Levítico
Deus que exige pureza: Levítico 11—
De todas as leis do Pentateuco, é com as desta seção que leitores de hoje em dia ficam possivelmente mais perplexos. Enquanto o Senhor continua
29Leviticus, em N ew in terp reter’s Bible, vol. 1, p. 1070.
30Cf. Brevard S. Childs, O ld Testament theology in a ca n on ica l context, p. 149-50; e Von Rad, O ld Testament theology, vol. 1, p. 245 (publicada em português com o título
a revelar os padrões e práticas que fomentarão a presença divina, emerge no texto uma série de ações que tornam os israelitas “puros” e “impuros”. Levítico 10.10,11 já declarou que os sacerdotes devem “fazer separação entre o santo e o profano, entre o puro e o impuro” e ensinar o povo a como fazer o mesmo. As quatro palavras p u ro , im puro, santo e profano são as ênfases principais de Levítico 11—27. Já se falou bastante sobre santi dade. Deus é santo, separado e especial tanto na natureza quanto no cará ter, e Israel foi chamado a ser uma nação santa, um reino de sacerdotes (Êx 19.5,6). Mais sobre esse conceito e seu inverso, o que é comum, aparece em Levítico 17—27. Mas agora o Senhor destaca as idéias de “puro” e “impuro”, expressões que às vezes são entendidas como “limpo” e “não- limpo”. A questão, no entanto, é de que maneira pureza ou impureza acontecem e o propósito disso.
Várias atividades tornam impuros os seres humanos. Comer certos animais (Lv 11), dar à luz (Lv 12), algumas doenças da pele (Lv 13 e
14) e excreções dos órgãos sexuais (Lv 15) — tudo isso torna as pessoas impuras.31 Impureza não é uma condição permanente, pois é possível remover cada exemplo de impureza, assim tornando puro o adorador. Fica claro nesses textos que os impuros estão impuros para manter ativi dades normais com outros israelitas e para adorar no santuário. Mulhe res que acabaram de dar à luz (12.4), vítimas de doenças de pele (14.1- 32) e os que tiveram excreções pelos órgãos sexuais (15.31) devem per manecer à distância do santuário ou de outras pessoas por um ou mais dias. O tempo e o ritual podem sarar e restaurar a pessoa à plena vida comunitária.
Por que Deus exige tanto cuidado no viver? John Hartley assinala que, ao longo dos séculos, tem-se apresentado seis respostas básicas:
1. Essas leis, ao banir alimentos não-saudáveis, promovem boa saúde. 2. Essas leis têm significado alegórico ou simbólico.
3. Essas leis não devem ser explicadas. São simplesmente a vontade de Deus.
4. Essas leis têm o propósito de limitar a violência humana contra os animais e, portanto, ajudam a incutir um sentimento generalizado de reverência pela vida.
5. Essas leis protegem a comunidade de Yahweh contra forças demo níacas.
6. Essas leis são parte da maneira de o Israel antigo encarar a unidade e inteireza sociais.32
R. K. Harrison defende a primeira opção.33 E certo que Deus está interessado na saúde de Israel, mas, por mais válida que seja essa afirma ção, ela não explica o suficiente, pois não deixa claro como observar tais leis torna Israel santo no sentido que Êxodo 19.5,6 espera. A maioria dos defensores da segunda opção é de uma época anterior, quando a interpre tação alegórica era mais popular, ao passo que muitas pessoas que apóiam a terceira hipótese afirmam acertadamente que aqui apresenta-se a vonta de de Deus sem qualquer explicação detalhada, mas não procuram avançar na procura de uma interpretação para a razão por trás dessas leis.34 Com demasiada facilidade tais abordagens abrem mão da tarefa de entender os ensinos do cânon sobre o assunto.
