprir as promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó de que uma grande nação descenderia deles.

Contudo, para ter esses filhos, Jacó tem de se casar com duas mulheres, uma que ele ama e uma que ele não ama (29.15-30), por ter sido engana­ do pelas mulheres e pelo pai delas, Labão (29.1-14). Ele sofre com a divi­ são dentro de casa provocada pelas mulheres, que competiam entre si pela atenção de Jacó (v. Gn 30.8), e labuta sob os olhos atentos de seu sogro, Labão, preocupado em tirar vantagem (30.25-43). Finalmente Jacó fica rico, da mesma maneira como acontecera com o pai e o avô, mas só depois de duas décadas de trabalho árduo para Labão, cujos filhos entendem que a prosperidade de Jacó é prejudicial à família deles (30.1,2). No sogro Jacó vê alguém tão desejoso de enganar, tão desejoso de atingir os próprios objetivos, tão desejoso de fazer negócios quanto ele próprio. G. J. We- nham assim sumaria esses episódios:

Apesar disso, por meio dessas experiências os propósitos divinos avan­ çaram. Jacó recebera a promessa de que teria uma multidão de descen­ dentes, e foi por intermédio da desamada Lia e da serva desta, Zilpa, que oito das doze tribos tiveram origem. Desse modo, mesmo a trapa­ ça de Labão e Jacó podem ser suplantadas de modo a fazer o plano divino se cumprir (v. Os 12.2). Pecados humanos podem ter adiado a volta de Jacó para sua terra natal, mas os demais aspectos das promes­ sas feitas tiveram seqüência durante sua infeliz peregrinação pela Meso- potâmia.46

Até este momento da história, Deus manteve cada promessa relevante feita a Abraão, Isaque e Jacó. Assim mesmo Jacó permanece alguém não

muito fiel. Entretanto, quando o Senhor promete estar com Jacó caso este retorne (31.3), mesmo esse problema tem solução. Jacó receia voltar por causa do rancor de Esaú, de modo que divide a família em grupos e envia presentes a Esaú (32.1-21). Ao mesmo tempo ora fervorosamente para que Deus, que prometera estar com ele, proteja-o do irmão (32.9-12).

Para compensar os temores de Jacó, o Senhor toma medidas extraordi­ nárias para assegurar, eleger, o caráter da fé de Jacó. Tarde da noite, perto do rio Jaboque, Jacó é atacado por alguém cuja identidade é revelada pou­ co a pouco no relato. Primeiro, quem luta com Jacó é chamado “homem” (32.24), mas não é um homem qualquer, pois ele apenas “toca”47 a coxa de Jacó, e isso é o suficiente para deixá-lo manco para o resto da vida (32.25,31,32). Segundo, o atacante pede ao tenaz Jacó que o solte, assina­ lando que o novo dia está rompendo. Este atacante é um espírito fluvial que tem medo da luz, uma idéia proposta por Westermann,48 ou é apenas alguém pronto a conduzir o encontro ao ápice? A situação fica clara quan­ do o atacante muda o nome de Jacó para Israel, ou de “alguém que agarra o calcanhar” ou “suplantador” para “ele luta com Deus”, e assegura-lhe que ele “venceu”. Ao abençoar Jacó e mudar-lhe o nome, o atacante revela- se superior ao homem que acabou de ficar manco e receber um novo nome. Encerrado o episódio, o texto diz que Jacó acredita ter sorte de estar vivo, pois acha que viu a Deus e sobreviveu (32.30). Jacó não é da opinião de que teve um encontro com um espírito fluvial. Ele encontrou-se com al­ guém que lhe conhece o passado, o presente e o futuro. No livro de Gêne­ sis só Deus se enquadra nessa descrição.

Mas será que Deus realmente age dessa maneira? Será que o Senhor insiste numa forma tão determinada de obediência? Será que Deus empre­ ga coerção física para alcançar objetivos espirituais? Será que a eleição che­ ga a esse ponto? Essas perguntas teológicas pertinentes têm recebido res­ posta negativa da parte de muitos estudiosos que acreditam na infiltração de elementos míticos ou lendários neste trecho de Gênesis. Acreditam no objetivo teológico do texto de explicar que a escolha de Israel remonta às experiências de Jacó em épocas e lugares no passado distante. De maneira que, no entendimento deles, a eleição é a ênfase principal do texto, embo­ ra os detalhes não sejam totalmente exatos.49

Deus certamente opera de modo bem parecido em outros textos canó­ nicos. Por exemplo, Jeremias acredita que seu ministério ocorre sob uma

47Aqui o verbo não se acha no grau intensivo. 48Genesis, vol. 2, p. 409.

compulsão que ele assemelha ao estupro (Jr 20.7-12). O trabalho de Eze­ quiel pode ter incluído um período de mudez provocada por Deus (Ez 3.26), e as provações de Jó incluíram sofrimento físico (Jó 1 e 2). No NT, a entrada de Paulo na igreja e no ministério começa com cegueira provocada por uma luz brilhante enviada por Deus (AT 9.1-19). Claro está que, canonicamente falando, as experiências de Jacó são, sem dúvida alguma, incomuns, mas não totalmente ímpares. Às vezes eleição e serviço trazem consigo pressões não apenas emocionais e espirituais, mas também físicas. Deus, ao chamar, preparar e disciplinar os escolhidos, não está limitado a algum aspecto isolado da existência humana.

