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Deus que perdoa todo pecado: Levítico

Levítico

Deus que perdoa todo pecado: Levítico

Levítico 16 apresenta o cerne da teologia do livro. Aqui fundem-se a san­ tidade e misericórdia de Deus, a eleição de Israel e sua necessidade de perdão e a ênfase do livro na pureza e propiciação. Todos esses detalhes juntam-se numa mesma cerimônia que ocorre no “Dia da Propiciação”, dia que ainda hoje é comumente chamado de Yom Kippur. Nesse dia tem lugar “a propiciação sacrificial por todo pecado, exceto blasfêmia contra Deus (v. Nm 15.30, onde é denominada pecado ‘de atitude desafiadora), e também a conseqüente remoção da culpa e da lembrança de pecados contra indivíduos”.40 Assim, a confissão de pecado, o sacrifício, o trabalho dos sacerdotes e a pureza — tudo isso cumpre-se num único evento. Em nenhum outro lugar do AT vê-se quadro mais nítido da graça divina, da fé humana nessa graça e da sua aceitação.

O Dia da Propiciação causa primeiramente impacto no sacerdócio para depois trazer benefício ao povo. Levítico 16.12 associa os problemas de 10.1-3, a pureza do tabernáculo mencionada em 15.31 e a necessidade generalizada que povo e sacerdotes têm de purificação, perdão e renova­ ção. Para os sacerdotes evitarem profanar o padrão divino revelado de ado­ ração (v. 10.1-3), eles devem seguir certas normas para o dia especial. Primeiro, têm de aprender que o sumo sacerdote não pode entrar na sala mais sagrada do santuário quando bem entender (16.1,2). Aventurar-se a isso conduzirá à morte, pois a presença de Deus paira acima da arca da aliança de uma forma especialmente poderosa.

Segundo, o sumo sacerdote tem de usar roupas diferentes das que ele normalmente usa (16.3-5). George Angus Foulton Knight comenta: “Nesse dia específico do ano, quando fazia a mais santa de todas as coisas, ele tinha de usar as roupas de qualquer sacerdote normal”.41 Perante Deus, nesse dia especial o sumo sacerdote se coloca como um pecador ministran­ do a pecadores, desvestido de orgulho ou privilégio. Terceiro, o sacerdote tem de “fazer propiciação por si mesmo e por sua família” (16.6). Uma vez mais o fato é que mesmo sacerdotes (ou talvez esp. eles) têm de se purifi­ car, pois a diferença entre vida e morte, espiritual ou física, é resultado do cuidado dispensado a essa questão pelo sacerdote. Quarto, o sacerdote deve escolher dois bodes, um dos quais será uma oferta pelo pecado do povo e o outro será o que o hebraico chama azazel, definida preliminar­ mente aqui como a oferta viva enviada ao deserto como propiciação (16.7-

40Kaiser, Leviticus, p. 1109. 41L eviticus, p. 89.

10). A definição mais completa surge mais tarde no capítulo. Quinto, o sacerdote deve matar um novilho como oferta própria e então levar incen­ so e um pouco do sangue do novilho na sala santíssima. Deve-se aspergir o sangue sobre a tampa da arca depois de a fumaça do incenso cobrir a tampa (16.11-14). Esse processo remove o pecado do sumo sacerdote e demonstra devida reverência pela presença do Senhor, dois atos que pre­ servam-lhe a vida (16.13).

Agora o sacerdote age a favor do povo. Primeiro, ele abate um bode pelos pecados da comunidade toda e asperge um pouco do sangue do bode sobre a tampa da arca (16.15). Esse ato purifica o lugar santíssimo em particular e o santuário todo em geral. Os pecados de Israel, quer sejam quebras das leis de pureza quer sejam rebelião frontal contra Deus (16.16), “contami­ nam um tanto quanto o santuário”.42 O pecado afeta todas as áreas, mas esse sacrifício remove a culpa de todos os tipos de transgressão. Segundo, o sacer­ dote fará propiciação pelo altar localizado fora do santuário, pondo e asper­ gindo sangue do novilho sobre ele (16.18,19). O objetivo é de novo purifi­ car o altar da impureza de Israel, que neste caso pode ser a possível falta de sinceridade deles na adoração (16.19).

Terceiro e muitíssimo importante, o sacerdote coloca as mãos sobre a cabeça do bode vivo, com isso transferindo os pecados do povo para o animal, e envia o bode com um homem que levá-lo-á ao deserto (16.21). Dessa forma, removem-se os pecados do povo, qualquer que seja a nature­ za deles (16.22). Alcançou-se propiciação total, não resta qualquer conde­ nação ou culpa, e a graça e misericórdia de Deus venceram o pecado e a culpa que o acompanha. Removem-se quaisquer temores de pecados co­ metidos inconscientemente ou sem perceber ou sem querer, e surge o re­ gozijo da reconciliação e amizade.43 As ofertas deste capítulo são substitu­ tivas, pois cada animal é aceito em lugar dos pecados alastrantes e contagi­ osos do povo. O princípio é particularmente óbvio em 16.21,22, pois colocam-se os pecados do povo sobre o bode que vai (presumivelmente) morrer no deserto.