Milgrom propõe a quarta posição. Essa noção associa as leis sobre ali mentação à proibição anterior de matança desnecessária em Gênesis 9.5 e à proibição posterior de beber sangue em Levítico 17.10-14.35 Com pre cisão Milgrom declara que essas leis limitam excessos humanos, contudo essa opção não oferece uma solução suficiente sobre como a obediência a esses mandamentos diz respeito à santidade de Yahweh e Israel. Desde o surgimento da abordagem de história das religiões à teologia do AT, vários autores vem propondo a quinta opção. Existem vários problemas com essa proposta, mas o mais gritante é que no texto em si não há qualquer men ção explícita ou implícita a forças demoníacas. Não se emprega rito mági co algum para afastar enfermidades. Não se faz tentativa alguma de implo rar que Yahweh expulse espíritos malévolos. Não aparece nenhum outro poder. O tempo e o sacrifício usual curam a impureza porque o Senhor assim o declara.36
Desde o trabalho pioneiro de Mary Douglas sobre essa sexta opção,37 alguns estudiosos têm adotado alguma forma variante dessa possibilidade. Douglas defende que as leis de pureza ajudaram Israel a entender a uni dade e a perfeição da criação divina, o que por sua vez levou a uma cosmovisão partilhada e a um sentido comum de propósito, os quais os diferenciaram de seus vizinhos. Essa explicação sociológica começa a che-
i2L eviticus, p. 142-3.
iòL eviticus: an introduction and commentary, p. 121-6.
34Childs, O ld Testament theology, p. 85.
35L evítico 1— 16, p. 704-13.
36 V. a análise de Kaufmann em The religion o f Israel, p. 106-15.
gar ao âmago do propósito dessas leis. Levítico 11.44,45, situado no final do segmento sobre animais impuros, explica que deve-se guardar essas leis para que Israel possa ser santo (v. Ex 19.5,6) da mesma maneira como Deus é santo (v. Êx 32—34). Em outras palavras, essas leis são mais uma maneira de Israel e Yahweh consolidar seu relacionamento. Também são mais uma maneira de Israel poder começar a se destacar entre outras na ções. Não comer certos alimentos evitará que Israel participe dos rituais politeístas das nações vizinhas.38
Além disso, Levítico 12.4 afirma que a que recentemente deu à luz deve esperar alguns dias antes de entrar no santuário. Outra maneira de expressar a regra é que ela não tem de retomar seus deveres regulares até que ela e a criança tenham se recuperado do parto. Como sempre, aqui também o descanso é uma bênção. Separar nascimento e santuário tam bém evita que Israel vincule ritos de fertilidade à sua prática religiosa, um traço particularmente comum em religiões cananéias.39
Finalmente, Levítico 15.31 adverte que quebrar as leis de pureza e impureza levará à morte. Tais ações profanam o santuário, o símbolo prin cipal da presença de Deus entre os israelitas, e deve-se expiá-las mediante reconhecimento do pecado seguido de sacrifício. Certamente Israel quer evitar uma repetição da tragédia de Êxodo 32. Certamente o povo está preparado para aceitar o fato de que Yahweh determina o que promove e o que restringe sua presença e de que Israel depende totalmente da miseri córdia divina em questões de pecado, santidade, perdão e pureza.
Sumariando, essas instruções separam Israel como uma nação que pos sui leis especiais de pureza, leis estas que os ligam intimamente a Deus. Essas regras os beneficiam de muitas maneiras, mas o benefício maior é a presença de Deus no meio deles, uma realidade que por sua vez coloca-os à parte de outras nações. Observar essas leis protege Israel de religiões politeístas. Também lança Israel à misericórdia do seu Deus, a única di vindade que esses textos reconhecem. De novo o texto concentra-se na singularidade de Deus, em Israel desfrutar a condição de eleito, na santi dade e misericórdia de Deus e na revelação de Deus. Um Deus santo está uma vez mais determinado a criar um povo que será o cumprimento das promessas feitas a Abraão. Esse cumprimento dar-se-á com o povo assu mindo uma posição firme contra o pecado e contra a dissolução pessoal, característica de um mundo pecaminoso, e desenvolvendo reverência ao Senhor, o qual merece reverência.
38Hartley, Leviticus, p. 144. 39Cf. Levine, Leviticus, p. 250.