Por trás da singularidade deste relato acham-se duas questões teológi­ cas vitais que caracterizam a totalidade da experiência de Jacó com o Se­ nhor. Primeiro, Deus luta com Jacó porque Jacó é uma peça chave no cumprimento das promessas a Abraão, e por sua vez são a resposta do Senhor para o problema do pecado da raça humana. Por essa razão a elei­ ção de Jacó é a etapa mais recente no processo redentor. Segundo, Deus luta com Jacó e modifica-lhe o nome para assegurá-lo da “vitória”. Ele voltará para casa e será abençoado. Esaú não o matará. Cumprir-se-ão to­ das as promessas divinas feitas em Gênesis 28.10-22, e foi respondida a oração em que Jacó pediu ajuda em Gênesis 32.9-12. A cena tem, portan­ to, o impacto teológico de demonstrar a misericórdia divina para com Jacó e também para com a raça humana, visto que as promessas de Gênesis

12.1-9 tornam-se realidade.

Deus de fato protege Jacó de seu irmão (33.1-17) e também guarda o clã dos que os maltratam e mesmo da vingança perpetrada por eles própri­ os (34.1-31). Em resposta a isso Jacó erige um altar perto de Siquém (33.20), mas será seu desejo dedicar-se ao Senhor, nutrindo-lhe devoção especial conforme ele próprio prometera em Gênesis 28.21,22? A resposta aparece em Gênesis 35.1-5. Aqui Jacó recebe mais uma ordem divina para viajar, desta feita para Betei, o local da visão de Gênesis 28. Ali a família instalar-se-á e construirá um altar ao Deus que fala e protege (35.1).

Jacó percebe a importância da ordem, pois determina à família que se livre de todos os ídolos e purifique-se para a adoração (35.2). Jacó planeja cumprir o voto feito anteriormente (35.3), de sorte que a família entrega- lhe brincos e ídolos (35.4). Conforme observado por Derek Kidner,

qualquer impressão de que o culto patriarcal era livre e fácil é descar­ tada por estas exigências, que já apresentam os componentes estrutu­ rais da lei do Sinai em seu apelo para uma lealdade única, para a pureza cerimonial e para a renúncia da magia (“as argolas [...] das

orelhas” eram evidentemente objetos para encantamento; v. talvez Os 2.13).50

O fato de Jacó enterrar os ídolos ilustra a ausência de valor e vitalidade nessas imagens. Tais ídolos foram inicialmente roubados por Raquel em circunstâncias um tanto cômicas (v. Gn 31.22-35), somente para ser en­ terrados como meros objetos, o que são. Moisés certamente não tem qual­ quer respeito por essas imagens e, assim, remove-lhes qualquer idéia de dignidade ou valor.51 E impossível tratar o Deus que cria, chama, escolhe e protege da maneira como essas imagens foram tratadas.

Uma vez mais Deus se encontra com Jacó em Belém para reafirmar as promessas feitas a Abraão, Isaque e também a Jacó. Primeiro, Deus repete a mudança de nome inicialmente mencionada em Gênesis 32.28 como meio de lembrar Jacó da eleição e proteção divinas que ele possui (35.9,10). Segundo, Deus repete a promessa de uma nação (35.11). Terceiro, Deus torna a enfatizar a dádiva de terra (35.12). Finalmente os compromissos de Jacó tornaram-se mais importantes. Ele parou de negociar. Em vez disso, reconhece a fidelidade divina como incentivo para sua fidelidade. Este que luta para tornar-se alguém de fé, finalmente escolheu servir ao único Deus que não se pode roubar, sobre o qual não se pode sentar e que não se pode enterrar, o Deus de seus pais.

Síntese canônica: Jacó e eleição

Fora de Gênesis, três textos ressaltam a importância de Jacó no cânon. Oséias 12.1-6 descreve os principais acontecimentos da vida do patriarca como meio de implorar a israelitas do oitavo século a.C. a que se desvias­ sem do pecado, como seus ancestrais haviam feito. Durante a vida Jacó agarrou o calcanhar de Esaú e lutou com Deus, assim mesmo ele venceu e consagrou-se em Betei (Os 12.3,4). De igual modo Israel deve voltar-se para o Senhor com humildade, amor, justiça e paciência (Os 12.6). A interpretação apresentada por Oséias da vida de Jacó ressalta a peregrinação do patriarca rumo à fé no Deus único, peregrinação necessária aos contem­ porâneos de Oséias.

Conforme mencionado anteriormente, Malaquias 1.2,3 e Romanos 9.10-18 destacam o amor do Senhor por Jacó e a liberdade na eleição, respectivamente. No texto de Malaquias, o Senhor reafirma ao público do

50Gênesis: introdução e comentário, p. 162.

51Yehezkel Kaufmann, The religion o f Israel, from its beginnings to the Babylonian Exile, p. 145.

século quinto a.C. que a situação difícil pela qual passavam de modo al­ gum prova o desfavor divino. Pelo contrário, o amor demonstrado para com Jacó em Gênesis 25.23 continua sem diminuir, embora tenha sido ocultado devido à pecaminosidade e espírito queixoso do povo. Paulo ado­ ta um raciocínio semelhante em Romanos. Ou seja, ele enfatiza a compai­ xão divina na escolha de Jacó (Rm 9.15) e então declara que o amor medi­ ante o qual o Senhor elege, ocorre “para tornar conhecidas as riquezas da sua glória” (Rm 9.23). Finalmente, ele declara que a falta de fé por parte de Israel, não a falta de amor divino, causou a ruptura entre os dois. Israel reagiu buscando a justiça “como se fosse por obras” em vez de crer que somente pela fé pode existir o relacionamento com Deus (Rm 9.30-33).

Em cada um dos três textos usa-se a eleição para estimular as pessoas ao arrependimento e relacionamento com Deus; contudo, em cada texto os autores contam pesarosos como os descendentes de Jacó deixaram de per­ ceber o que o patriarca aprendeu mediante muitas experiências duras: o Deus único deseja devoção, fé e obediência exclusivas. Bênçãos e proteção procedem da graça e bondade divinas, não como recompensa por boas obras nem como direito tribal.