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Deus que castiga e renova: Gênesis 6.5— 11

Este trecho de Gênesis oferece uma introvisão significativa do caráter interior e exterior de Deus. Ou seja, esses versículos explicam como os motivos de Deus levam às suas ações. Nisso eles também indicam o que o Senhor planeja fazer a longo e a curto prazo a respeito do pecado hu­ mano descontrolado. Até o momento os principais atributos de Deus foram criatividade, poder, misericórdia e a dedicação total a elevados padrões éticos. As preocupações divinas inclui suster as pessoas e relaci­ onar-se com elas. Agora sustento e relacionamento acontecerão de uma maneira que obrigará os seres humanos a assumir plena responsabilidade por seus atos repreensíveis.

A passagem de 6.5-8 é provavelmente a mais negativa afirmação de Gênesis sobre a raça humana em geral. Enquanto Gênesis 1.31 e 2.25

20Brevard S. Childs, B ib lica l th eo logy o f th e O ld a n d N ew Testaments: theological reflection on the Christian Bible, p. 121.

falam da bondade dos seres humanos e do fato de eles não se envergonha­ rem, esta passagem declara que o pecado está presente em cada célula do ser humano. Ao mesmo tempo, pouquíssimos textos em todas as Escritu­ ras falam mais claramente sobre os motivos para Deus agir. O fato de os motivos divinos permanecem bons quando os da raça humana tornaram- se impuros realça o quão inadequado o pecado é e o quão correto Deus é em fazer algo a respeito.

Como em textos anteriores, Deus vê o que acontece na terra. Desta vez o Senhor vê como a raça humana vai se tornando cada vez mais violenta e maldosa. O Senhor sabe das inclinações do coração humano, sinal seguro de que Deus sabe de todas as coisas. Depois de ver (6.5), Deus agora sente tristeza e dor diante do que as pessoas estão a fazer. O poder de Deus e a capacidade que ele tem de ver todas as coisas conduz à emoção apropriada, não à insensibilidade, ou pessimismo ou brutalidade. Com base no que vê e sente, o Senhor decide mudar a política de deixar a raça humana viver nessa condição. O lamento divino significa ter chegado a hora de agir e não que se cometeu um grande erro cósmico.21 O Senhor, portanto, decide castigar os perversos, mas poupar Noé, homem que age de modo diferente dos demais e, por isso mesmo, evita o castigo que lhes é destinado (6.8).

Noé torna-se o catalisador da misericórdia e juízo divinos. Deus decide castigar o pecado no mundo inteiro, eliminando os pecadores mediante o dilúvio generalizado (6.13). Noé será poupado mediante a construção de um barco e salvará a família e os animais ao conduzi-los para dentro da embarcação (6.14-22). Por meio desse processo concretizam-se os planos divinos de castigar o pecado e poupar uma minoria justa, ou remanescen­ te. A família de Noé torna-se, desse modo, o meio pelo qual o Deus mise­ ricordioso preserva a raça humana e também o símbolo visível de como o Deus justo e bom faz distinção entre fiéis e desobedientes.

As diferenças entre o relato do dilúvio em Gênesis e certas histórias babilónicas paralelas acentuam ainda mais o principal peso teológico des­ ta seção.22 Como é bem sabido, o relato babilónico do dilúvio possui elementos em comum com o relato bíblico, como a presença de um herói que constrói um barco, um dilúvio devastador, uma ave enviada para veri­ ficar as condições do terreno e um sacrifício feito quando os seres humanos saem da embarcação.23 Embora esses recursos estruturais sirvam ambas as histórias, há diferenças no motivo do dilúvio, no motivo de os homens

2lCf. Wenham, Genesis, vol. 1, p. 144.

22Cf. Davis, Genesis a n d Sem ítie tradition, p. 110-34. 23Ibid„ p. 111-3.

serem poupados, no propósito do sacrifício e no próprio número de deuses existentes. Fica claro que esta última diferença tem precedência sobre as demais, pois ela no final explica as outras variações, conforme assinalar-se-á.

Assim que o dilúvio acaba e Noé sai do barco, ele adora a Deus medi­ ante a oferta de sacrifícios (8.20). Deus responde favorável e graciosamen­ te à devoção de Noé. A despeito da pecaminosidade da raça humana, o Senhor promete nunca mais destruir pecadores como no dilúvio (8.21,22). Ademais, Deus renova os mandamentos originais estabelecidos em Gêne­ sis 1.26-31. Os seres humanos devem se multiplicar, dominar as criaturas e obter da terra o sustento (9.1-3). Esperam-se apenas duas coisas dos seres humanos: não devem comer animais junto com sangue e não devem tirar a vida humana (9.4-6).

Com base nas promessas de Deus e na palavra empenhada por Noé, essas duas partes fazem uma aliança, isto é, um contrato com obrigações para ambos, incluindo compromissos, responsabilidades e bênçãos. A pa­ lavra aliança aparecerá em vários futuros contextos chaves no cânon; é importante fazer agora algumas observações preliminares sobre o conceito. Na época de Moisés (c. 1450 a.C.) a aliança era algo já establecido na sociedade antiga, mas o que o conceito significa em Gênesis 6.17,18 e Gênesis 9.8-17?

