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Deus perdoador e os sacrifícios: Levítico 1—

Levítico

Deus perdoador e os sacrifícios: Levítico 1—

Pouquíssimos trechos das Escrituras confundem os leitores modernos mais do que este. Não familiarizados com tais rituais, tudo o que algumas pes­ soas colhem desses capítulos é uma repulsa quanto a animais mortos e a noção de que Yahweh exigia tais atividades. O que, no entanto, deve-se lembrar é que esses sacrifícios não soavam tão estranhos para o público original. Pelo contrário, pareciam lógicos, organizados e até mesmo sim­ ples em comparação com algumas das complicadas religiões existentes nos tempos antigos.9 Também é importante lembrar que Êxodo 32—34 obvi­ amente indica que seres humanos pecam e que um Deus justo e santo não pode tolerar pecado. Desse modo, parece lógico para a narrativa revelar como o pecado pode ser perdoado. No âmago do sistema sacrificial encon­ tram-se princípios familiares, como a santidade de Deus, a depravação

8Levítico 116, p. 43.

9Cf. Yehezkel Kaufmann, The religion o f Israel:from its beginning to the Babylonian exile, p. 53-8; e Wright, The Old Testament against its environment, p. 78-93.

humana, o altíssimo preço do pecado, a natureza pessoal do pecado e a disposição divina de perdoar. Embora a maneira de apresentar essas verda­ des bíblicas comuns seja diferente hoje em dia, os leitores ainda podem reconhecer a importância do que o texto diz.

Pode-se dividir Levítico 1—7 em três partes distintas. Levítico 1—3 trata de ofertas queimadas, Levítico 4 e 5 descreve ofertas pela culpa, e Levítico 6 e 7 analisa como os sacerdotes devem receber e oficiar esses sacrifícios. Cada tipo de oferta tem um propósito específico, mas, confor­ me observa Milgrom, “o denominador comum é que surgem como respos­ ta a uma imprevisível necessidade religiosa ou emocional e, desse modo, são colocadas à parte dos sacrifícios feitos por ocasiões de festas e jejuns públicos fixados no calendário (cap. 9, 16, 23; v. Nm 28 e 29)”.10 Tam­ bém têm em comum a seriedade do pecado e a alegria do perdão da culpa resultante do pecado. Cada oferta é de natureza substituinte e é também instrutiva para o ofertante.

Milgrom observa que a antigüidade do holocausto no mundo antigo indica que originalmente a oferta pode ter sido feita por motivos variados. Neste contexto, no entanto, a intenção é expiar o pecado.11 Mas expiar que tipo de pecado? O texto não diz. Pelo que parece, apresentar esse sacrifício é mais ou menos uma confissão geral de pecado, algo não muito diferente do “perdoa as nossas dívidas” da oração dominical (v. M t 6.9-

13). O holocausto expressa a dependência total e aceitação da graça de Deus pelo pecador. Ronald E. Clements assim o sumaria: “O que ele ofe­ receu foi para Deus somente, e, assim, ao oferecê-lo, ele reconhece tanto a soberania total de Deus sobre todas as criaturas vivas quanto a exigência divina de obediência total em sua vida”.12 O resultado era propiciação para todos os que fielmente obedeciam.

O papel do sacerdote no ritual é o de ajudar o adorador, não o de um corretor do poder divino nem o de um mágico indispensável. De fato o sacerdote transmite ao adorador o ensinamento divino por meio de Moi­ sés.13 Dessa maneira o sacerdote “media” a presença de Deus.14 Ele conduz o povo a encontrar-se com Yahweh na maneira prescrita pelo Senhor, o que traz consigo o benefício duplo de evitar a justa ira divina e assegurar perdão.

Duas ofertas semelhantes são descritas em Levítico 2 e 3 e novamente em 6.14-23 e 7.11-36. À semelhança do holocausto, as ofertas de cereal e

10L evítico 1— 16, p. 134.

u Ibid., p. 174-6. 12Leviticus, p. 11.

