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Deus que vê e se lembra: Êxodo 1—

Êxodo começa auspiciosamente. Conquanto Israel continue no Egito, o povo prospera e cresce, tornando-se um grande grupo em seu país adotivo (1.1-7).4 Essa expansão numérica dos clãs dos doze filhos de Jacó cumpre a promessa divina a Abraão de multiplicar seus descendentes até que mal

4Embora Israel ainda não seja uma nação no sentido de possuir terra e ter um governo, é um povo com suficiente identidade étnica, religiosa e econômica para os dois termos serem aplicados. V. a análise de Ronald E. Clements sobre essas questões em O ld Testament

se consiga contá-los (v. Gn 12.1-9; 15.1-6).5 Desse modo deve-se ler os versículos iniciais como uma afirmação teológica da fidelidade, bondade e provisão constantes de Deus para com Abraão, Isaque e Jacó. O Deus que cumpre promessas continua a agir ao longo dos séculos, sendo fiel às pro­ messas feitas a homens e mulheres mortos há muito tempo. Com certeza esses versículos também são um desagravo para o sofrimento e labuta de José, o instrumento humano do livramento divino para Israel em Gênesis

37— 50.

Infelizmente logo o sofrimento entra de novo na história e, desta vez, alcança todo o Israel com seus tentáculos. Essa reviravolta nos aconteci­ mentos começa com a ascenção de um novo faraó sem quaisquer laços com José (1.8). Esse faraó provavelmente pertence a uma etnia diferente da do faraó de José,6 possuindo objetivos políticos e econômicos diferentes e julgando os israelitas uma ameaça à segurança nacional (1.9,10). Primei­ ramente ele procura limitar seu crescimento, escravizando-os, mas conse­ guindo apenas aumentar-lhes o número.7 Visto que na prática ele está tentando reverter a promessa divina a Abraão, seus esforços são fúteis. Em seguida, ele ordena a morte de todos os meninos israelitas recém-nascidos, plano frustrado por parteiras tementes a Deus (1.17), as quais Deus aben­ çoa por proteger as crianças israelitas (1.20,21). Mesmo em meio a dias terríveis o povo não é abandonado por Deus. Como nas narrativas de José, aqui o sofrimento é real e ameaçador, contudo isso não significa que o Criador, o Deus que promete, dirige e livra, tenha perdido poder ou se deparado com um adversário inderrotável, seja ele natural, humano ou divino. Entretanto, o sofrimento tem seu papel aqui, conforme demons­ trado em relatos subseqüentes. Não dissuadido, o faraó ordena que cada menininho israelita seja atirado no rio Nilo (1.22).

Apesar da aparente falta de solução para esta situação terrível, o cânon já deu dicas de que este dilema será resolvido. De acordo com Gênesis

15.13-16, depois de Abrão crer em Deus e de essa crença ter sido conside­ rada justiça (15.6) e depois de Abrão perguntar como poderá saber que Canaã será dada a seus descendentes (15.8), Deus revela o futuro para Abrão, contando-lhe que seus descendentes viverão quatrocentos anos num

5Cf. Elmer A. Martens, G od’s design : a focus on Old Testament theology, p. 17; e Walter C. Kaiser Jr., Toward an O ld Testament theology, p. 100.

6Cf. John Bright, A history o f Israel, p. 105-14; e Michael Grant, The history o f a n cien t

Israel, p. 36.

7Os estudiosos raramente põem em dúvida a exatidão histórica de Êxodo 1.11-14. Cf. Walther Zimmerli, O ld Testament theology in outline, p. 22; e Ernest W. Nicholson,

país estrangeiro, sofrendo durante parte desse tempo (15.13). Mas depois disso sairão daquela terra (15.14). Com base nessa informação, a dor do povo não é sem propósito. O sofrimento é definitivamente terrível, contu­ do funciona como as dores de parto de uma nação. As promessas divinas de terra devem estar na iminência do cumprimento. Essa conscientização canônica não minimiza o problema do sofrimento injusto mais do que a crença de José de que sua dor ocorreu por um motivo redentivo (v. Gn 50.20), mas demonstra que Deus ainda está com o povo da aliança. Se alguém lê esses capítulos isoladamente, sem essa conscientização canôni­ ca, a ausência divina em Êxodo 1 e 2 parece muito mais palpável do que seria necessário.8

