Quando os leitores terminam de ler Gênesis 2, têm uma sensação de bem- estar que quase resvala para a euforia. Afinal, o Deus incomparável e solitá rio criou o mundo ideal para a raça humana plenamente racional, relacio nal e funcional, que por sua vez tem prazer no trabalho, no sexo e nas ocupações espirituais. A única regra divina, a proibição de comer da “árvo re do conhecimento do bem e do mal”, tem sido obedecida até agora.
O que acontece em seguida destroça essa serenidade. A mulher encon tra outro ser criado, a serpente, sutil, manhosa e verbalmente combativa. É importante realçar que a serpente não passa de uma criatura,12 pois caso
contrário leitores podem concluir que a serpente tentadora possui poder igual ao de Deus. Mais tarde as Escrituras analisam como a serpente tor nou-se quem tenta fazer as pessoas se voltar contra Deus (v. Is 14.12-17; Ez 28.2-5), mas aqui não há qualquer explicação do gênero. E claro, no entanto, que a serpente representa interesses diametralmente opostos aos declarados por Deus em Gênesis 2.16,17. Destarte, pelo menos um ser criado resiste aos mandamentos de Yahweh. Uma vez que Gênesis 1 e 2 conta que tudo o que foi criado é “bom”, parece provável que a serpente represente um ser que corrompeu seu bom propósito e não que Deus a tenha criado corrupta desde o princípio.
A conversa entre a mulher e a serpente começa com o questionamento bem dissimulado do mandamento único e simples dado por Deus, passa para a negação frontal das conseqüências da desobediência anunciadas em Gênesis 2.17 e conclui com a tentação escancarada baseada no ataque ao caráter do Criador (3.1-6). Depois de considerar os argumentos da ser pente, a mulher come, como também o faz o marido (3.6). Esta quebra do mandamento do Senhor constitui pecado. O mandamento não era difícil demais de entender, como também não era a conseqüência dessa ação. Na verdade, comer a fruta equivale a confiar no tentador e não no Criador e ao desejo destrutivo de conhecimento. O pecado começa com a falta de con fiança em Deus, inclui o anelo pelo que causa dano próprio, ignora a revelação da verdade e, por fim, termina em destruição. Crer em mentiras devido à falta de fé não pode produzir obediência ao Criador.
Imediatamente após seu pecado, os seres humanos experimentam o castigo pela desobediência. A naturalidade com que se dão um com o outro é destroçada, pois cobrem sua nudez (3.7). A comunhão com Deus é quebrada, e escondem-se de quem os criou à sua imagem (3.8,9). Sua compreensão da verdade enfraquece pois culpam outros pelo que cada um fez (3.10-13). Fissuras na amizade, comunhão e integridade são baixas causadas pelo pecado.
Seguem-se outras conseqüências impostas por Deus. Primeiro, Deus condena a serpente a comer pó e a saber com certeza que duelará com os seres humanos para, no final, ser esmagada (3.14,15). Corretamente tem- se considerado esse texto o proto-evangelh o ou primeira declaração das boas novas, pois garante aos leitores que o mal não dominará os seres humanos para sempre. Com o desenvolvimento do cânon, essa promessa cresce para incluir conceitos messiânicos. Entretanto, mesmo nesta etapa inicial, a noção surge como alívio. O Criador permanece no controle até mesmo dos setores revoltosos da criação.
Segundo, a mulher recebe dois castigos por suas ações. Um é físico e o outro é relacional. Dores acompanharão o parto (3.16), o que indica a
impossibilidade de restrição dos efeitos do pecado a alguma área espiritual da vida humana. Pelo contrário, o pecado também afeta o lado físico da mulher, forçando-a a, durante o que deveria ser um momento jubiloso da vida, lembrar-se de seu fracasso. Por mais duro que seja esse castigo, afeta menos do que o segundo. O pecado da mulher também traz o castigo de frustração no relacionamento com o marido (3.16).