Depois de o bode ser levado embora, o sacerdote se banha, coloca suas roupas costumeiras e oferece um holocausto por si próprio e pelo povo (16.23-25). Em outras palavras, recém-purificados de seus pecados, o sa­ cerdote e o povo experimentam um novo começo. De modo semelhante,

42Hartley, Leviticus, p. 240.

43Cf. Cari Friedrich Keil, Leviticus, em C om m entary on the O ld Testament, vol. 1, p. 395 (ed. original B iblischer C om m entar über das Alte Testament, Leipzig: Dorffling und Franke, 1862-1872).

os que lidaram com o bode e com os restos do sacrifício do dia devem banhar-se e lavar as roupas (16.26-28). Então podem também recomeçar a vida.

Assim como os sacerdotes tinham de preparar-se para os rigores e a santidade do Dia da Propiciação (16.4,5), de igual forma o povo deve assinalar a importância do dia, preparando coração e mente para esses eventos. Esse dia é um sábado para todo o povo (16.29) e, como tal, é um dia separado para descanso e para Deus. O fato de que todos os pecados estão perdoados certamente torna o dia suficientemente especial para o povo obedecer as exigências do sábado (16.30,34). Ou seja, se de fato crêem que esse é o caso. De fato é uma resposta de fé crer que, simples­ mente por Deus dizer que o perdão é mediado dessa maneira, essas ceri­ mônias removem todos os pecados, assim libertando o povo da culpa e da ameaça de morte espiritual e física. Os que crêem preparam-se e partici­ pam. Quem não crê, tem de se apoiar em seus meios fúteis de remover o pecado, o qual é tão contagioso que contamina mesmo os utensílios de adoração regularmente purificados.

Síntese canônica: reverência, fé e sacrifício

Agora que já se tratou do âmago do ensino do Pentateuco sobre pureza, impureza, sacerdócio e Dia da Propiciação, é oportuno fazer algumas ob­ servações sobre o papel canônico de Levítico 8— 16. Há pouquíssimas conexões canônicas entre Levítico 8— 10 e o restante das Escrituras com exceção da presença de certos princípios comuns, como a importância de obedecer aos mandamentos de Deus, a necessidade de um sacerdócio com­ prometido e o perigo de oferecer “fogo profano” perante o Senhor (v. Lv 22.12; 16.40; Dt 25.5).44 De outra forma não se mencionam em qual­ quer outro lugar as leis e incidentes descritos aqui. Assim mesmo é impor­ tante assinalar que as idéias contidas aqui ajudam a explicar, por exemplo, que Uzá foi morto por ser irreverente a ponto de encostar na arca da alian­ ça (2Sm 6.1-7), Uzias foi acometido de lepra por usurpar o papel do sa­ cerdote (2Cr 26.16-23) e Saul foi denunciado por oferecer holocausto sem supervisão sacerdotal (ISm 13.1-15). Também ajudam a explicar a crítica de Malaquias a seus ouvintes pós-exílicos (c. 450 a.C.) por profanar a adoração determinada por Deus (Ml 1.6-14). Malaquias também con­ dena os sacerdotes por deixar de ministrar de uma maneira que honre a Deus e a aliança que Deus estabeleceu com os levitas (Ml 2.1-9).

Também são bem poucas as referências diretas a Levítico 11— 15, mas também neste caso princípios ali evidentes são usados em outras passa­ gens. Por exemplo, em Números 12.1-15 a irmã de Moisés, Miriã, é aco­ metida de lepra por opor-se a Moisés e, mesmo depois de curada, tem de permanecer impura por sete dias. Jônatas, o filho de Saul, come alimento proibido em ISamuel 14.24, e Bate-Seba estava se purificando quando Davi a viu pela primeira vez (ISm 11.4). Acerca desses eventos Brevard Childs comenta: “Em suma, as narrativas não tratam diretamente do as­ sunto, mas indiretamente concentram a atenção em outras áreas da vida moral de Israel e desse modo forçam o leitor da totalidade do cânon a colocar as estipulações cúlticas e legais dentro de um contexto interpreta- tivo mais amplo”.45

Childs também assinala que os Profetas e os Escritos destacam quais motivações levam os adoradores a oferecer sacrifícios e a cumprir as leis básicas sobre pureza e impureza.46 Por exemplo, Isaías 1.10-17 queixa-se de que Israel oferece uma imensidão de sacrifícios, contudo isso equivale a profanar o santuário divino porque seu comportamento corrompido de­ monstra que seu coração continua sem se arrepender. Jeremias 7.1-29 afir­ ma que freqüentar o templo e sacrificar animais não afeta Deus em nada quando não acontece mudança de comportamento. Ademais, Yahweh ale­ ga que obediência e relacionamento, e não a mera oferta de sacrifícios, estão por trás da verdadeira adoração (Jr 7.21-26). Amós 4.4,5 concorda com isso, comentando que são ofensivos ao Senhor sacrifícios feitos com o objetivo de o “adorador” vangloriar-se de sua religiosidade. As idéias de Malaquias já foram assinaladas.