13Milgrom, L evítico 1— 16, p. 52-3.

de comunhão são voluntariamente trazidas por suplicantes que desejam agradar a Deus (2.2; 3.5). A principal diferença entre esses sacrifícios e o holocausto é que os sacerdotes podem comer parte do cereal (2.3) e parte da oferta de comunhão (7.28-36). Esses sacrifícios acentuam a natureza comunal da adoração de Israel. Sacerdotes e suplicantes desfrutam juntos as bênçãos do perdão, e, visto que os sacerdotes representam o Senhor, por extensão o povo desfruta comunhão com Deus. Elmer A. Martens explica esse princípio ao afirmar que

o sacrifício isra e lita n ão é u m a q u estão de servir a D eus o u o b ter b en e­ fícios. U m e n te n d im en to m ais b íb lico de sacrifício [...] é q u e m ed ian te sacrifício estab elece-se co m u n h ão co m a d iv in d ad e . O h olo cau sto sim ­ b o liz av a ação de graças e e ra receb id o p o r D eu s co m o u m a d o ce ex­ pressão de ação de graças. A refeição sacrificial, ju n to co m a p a rtic ip a ­ ção d o o fe rta n te no sa c rifíc io [...] tin h a e s p e c ia lm e n te o se n tid o de c o m u n h ão e c o m p an h e irism o co m a d iv in d a d e .15

Tal comunhão conduz a relacionamentos significativos e pacíficos com Deus.16

Nem todos os pecados são desconhecidos ao pecador, e nem todos os sacrifícios são oferecidos por conseqüência de uma obediência jubilosa a Deus e de uma preocupação com o bem-estar dos sacerdotes. Pelo contrá­ rio, alguns pecados são específica e obviamente contrários aos “manda­ mentos do Senhor” (4.2). Com freqüência esse tipo de transgressão de­ frauda a Deus e ao próximo. Por isso os próximos dois tipos de ofertas fazem propiciação por esse comportamento incorreto. Conquanto os pro­ cedimentos gerais adotados na apresentação de holocaustos apliquem-se a ofertas pelo pecado e pela culpa, o propósito destes sacrifícios difere dos recém-mencionados no cânon.

Ofertas pelos pecados devem ser trazidas por indivíduos (4.1,2), sacer­ dotes (4.3-12), toda a comunidade (4.13-21) e líderes (4.22-26). Qual­ quer um desses tem o potencial de quebrar os mandamentos de Yahweh e incorrer em culpa (4.2,13,22). Assim que tem consciência dessa culpa, cada pessoa ou grupo traz, dependendo de sua condição financeira, o ani­ mal ou comida necessários, o que Deus aceita como propiciação que resul­ ta em perdão (4.20,26,31,35; 5.6,10,13). Assim como nenhum segmen­ to da comunidade israelita pode pecar sem impunidade, de igual maneira nenhum segmento está fora do domínio da graça. A quebra da aliança

15GWí design-, a focus on Old Testament theology, p. 56. 16Wenham, L eviticus, p. 77.

pode ser perdoada quando os israelitas acreditam nos padrões revelados, obedecem a esse padrão ao trazer o que Deus exige e agem humildemente como Yahweh deseja.

Ofertas pela culpa também fazem propiciação por pecado consciente contra padrões revelados por Deus. A diferença é que eles tratam de peca­ dos que são contra Deus e o próximo e que exigem restituição (5.16; 6.5). O perdão não é sem preço em quaisquer desses cinco sacrifícios, mas a oferta pela culpa implica o mais custoso de todos. Aqui a propiciação ocor­ re por meio da oferta apropriada e do pagamento à parte ofendida, o que indica que o processo de confissão deve ter alcance tão amplo quanto o próprio pecado cometido. O perdão pode ser essencialmente uma questão entre Deus e o suplicante, mas o meio de alcançar o favor divino não é um assunto exclusivamente pessoal. O fato de que o sacerdote pode comer parte desse sacrifício também salienta a natureza comunal e o alcance in­ clusivo dessa oferta.

Síntese canônica: pecado e sacrifício

Esses sete capítulos dão as dicas para entender a natureza do pecado, sacri­ fício e perdão. Primeiro, define-se pecado como fazer o que os mandamen­ tos divinos proíbem (v. 4.2,13,22,27). Israel não está em condições de decidir o que constitui pecado pois seu passado recente indica sua incapa­ cidade de fazer o que é certo. Somente o Deus santo e misericordioso tem caráter para estabelecer padrões adequados. Pecado é algo pessoal e tem um preço elevado. Se não se der atenção ao pecado, o custo só pode subir. O pecado também afeta seres humanos de todas as classes. Os ricos, os pobres, os sacerdotes, os leigos — todos transgridem. O pecado possui uma natureza demoniacamente democrática.