Para Martinho Lutero este castigo significa que as mulheres estão agora debaixo da autoridade do homem em todas as questões, à exceção de pro criar e cuidar dos filhos, tarefas consideradas por ele honorabilíssimas. Essa sujeição não teria ocorrido sem o pecado.13 G. C. Aalders oferece a idéia bem comum de que, embora a mulher saiba da dor associada ao parto, ela ainda desejará ter sexo com o marido, o que por sua vez leva-a de volta à dor. Ele concorda em princípio com as opiniões de Lutero sobre a sujeição da mulher ao marido.14 Victor Hamilton modifica um pouco esse ponto de vista, afirmando que esse castigo significa que, em vez de “ser um reino de seres iguais sobre o restante da criação de Deus, o relaciona mento agora se torna uma disputa feroz, com cada parte tentando domi nar a outra”.15
Nenhuma dessas interpretações possui as implicações universais que o relato parece querer transmitir. Novamente a questão parece ser principal mente relacional. Os desejos dela não serão satisfeitos da maneira como ela quer. Nunca mais desfrutará comunhão impecável como a de Gênesis 2.25. Claus Westermann capta o peso da passagem ao escrever:
o que ele [o autor de Gênesis 3.16] realmente quer dizer é muito mais sério: exatamente onde a mulher encontra realização na vida, honra e alegria, a saber, em seu relacionamento com o marido e como mãe de filhos, ali também ela descobre que isso não é felicidade absoluta, mas dor, peso, humilhação e subordinação.16
À dor espiritual e física acrescentou-se a dor emocional. As pressões causadas pelo pecado continuam a se alastrar.
Adão não se sai melhor. Além dos problemas que enfrentará devido ao castigo dado à serpente e à mulher, ele aprende que nem sempre será bem- sucedido no trabalho. Ele suará e trabalhará arduamente, contudo enfren tará lutas e revezes em seu esforço por fazer a terra produzir. O trabalho
13Lectures on Genesis 1— 5, em L uther’s works, vol. 1, p. 203. 14Genesis, vol. 1, p. 108-9.
15 The book o f Genesis, p. 202. 16Genesis, vol. 1, p. 263.
não é o castigo, pois em Gênesis 1.28 Deus diz aos seres humanos para trabalhar. De maneira que o pecado não torna as coisas mais fáceis para Adão, pois ele tem de lutar com a serpente, lidar com as frustrações que ele e sua família criam e também encarar a certeza de que jamais haverá certe za de sucesso no trabalho.
Com as conseqüências do pecado claramente expressas e com a pro messa de que serpente será derrotada a longo prazo, Deus age com miseri córdia ao amparar o casal caído (3.21). Deus os veste (3.21). O Senhor também os retira do jardim para protegê-los de comer da árvore da vida, que não lhes fora proibida anteriormente, para que não vivam eternamen te na condição de pecado (3.22-24). Nem mesmo o pecado deles é capaz de separá-los da preocupação e do compromisso total de Deus com o bem- estar das pessoas que criou.
Rápida e inexoravelmente o pecado se espalha. Eva dá à luz dois filhos, Caim e Abel, que crescem e se tornam agricultor e pastor de ovelhas, res pectivamente (4.1,2). Embora o texto não explique como sabem fazê-lo, ambos trazem oferendas apropriadas às suas profissões. Novamente sem dizer exatamente por quê, o texto conta que o Senhor aceita o sacrifício de Abel, mas não o de Caim.; Conquanto Deus advirta um Caim carrancu do de que deve dominar o pecado, Caim não apenas ignora o alerta do Senhor, mas também mata o irmão (4.5-8). Aqui o pecado se revela como violência, assassinato cruel e a sangue frio, como injustiça. Obviamente também um dos resultados do pecado é a possibilidade de sofrimento da parte inocente por causa dos pecados de outros.
Como seus pais, Caim reage de acordo com seus padrões e não os de Deus. Como seus pais, recebe castigo, neste caso a necessidade de viver uma vida nômade e instável (4.9-14). Apesar disso Deus reage com mise ricórdia para com Caim, da mesma maneira como o Senhor reage com misericórdia com os pais de Caim (4.15,16). Caim tem sua família, que depois de algumas gerações gera Lameque, um homem tão violento quan to o próprio Caim (4.17-24). A tecnologia humana avança (4.17,21,22), mas essa engenhosidade não reduz em nada os efeitos do pecado. Em sua graça Deus substitui Abel por uma nova vida (4.25), e as pessoas apren dem a invocar o Senhor (4.26). Apesar disso não há o retorno à “bondade” de Gênesis 1 e 2 — nem poderia haver.
