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Deus único que preserva o povo da aliança: Gênesis 37—

“Vida” é um substantivo com muitos significados para Abraão, Isaque, Jacó e suas famílias em Gênesis 12—36, mas dificilmente o adjetivo “se­ gura” descreveria a situação deles. As viagens empreendidas sozinhos puse­ ram cada um deles em perigos contantes e, dessa forma, em necessidade constante da promessa divina de proteção (12.3; 26.2,3; 31.3; 35.5). Brigas na própria família aumentaram-lhes os problemas. Entretanto, na maior parte do tempo seus inimigos eram pessoas e circunstâncias que podiam ver e avaliar. Mas nesta seção de Gênesis a família de Jacó vê-se diante de uma fome que não poupa ninguém, imprevista e insuperável, o que significa a necessidade da ajuda do Deus conhecedor do futuro, que prepara para a catástrofe e tem sob seu controle pessoas, acontecimentos e a natureza. O fato da existência desse Deus é a ênfase principal do restante de Gênesis.

Lutas na família e fome constituem o arcabouço improvável para os atos preservadores do Senhor nestes capítulos. Uma vez mais sonhos reve- latórios (v. Gn 28.10-15) são meio de orientação para a principal persona­ gem da história, e pessoas de fora do clã escolhido funcionam como aju­ dantes e obstáculos no relato. Jacó mantém seu papel de portador da ali­ ança abraâmica; contudo seu filho José que domina estes capítulos e no final salva a família da catástrofe. Esta seção final de Gênesis dá seqüência

à ênfase do texto na eleição, introduz a preocupação ininterrupta das Es­ crituras com o sofrimento injusto, inicia o tema do livramento divino de Israel e, de modo conclusivo, mostra que o Senhor cumpriu todas as pro­ messas feitas a Abraão, Isaque e Jacó.

Eleição e opressão chocam-se em Gênesis 37— 45. Jacó ama José mais do que os outros filhos porque o garoto nascera na sua velhice e porque José era filho de Raquel (37.3; 42.38). Por esse motivo ele encarrega José de supervisionar os irmãos, muitos deles mais velhos do que ele próprio, decisão que faz os irmãos ficar tão ressentidos que odeiam José (37.4). Para piorar as coisas, José conta sonhos indicativos de que os irmãos e o univer­ so se curvarão diante dele (37.5-11). Ciúme e ódio levam os dez irmãos mais velhos a vender José como escravo e fazer Jacó acreditar que o filho morrera (37.12-36). Em seguida o texto revela que Judá, um dos irmãos de mais proeminência, quem de fato sugeriu a venda de José (37.26,27), tem o costume de maltratar os outros, mesmo quando satisfaz seu apetite sexual (38).

Em contraste José evita conduta sexual errada, mas inicialmente isso não lhe rende nada. A recompensa por não dormir com a esposa de seu senhor é ir para a prisão, onde mesmo agindo com bondade ao interpretar os sonhos de outras pessoas, aparentemente não lhe resulta em bem (39 e 40). Parece que a impiedade triunfa, visto que quem o maltratara e opri­ mira, como Judá, os demais irmãos e a sedutora esposa de Potifar saem livres, enquanto o perseguido José permanece preso. Nada na história pa­ rece justo, direito ou bom, e o Deus que intervém na narrativa da queda, no relato do dilúvio e no episódio da torre de Babel não faz, a respeito desses acontecimentos indignantes, coisa alguma que o texto considere digno de nota.

Apesar das dificuldades, José professa em Deus uma fé que possui cer­ tos aspectos fundamentais. Primeiro, ele percebe a presença de Deus não importa aonde vá. Obviamente José rejeita qualquer noção de que o Se­ nhor seja divindade local ou regional, pois reconhece Deus em cada episó­ dio.52 Segundo, ele acredita que a presença de Deus “constitui a derradei­ ra aprovação de moralidade”.53 Ele rejeita o assédio da esposa de seu se­ nhor por entender que tais ações são pecado contra Deus (39.9). Terceiro, ele atribui habitualmente a Deus a habilidade de interpretar sonhos (40.8; 41.16,51-52).54 Da mesma forma que seus ancestrais, José aprende que

52Elmer A. Martens, G od’s design: a focus on Old Testament theology, p. 87. 53Skinner, Genesis, p. 458.