Segundo, os sacrifícios que Deus escolhe são aceitos em lugar do pecado e realmente proporcionam propiciação pelo pecado, o que por sua vez signi­ fica que alguém oferecendo o sacrifício é perdoado (v. Lv 4.26,31,35). Ofer­ tas trazidas voluntariamente, com verdadeira humildade, removem qual­ quer insinuação de ira divina, pois tais sacrifícios agradam ao Senhor (v. Lv 1.9,13; 2.2; 3.5). Quando Deus é satisfeito e o pecado de Israel é perdo­ ado, não há qualquer possibilidade de a situação precária descrita em Êxodo 32—34 se repetir. Visto que Deus é misericordioso, compassivo, vagaroso em irar-se e desejoso de perdoar (Êx 34.6,7), o Senhor dá a Israel uma imensa oportunidade de admitir o pecado e prestar contas. Somente a deso­ bediência obstinada dessas generosas provisões desperta a ira de Yahweh.

Terceiro, o perdão requer fé e obediência da parte do homem e genero­ sidade da parte de Deus. Para ser perdoados, os homens têm apenas de

crer na palavra de Deus e obedecer aos mandamentos de Deus. As pessoas precisam apenas aceitar o fato de que Deus aceita suas ofertas em substi­ tuição ao pecado. Para haver perdão, o Senhor tem apenas de cumprir sua palavra, e até este momento o cânon não deixa transparecer qualquer idéia de que Yahweh tenha alguma dificuldade de fazê-lo. De fato, a palavra de Deus vem sendo poderosa e precisa desde Gênesis 1.

Referências canônicas a esses três conceitos confirmam essas conclu­ sões. Não se pode questionar seriamente o fato de que a totalidade das Escrituras descreve o pecado como fazer o que Deus proibiu. É quebrar os mandamentos da aliança. Ao longo dos dois Testamentos, o pecado rouba do ser humano um tempo precioso na presença de Deus e de comunhão uns com os outros. O pecado custa caro aos pecadores.

Passagens nos Profetas, nos Escritos e no NT indicam a importância de sacrifícios corretos e trazidos com a devida humildade para a efetivação do perdão. O autor de 1 e 2Reis, por exemplo, faz um sumário da queda de Israel, assinalando que o povo rompeu a aliança com Deus ao adorar em locais não autorizados e de maneiras não autorizadas, o que por sua vez conduziu à idolatria e até mesmo a sacrifícios humanos (2Rs 17.7-23). A queixa de Isaías 1.10-17, Jeremias 7.21-26 e Malaquias 1.6-9 não é que o povo não traz ofertas. Em vez disso eles assinalam que o povo não é sincero em seu arrependimento, pois o comportamento deles nunca muda. Sacri­ fícios feitos sem fé, arrependimento e humildade não são sacrifícios feitos com obediência. O perdão não é resultado de um animal ser abatido por costume. Propiciação não é um ritual mágico. É um meio pelo qual per- mite-se a Israel desfrutar um relacionamento com o Senhor.17 Gerhard von Rad afirma que “no culto sacrificial também ele [Yahweh] determina­ ra um instrumento que abria para eles [Israel] um relacionamento contí­ nuo com ele. Aqui Yahweh estava ao alcance da gratidão de Israel, aqui Israel alcançava comunhão com ele na refeição sagrada. Acima de tudo, aqui era possível alcançar Israel por meio da vontade divina de perdoar.18 Salmos 51.16-19 concorda que confissão e um coração contrito devem preceder o sacrifício para este ser eficaz, um sentimento que Salmos 40.6- 8 descreve como um desejo de fazer a vontade de Deus. Esse desejo ressal­ ta a integridade humana, necessária em ritos sacrificiais a fim de estar à altura da integridade divina intrínseca no oferecimento de perdão.

17Thomas Wingate Mann, The book o ft h e Torah: the narrative integrity of the Penta- teuch, p. 117-9.

n O ld Testament theology, vol. 1, p. 260 (publicada em português com o título Teologia do Antigo Testamento).