A genealogia de Gênesis 5 e o estranho relato de Gênesis 6.1-4 conclu em o texto que traz a descrição inicial do pecado humano e conduzem à
próxima divisão importante do livro. De Adão a Lameque a raça humana começa, gera filhos e morre (5.1-31). Os seres humanos enchem a terra com sua descendência, cumprindo o mandamento divino (1.26-31), e partilham da maldição da morte e do trabalho árduo e doloroso sobre a terra (5.29). Apesar da aparente monotonia e mesmice de criação, vida e morte, sob a superfície do texto existe um fato triste: o pecado continuar a crescer e nunca morre. Esse fato é evidente em Gênesis 6.1-4, onde o mundo parece totalmente fora de controle. Interpretações deste texto vão desde a idéia de que os versículos são basicamente mitológicos18 até a idéia de que significam que os seres humanos “envolveram-se em casamentos não santos, e o pecado logo se tornou a característica dominante da raça”.19 Todos os estudiosos concordam que a passagem demonstra a difusa peca- minosidade humana, cujas conseqüências vêm à tona em Gênesis 6.5 e o texto que segue.
Síntese canônica: pecado difuso
Quem é responsável por todo esse pecado? É fundamental concluir que o indivíduo é responsável por suas ações. Embora Deus tenha criado a ser pente, esta não recebeu ordens para tentar os seres humanos. Deus adver tiu as pessoas a não comer do fruto de uma árvore, mas a Eva e Adão faltou a fé necessária para crer no Senhor em vez de na serpente. Quando têm de crer em Deus o bastante para obedecer uma única lei, os seres humanos fracassam. Esse fracasso é, no entanto, responsabilidade exclusiva deles, visto que foram advertidos e a serpente não possuía poder algum de coer ção física.
Quão contínuo é esse pecado? Quão ininterrupto é? Estudiosos judeus e cristãos vêm afirmando há séculos que depois da queda de Adão e Eva os seres humanos nascem em pecado. Mas muitos pensadores têm questio nado essa interpretação. Embora os textos de Gênesis não façam afirma ções explícitas favorecendo uma interpretação ou outra, depois de Gênesis 3 nenhum ser humano evita o pecado. Ninguém é sem pecado; todos são afetados por viver no mundo pecaminoso. Por nascimento, por escolha ou por ambos, o resultado continua sendo que cada ser humano peca e sofre espiritual, física, emocional, relacional e vocacionalmente por causa desse pecado.
I8Walter A. Brueggemann, Genesis (Interpretation: a Bible commentary for teaching and preaching), p. 71-2.
Qual a importância da prevalência do pecado no restante do cânon do AT? Num sentido bem real, o restante das Escrituras trata da solução para o problema do pecado. No Pentateuco, Moisés intermedeia uma aliança que inclui sacrifícios oferecidos com fé por pecadores penitentes por seus pecados. Os Profetas Anteriores apresentam uma breve descrição de como o pecado continuado e habitual, não-contestado, gradualmente empurra Israel para a destruição. Profetas como Isaías e Jeremias lamentam estar no meio de um povo impuro (Is 6.5) e ser alguém com um coração corrompi do e enfermo (Jr 17.9). Isaías 13—27, Jeremias 46—51, Ezequiel 25—32, Amós 1.2—2.3 e outras passagens anunciam a pecaminosidade de todas as nações. Os salmistas declaram não haver pessoas retas (p.ex., SI 14.1-3; 53.1- 3; 140.3). Jó e Provérbios aconselham sabedoria à luz do erro e tolice huma nos, enquanto o restante dos Escritos descreve os efeitos do pecado nos exi lados de Israel (v. Ester e Daniel) e a tentativa de a nação vencer o próprio pecado (v. Eclesiastes, Ezequiel, Neemias, 1 e 2Crônicas).
Assim o pecado nunca poupa — seja uma geração, seja um único indi víduo. E possível que essas histórias específicas sejam recontadas não com o objetivo de explicar o motivo do implacável pecado humano, mas a par tir desta passagem o cânon certamente se debate com os resultados desses relatos.20 O ponto de partida, o lugar onde o pecado entra na raça huma na, é Gênesis 3, fato que em Romanos 5.12 Paulo realça como contraste com a obra de Cristo.