De igual modo o salmo 50 analisa a natureza da adoração aceitável. Deus estabeleceu o sacrifício com o objetivo de ligar Israel ao Criador dos céus e da terra num relacionamento pactuai (50.1-6) e não porque Deus precisava de alimento (50.7-13). Deus deseja responder às orações de Is­ rael (50.14,15), dar direção ao povo (50.17) e trazer-lhes salvação (50.23). Os que sacrificam, mas rejeitam os ensinos de Yahweh (50.8,17-20) não percebem por que o Senhor revela padrões de adoração. Parecem acreditar que Deus é como eles. Supõem que, em questões de culto, Deus presta atenção a observâncias exteriores e ganhos egoístas, mas estão fazendo uma avaliação errada do Criador (50.21,22).

Textos do NT levam ainda mais adiante essa ênfase na fé interior e obediência exterior. Jesus declara que todos os alimentos são puros

4,V. o levantamento feito por Childs em O ld Testament theology, p. 89. 46Ibid„ p. 89-90.

(Mc 7.14-23), um fato ilustrado pela visão de Pedro e o subseqüente mi­ nistério a Cornélio (AT 10.11-28). Jesus também gasta tempo com lepro­ sos, o que indica que pessoas podiam ministrar aos impuros caso se dispu­ sessem a ficar temporariamente impuras. Jesus também fala aos leprosos para observar as regras de reentrada na sociedade (Mt 8.4). Assim mesmo a convicção principal de Cristo era que o caráter de alguém é mais impor­ tante do que observâncias exteriores (Mt 15.11). Os que adotam os ensi­ nos de Jesus decidem concentrar-se mais nas motivações que conduzem a ações do que em rituais exteriores apenas.47 Também não precisam mais observar leis alimentares e de purificação.

Claro está que os Profetas, os Escritos e o NT interpretam Levítico 8— 15 de forma parecida. Ou seja, concordam que rituais religiosos despoja­ dos de fé e obediência são infrutíferos, sendo considerados ofensivos ao Deus santo. Tal atividade busca perdão por meio de obras, uma idéia vã que, no entendimento de Paulo, é o erro fundamental de leitura do AT (v. Rm 9.31,32). Na observação de Childs,

A questão teológica principal é que o cânon traz em seu bojo uma crítica séria não apenas da religião formal, mas da religião em geral. O ataque baseia-se numa visão de Deus que torna totalmente ineficaz toda e qualquer reação humana que busque merecer o favor divino.48 Gênesis 15.6 permanece válido. A fé é a chave para a obediência, de modo que a fé é a chave para a retidão. Ações ostensivas, especialmente as que não revelam nem mesmo a mais elementar conduta ética, não conse­ guem chamar a atenção de Yahweh nem fazer propiciação pelo pecado.

À medida que as Escrituras avançam, só raramente menciona-se o Dia da Propiciação. Detalhes pertinentes à sua observância aparecem em Leví­ tico 23.26-32 e Números 29.7-11. Esses textos fazem parte de listas dis­ tintas de eventos sagrados e não ajudam a melhorar nosso entendimento sobre o Dia da Propiciação. Levítico 16.29-34 ordena claramente que esse evento aconteça anualmente, de modo que, à primeira vista, “é curioso que não haja no AT qualquer referência específica ao Dia da Propiciação, apesar da ocorrência periódica de certos eventos importantes no sétimo mês (v. lR s 8.2,65,66; Ed 3.1-6; Ne 8.17,18)”.49 Essa ausência, contu­ do, pode não ser incomum, caso se leve em conta o fato de que, devido ao

47V. o excelente tratamento dessas questões por Wenham em Leviticus, p. 161-225.

i%O ld Testament theology, p. 90.

declínio espiritual, a Páscoa era observada só ocasionalmente (v. 2Rs 23.21- 23), e de que os Profetas constantemente se queixam de que quase não havia em sua época a adoração nos moldes de Moisés e da aliança.

Hebreus 9.7-12 faz o uso mais amplo do Dia da Propiciação nas Escrituras. Ali o autor diz que o problema com o Dia da Propiciação era sua repetição anual, significando a impossibilidade da consciência de cada adorador estar permanentemente limpa (Hb 9.7-9). Por essa razão essas regras foram válidas só até a morte de Cristo fazer propiciação por todos os pecados cometidos pelo povo de Deus (Hb 9.10-12). Antes de a pro­ piciação permanente revelar-se, o sistema de Levítico oferecia, numa base anual, propiciação pelos pecados e apresentava um quadro de um sacri­ fício maior e vindouro (Hb 9.6-8). O Dia da Propiciação presumivel­ mente ajudava a incutir em israelitas fiéis um forte desejo de um perdão permanente para o pecado.50 Depois da cruz, no entanto, à semelhança dos demais sacrifícios, o Dia da Propiciação está incluído no pagamento único e abrangente que, na cruz, Jesus fez pelos pecados.