Deus pode estar com ele numa terra estranha, no território dominado por deuses estrangeiros; ele pode afetar as pessoas dessa terra por seu intermédio. Não existe qualquer idéia de competição ou polêmica nes­ sa ação divina mediante José, assim como não existira no caso do Deus de Abraão, Isaque e Jacó. [...] A religião do Deus de seus pais não se restringe a uma área isolada; Deus age e fala direta e imediatamente no âmbito total da realidade.55

Por fim os poderes interpretativos dados por Deus a José tiram-no da prisão e levam-no para os átrios de poder do Egito na condição de primei­ ro-ministro. Ele suporta e vence as dificuldades e lança-se a ajudar o faraó, seu benfeitor e a dirigir o Egito durante os sete anos de fome que José prediz com base nos sonhos do faraó (41). Embora José tenha saído da opressão, não se oferece qualquer motivo concreto para seu sofrimento. Nesses relatos parece que os egípcios recebem mais atenção do que os descendentes de Abraão.

Quando o texto finalmente revela a razão para o sofrimento de José, ele demonstra outras características de sua fé monoteísta. O aspecto mais pro­ eminente dessa fé madura é o perdão. Os irmãos vêm comprar cereais dele e não o reconhecem. Depois de uma série de testes que lhe permitem saber que tanto o pai quanto o irmão por parte de pai e mãe (Benjamim) estão vivos e que os irmãos lamentam tê-lo vendido (42—44), ele revela sua identidade e perdoa a culpa dos irmãos, sem castigá-los (45.1-5).56 Esse gesto tem paralelo no perdão dado por Esaú a Jacó (33.4,5), contudo vai além devido à situação mais desesperadora pela qual José passara. Ou­ tra característica explica a razão para José perdoar: ele teme a Deus (42.18). A partir desta primeira menção de “temor” reverente desenvolve-se um grande tema bíblico, o qual alcançará expressão máxima nos Escritos. A esta altura basta dizer que seu temor significa obediência ao que ele crê ser requerido dele.57 Seu relacionamento com Deus dtermina o relaciona­ mento com os seres humanos.

Finalmente, perceber que Deus o colocou numa posição de autoridade a fim de salvar sua família da extinção revela a disposição de sofrer reden- tivamente. O fato de seus problemas resultarem no livramento de outros diminui sua dor (45.5). Agora ele entende por que sofreu e, sem perda de tempo, salva o clã inteiro (45.21-24), de modo que suportar a dor é aqui

55Westermann, Genesis, vol. 3, p. 79.

56Claus Westermann, Elements o fO ld Testament theology, p. 122. 57Zimmerli, O ld Testament theology, p. 146.

o meio divino do livramento. O que os irmãos fizeram não é bom, mas como nos casos de erros, temores e pecados manifestos, Deus transforma em bem o malcometido.

Duas promessas abraâmicas chocam-se em Gênesis 46— 50. Para o clã continuar existindo e tornar-se a grande nação prometida a Abraão, Jacó, o patriarca residente, tem de conduzir a família/ nação para fora da Terra Prometida, a verdadeira pátria de Israel. Assim como Deus tinha antes garantido a Jacó que era hora de ir para sua terra (31.3), agora Deus revela a Jacó ser o tempo de deixar a terra e ir para o Egito (46.1-7). Esta viagem de modo nenhum põe em risco a Terra Prometida, pelo fato de a mudança ter sido prevista desde Gênesis 15.13. Chegou o momento da peregrina­ ção de quatrocentos anos, revelada por Deus a Abraão. Como sempre, Deus compromete-se a estar com Jacó (46.4), e o portador da fé, avançan­ do em idade, tem de agir baseado unicamente na crença nessa promessa renovada e em suas experiências anteriores com o Senhor. Para crédito seu, ele vai para o Egito, acompanhado de cada membro do clã (46.8-27). Uma vez lá, é reunido a José, que consegue para seu povo a melhor região de pastagem do Egito (46.28-34).