Isaías 52.13—53.12, que Bernhard Duhm intitula “o último dos Cân­ ticos do servo”,19 fornece um importante vínculo entre o sistema sacrificial do AT e a convicção neotestamentária de que a morte de Jesus Cristo faz propiciação pelo pecado. Como é bem sabido, Isaías 53 descreve o sofrimen­ to de alguém chamado o Servo, cuja morte ocorre a favor de outros. De fato Isaías 53.10 chama o sofredor de “uma oferta pela culpa”, empregando uma palavra comum em Levítico 5—7. Diether Kellerman assinala:

Este cân tico não apenas co m p ara o servo a u m co rd eiro levado p ara o m atad o u ro (5 3 .7 ), m as tam b ém d iz q u e ele faz d a su a a lm a u m ’asham ,

“o ferta pelo p ecad o ”. O so frim en to vicário do ju sto é a o ferta p ela c u lp a de m u ito s. C o m o o ferta p ela cu lp a, a m o rte do Servo re su lta em p ro p i­ ciação , o ato de salvar p ecad o res d a m o rte .20

Nenhum outro lugar o AT afirma que um ser humano pode servir de oferta pela culpa, o que leva outros estudiosos a considerar “imprudente” forçar este significado no texto.21

O NT não é tão cauteloso, como também não o são muitos comen­ taristas. Gordon Wenham escreve que o NT não menciona ofertas pela culpa, mas observa que “várias vezes cita-se Isaías 53, e suas idéias per­ meiam muitas passagens que descrevem os sofrimentos de Cristo (v. 1: Jo 1 2 .3 8 ; Rm 1 0 .1 6 ; v. 4: M t 8 .1 7 ; v. 5 ,6 : IPe 2 .2 2 ; v. 12: Lc 22.3 7)”.22 Hebreus 9.11-15 “simplesmente” apresenta Jesus como o substituto de todos os sacrifícios e pecados, idéia im plícita em Isaías 53.10. Pouquíssimos estudiosos negariam que os escritores do NT vi­ ram uma conexão entre os sacrifícios de Levítico 1—7, o Servo/ oferta pela culpa de Isaías 53 e a morte de Jesus Cristo. A idéia de Isaías 53.10,11 de que o Servo divide despojos depois de dar sua vida como sacrifício só aumenta a convicção neotestamentária de que essa passa­ gem fala da morte expiatória a ressurreição vitoriosa de Cristo. Charles Augustus Briggs conclui que, pelo fato de o Servo agir como um sacri­ fício expiatório e então “ter de ressuscitar dos mortos” para receber a recompensa mencionada em Isaías 53.10,11, essa profecia “cumpre-se apenas na morte de Jesus Cristo e em sua ressurreição e exaltação em seu trono celeste”.23

I9V. Das Buch Jesaia, p. 7-22.

20Asham, em Theological dictionary o fth e Old Testament, vol. 1, p. 435. 21R. N. W hybray, Isaiah 4066, p. 179.

11 Leviticus, p. 111.

lòM essianic propheey. the prediction o f the fulfillm ent o f redem ption through the Messiah.

É claro que Hebreus comenta sobre o sistema sacrificial mais explicita­ mente do que qualquer outro livro do NT. Embora Hebreus apresente muitas idéias sobre sacrifícios e sobre como eles são suplantados pela me­ lhor propiciação em Jesus, Hebreus 10.1-18 possivelmente sumaria a ar­ gumentação do autor. Dito de modo simples, o fato de que a morte de Jesus foi um sacrifício final, irrepetível e suficiente torna-a superior à natu­

reza perpétua das ofertas de Levítico (Hb 10.1-4,11). Cristo resolve a ques­ tão da propiciação num único ato, enquanto o sistema antigo exige atos continuados de sacrifício. Assim, embora ofereça-se perdão mediante o sacrifício de animais, a obra de Cristo substitui o sistema do AT ao torná- lo ineficaz em comparação com a morte de Cristo. Mas, mais importante ainda, por decreto divino e pelo auto-sacrifício divino, a obra de Cristo tornou-o obsoleto (Hb 10.12-18). Depois da morte de Cristo, o velho sistema não mais se aplica ao povo da fé.