No primeiro texto a aliança baseia-se no conhecimento prévio que Deus tem de Noé e no relacionamento com ele.24 O Senhor já reconhece a qualidade do caráter de Noé e oferece-lhe a aliança com base nesse reco­ nhecimento. Além disso, ao afirmar a qualidade do relacionamento entre Deus e Noé, a aliança separa Noé da humanidade pecaminosa daquela era. Ele se torna o único centro de atenção do trabalho divino na criação. Finalmente, a aliança inclui responsabilidades que acompanham os privi­ légios associados à proposta pactuai.25 Noé deve crer na palavra de Deus, construir a arca, reunir os animais e a própria família e, na prática, sobre­ viver ao dilúvio. Deus salva Noé ao explicar-lhe o futuro.

Depois do dilúvio a aliança é explicada, expandida e formalizada. Embora o coração deles permaneça perverso (8.21), espera-se que os se­ res humanos cuidem dos animais e parem de tratar uns aos outros com brutalidade (9.1-6). Em outras palavras, em vez de agir como Caim e Lameque, devem tratar uns aos outros da maneira como desejam ser tratados. Também devem obedecer aos mandamentos originais de Deus

24W illiam J. Dumbrell, C ovenant a n d creatiom a theology of Old Testament cove­ nants, p. 43.

(1.26-31). Em troca, o Senhor os sustentar (9.1-4) e proteger do juízo cataclísmico com água (9.11). Com essas condições e promessas devida­ mente esclarecidas, Deus estabelece o arco-íris como sinal de que os be­ nefícios da aliança são permanentes. Todo esse processo realça a auto- revelação pessoal divina, graciosa e salvadora, e prefigura praticamente todas as ocorrências subseqüentes do estabelecimento de alianças no AT.

Após o texto da aliança há dois incidentes marcantes. Primeiro, Noé faz vinho, embebeda-se e fica nu dentro da sua tenda (9.20,21). Cam vê o pai, ainda assim não faz nada, mas conta a seus irmãos Sem e Jafé sobre a situação do pai. Os irmãos cobrem Noé sem olhar para ele (9.23). Fica claro que a raça humana não vai parar de pecar, conforme Gênesis 8.21 já indicara. Segundo, ao despertar, Noé amaldiçoa Cam, o pai dos cananeus, mas abençoa Jafé e especialmente Sem (9.25-27).

A bênção de Noé é incomum porque na verdade ele abençoa o Deus de Sem em vez do próprio Sem.26 É claro que, se o Deus de Sem prosperar, então Sem também prosperará. Nessa o divino abarca o humano27 e tam­ bém deixa implícito que Deus ajudará Israel, os descendentes de Sem.28 A partir desse ponto em diante, a tarefa divina específica de eleger se dará por meio da família de Sem.29 O resultado será Deus ser de alguma ma­ neira abençoado, glorificado e exaltado por meio da linhagem específica

desse respeitoso filho de Noé. Exatamente como isso acontecerá é algo que

revelar-se-á mais tarde no texto.

A despeito de tudo o que o Senhor fez para criar, suster, corrigir e renovar a terra e a raça humana, o pecado avança. Imaginam-se novas ma­ neiras de pecar. A medida que o povo se multiplica e se espalha, eles con­ centram a população na “planície em Sinear” (11.1). Ali utilizam suas habilidades tecnológicas para construir uma cidade e uma torre com o objetivo expresso de honrar a si mesmos e furtar ao mandamento divino de encher e dominar a terra (11.24; v. 1.28; 9.7).30 Certamente o orgulho humano não é novo, mas até este ponto do texto não se havia mencionado a corrupção da tecnologia para tentá-los a agir com orgulho.

Uma vez mais Deus vai “ver” o que acontece na terra e age para se contrapor ao que as pessoas estão fazendo (11.5-9;v. 6.5). Uma vez que os

26Westermann, Genesis, vol. 1, p. 492. 27Hamilton, The book o f Genesis, p. 325. 28Brueggemann, Genesis, p. 89. 29Wenham, Genesis, vol. 1, p. 202.

30Thomas Wingate Mann, The book o f th e Torah\ the narrative integrity of the Penta- teuch, p. 26.

seres humanos empregam seu idioma comum como base do trabalho, o Senhor confunde os padrões de fala. Com o projeto assim interrompido, Deus espalha o povo, o que os força a cumprir o propósito do Senhor para eles. Esse castigo torna a ressaltar a soberania e a determinação divinas em cumprir o propósito declarado para a criação e a natureza misericordiosa de Deus. Em vez de destruir os responsáveis, o Senhor opta por forçá-los a fazer o melhor para eles. Assim mesmo o pecado continua sem freios. Não apareceu nenhuma solução de longo prazo para esta ameaça.

Não há dúvida de que os politeístas têm de admitir possuir uma confi­ ança limitada no caráter dos deuses, uma segurança limitada debaixo da “ordenação” da terra pelos deuses e um conhecimento limitado de como ou por que podem ser julgados. O relato mosaico, contudo, insta os leito­ res a saber que Deus se entristece com o pecado, controla a injustiça, jamais perpetua tirania de qualquer espécie e fortalece os que lhe obede­ cem. Os monoteístas têm, portanto, a liberdade de viver confiantemente mesmo no meio de um mundo caótico.