Bênçãos e a determinação de voltar para a Terra Prometida formam o arcabouço dos episódios restantes de Gênesis. Jacó abençoa o faraó, uma cena irônica, pois o faraó é superior a Jacó em todos os aspectos humanos à exceção da idade (47.7). Em seguida Jacó abençoa os filhos de José, Manassés e Efraim, dando ao mais jovem, Efraim, proeminência sobre o irmão (48.12-20), evento não tão improvável devido à própria experiência de Jacó. Finalmente, baseado no conhecimento do caráter de cada um dos filhos e na percepção do futuro, Jacó abençoa-os antes de morrer (49.1- 28). É certo que José é bastante elogiado pela paciência fiel (49.22-26), contudo é Judá, o líder dos irmãos, que recebe a promessa do “cetro”, “o bastão de comando” (49.10). Qualquer poder internacional que o clã ve­ nha a ter procederá da família de Judá, e, portanto, a maneira como a linhagem de Abraão abençoará todas as nações deve começar por Judá, embora as atividades de José certamente também se enquadram nesta ca­ tegoria.

Feitas as devidas promessas, Jacó e José passam a pensar na terra. Jacó promete a José que a promessa de terra concretizar-se-á, pois Deus estará com o povo e levá-los-á para lá (48.21,22). Devido a essa convicção, Jacó instrui os filhos a que o enterrem junto dos seus pais na Terra Prometida (49.29-32), algo que eles realizam no devido tempo (50.1-14). Seme­ lhantemente José diz aos irmãos para levar seus ossos do Egito quando Deus lhes der a terra (50.25,26). De modo que à fé na presença de Deus,

à obediência aos padrões divinos, à disposição de sofrer pelos outros, à capacidade de ir ao auxílio da própria família e de uma nação estrangeira e ao gracioso poder de perdoar, José acrescenta uma esperança inabalável de que o exílio terminará e o povo escolhido residirá na terra dada por Deus.58 O homem intérprete de sonhos mediante a percepção recebida de Deus também obtém do mesmo Deus um sonho sobre o futuro. Contudo, ain­ da não foi revelado como esse sonho se tornará realidade.59

Conclusão

Quando Gênesis termina, muitos temas teológicos estão firmemente fixa­ dos a um padrão, ao passo que outros permanecem fora dele, ainda não relacionados com o todo. Certamente tornou-se visível um retrato nítido de Deus. Ele é a única divindade que atua nesses relatos. Só Deus cria, de maneira que só ele julga o pecado, chama, dirige e abençoa Abraão e seus descendentes, e protege e livra em todas as circunstâncias o povo agora chamado Israel. Esse Deus comunica-se com o povo, alternadamente ema­ nando ordens, fazendo promessas e dando orientação, e ele trabalha para tirar o pecado que atribula toda a raça humana. Esse Deus não tem qual­ quer começo, rival, limites de tempo ou espaço, falha moral, ou interesses ocultos.60

Também tornou-se visível um retrato da raça humana. As pessoas são feitas à imagem de Deus, mas assim mesmo não estão satisfeitas com essa posição exaltada. Querem ser Deus no sentido de que desobedecem à pa­ lavra de Deus, desse modo tentando apoderar-se da autoridade divina. Os humanos comem a fruta do orgulho, violência e imoralidade e, por isso, aprendem a temer, odiar, cobiçar e desobedecer. Contudo também possu­ em a capacidade de ouvir as promessas divinas e de agir com fé, e, por mais vacilante e míope que ela seja, ainda assim é fé, não em imagens que se pode roubar e enterrar, mas no único Deus que cria, comunica-se e redime. A raça humana está claramente no melhor de si quando seus membros crêem em Deus e, pela fé, obedecem aos padrões comunicados.

Apresentados esses retratos, é possível assinalar o que ainda precisa acon­ tecer e que até o momento tem-se apenas vislumbrado. O Deus único ainda tem de erradicar o pecado humano. Lançaram-se as bases para essa erradicação, pois Abraão foi escolhido e em boa parte cumpriu-se a pro­

58Brueggemann, Genesis, p. 379. 59Martens, G od’s design, p. 34.

60Observe-se a descrição que Gerald Lewis Bray faz desses detalhes em The doctrin e o f

messa da nação. Mas a Terra Prometida continua nas mãos de “estrangei­ ros”, não existe qualquer lei moral específica, todas as nações ainda têm de ser abençoadas por meio da linhagem de Abraão, e Israel vive no Egito. Não há dúvida da necessidade de esclarecer alguns detalhes importantes. No entanto parece correto supor que a solução para essas questões proce­ derá dos temas gêmeos da singularidade de Deus e da fé da raça humana. O Deus Criador é a única esperança de a raça humana criada conseguir expressar plenamente seu potencial, sujeitando a terra criada.

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