Duas questões teológicas, o livramento de Israel do Egito e seu reassen- tamento em Canaã e o sofrimento de Israel, agora dão estrutura ao relato. Em meio a essas duas questões surge alguém que reverlar-se-á fundamen­ tal na solução dos dois assuntos. Um casal de descendentes de Levi, cujos nomes não são informados,9 tem um filho e eles se recusam a atirá-lo no rio Nilo. Talvez temam a Deus como as parteiras de Êxodo 1.15-22. Quan­ do não conseguem mais esconder a criança, a mãe prepara um cesto para servir de barco para o filho, instala-o ali, põe o cesto no rio Nilo e coloca a irmã do menino a observar os acontecimentos seguintes (2.1-4). Não há dúvida de que a mãe, ao tomar essas precauções, esperava de alguma ma­ neira salvar a criança.10 A mãe alcança esse objetivo. Ironicamente a filha do faraó descobre a criancinha e condói-se dela (2.5,6), uma reviravolta tão surpreendente quanto a experiência de Abrão com outro faraó em Gê­ nesis 12.10-20 e a mudança de sorte para José em Gênesis 41. Uma vez mais o Egito fornece ajuda inesperada para os escolhidos. A princesa dá à criança o nome de Moisés, cuida da sua criação e, desse modo, torna pos­ sível que um israelita receba, presumivelmente, educação formal e outros privilégios reais. Fica-se a imaginar por que esse homem sobreviveu ao rancor genocida do faraó.

Quando atinge a idade adulta, Moisés aparentemente chega à conclu­ são de que fora poupado para poder ajudar os demais israelitas. Ele mata

8Donald E. Gowan concentra-se na “ausência” de Deus em Êxodo 1.1—2.22 e no seu reaparecimento em Êxodo 2.23-25 no livro T heology in Exodus: biblical theology in the form of a commentary, p. 1-24. Embora Gowan não leve Gênesis 15.13-16 adequa­ damente em conta, ele efetivamente vincula Êxodo 1 e 2 aos encontros do José sofredor em Gênesis 37— 50.

9Para uma análise da possível identidade dos pais de Moisés, consultar Walter C. Kaiser Jr., Exodus, em Expositor’s Bible com m entary, Frank E. Gaebelein (org.), vol. 2, p. 308.

um egípcio opressor de um israelita, mas logo descobre que nem todos os israelitas valorizam sua proteção ou desejam seu conselho (2.11-14). Des­ coberto o assassinato, ele foge para Midiã, onde se encontra com a filha de um sacerdote e casa-se com ela, estabelecendo-se no que considera terra estrangeira, fato realçado pelo nome dado ao primeiro filho, Gérson (“es­ trangeiro”).11 Qualquer papel destinado a Moisés está adiado por enquanto. Nesse ínterim Israel sofre. Eles clamam a Deus, que lhes ouve o gemi­ do, lembra-se da aliança patriarcal e decide agir a favor deles (2.23-25). O fato de Deus ouvir significa que ele agirá. O fato de Deus se lembrar acentua a fidelidade divina, visto que o ato de lembrar não ocorre necessa­ riamente depois de um longo período de esquecimento. Antes de o sofri­ mento ocorrer, Deus sabia quanto tempo ele duraria (v. Gn 15.13-16), de sorte que parece improvável Deus ter ficado de braços cruzados, sem cons­ ciência do que o povo sentia. A obra de livramento tem de iniciar-se agora e será sancionada pelo Deus que durante quatro séculos tem sido fiel a Abraão e que revelar-se-á igualmente fiel aos que sofrem, clamam, esperam e sonham com liberdade nesta nova era.