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Deus que julga e protege: Gênesis 3.1— 6

Quando os leitores terminam de ler Gênesis 2, têm uma sensação de bem- estar que quase resvala para a euforia. Afinal, o Deus incomparável e solitá­ rio criou o mundo ideal para a raça humana plenamente racional, relacio­ nal e funcional, que por sua vez tem prazer no trabalho, no sexo e nas ocupações espirituais. A única regra divina, a proibição de comer da “árvo­ re do conhecimento do bem e do mal”, tem sido obedecida até agora.

O que acontece em seguida destroça essa serenidade. A mulher encon­ tra outro ser criado, a serpente, sutil, manhosa e verbalmente combativa. É importante realçar que a serpente não passa de uma criatura,12 pois caso

contrário leitores podem concluir que a serpente tentadora possui poder igual ao de Deus. Mais tarde as Escrituras analisam como a serpente tor­ nou-se quem tenta fazer as pessoas se voltar contra Deus (v. Is 14.12-17; Ez 28.2-5), mas aqui não há qualquer explicação do gênero. E claro, no entanto, que a serpente representa interesses diametralmente opostos aos declarados por Deus em Gênesis 2.16,17. Destarte, pelo menos um ser criado resiste aos mandamentos de Yahweh. Uma vez que Gênesis 1 e 2 conta que tudo o que foi criado é “bom”, parece provável que a serpente represente um ser que corrompeu seu bom propósito e não que Deus a tenha criado corrupta desde o princípio.

A conversa entre a mulher e a serpente começa com o questionamento bem dissimulado do mandamento único e simples dado por Deus, passa para a negação frontal das conseqüências da desobediência anunciadas em Gênesis 2.17 e conclui com a tentação escancarada baseada no ataque ao caráter do Criador (3.1-6). Depois de considerar os argumentos da ser­ pente, a mulher come, como também o faz o marido (3.6). Esta quebra do mandamento do Senhor constitui pecado. O mandamento não era difícil demais de entender, como também não era a conseqüência dessa ação. Na verdade, comer a fruta equivale a confiar no tentador e não no Criador e ao desejo destrutivo de conhecimento. O pecado começa com a falta de con­ fiança em Deus, inclui o anelo pelo que causa dano próprio, ignora a revelação da verdade e, por fim, termina em destruição. Crer em mentiras devido à falta de fé não pode produzir obediência ao Criador.

Imediatamente após seu pecado, os seres humanos experimentam o castigo pela desobediência. A naturalidade com que se dão um com o outro é destroçada, pois cobrem sua nudez (3.7). A comunhão com Deus é quebrada, e escondem-se de quem os criou à sua imagem (3.8,9). Sua compreensão da verdade enfraquece pois culpam outros pelo que cada um fez (3.10-13). Fissuras na amizade, comunhão e integridade são baixas causadas pelo pecado.

Seguem-se outras conseqüências impostas por Deus. Primeiro, Deus condena a serpente a comer pó e a saber com certeza que duelará com os seres humanos para, no final, ser esmagada (3.14,15). Corretamente tem- se considerado esse texto o proto-evangelh o ou primeira declaração das boas novas, pois garante aos leitores que o mal não dominará os seres humanos para sempre. Com o desenvolvimento do cânon, essa promessa cresce para incluir conceitos messiânicos. Entretanto, mesmo nesta etapa inicial, a noção surge como alívio. O Criador permanece no controle até mesmo dos setores revoltosos da criação.

Segundo, a mulher recebe dois castigos por suas ações. Um é físico e o outro é relacional. Dores acompanharão o parto (3.16), o que indica a

impossibilidade de restrição dos efeitos do pecado a alguma área espiritual da vida humana. Pelo contrário, o pecado também afeta o lado físico da mulher, forçando-a a, durante o que deveria ser um momento jubiloso da vida, lembrar-se de seu fracasso. Por mais duro que seja esse castigo, afeta menos do que o segundo. O pecado da mulher também traz o castigo de frustração no relacionamento com o marido (3.16).

Para Martinho Lutero este castigo significa que as mulheres estão agora debaixo da autoridade do homem em todas as questões, à exceção de pro­ criar e cuidar dos filhos, tarefas consideradas por ele honorabilíssimas. Essa sujeição não teria ocorrido sem o pecado.13 G. C. Aalders oferece a idéia bem comum de que, embora a mulher saiba da dor associada ao parto, ela ainda desejará ter sexo com o marido, o que por sua vez leva-a de volta à dor. Ele concorda em princípio com as opiniões de Lutero sobre a sujeição da mulher ao marido.14 Victor Hamilton modifica um pouco esse ponto de vista, afirmando que esse castigo significa que, em vez de “ser um reino de seres iguais sobre o restante da criação de Deus, o relaciona­ mento agora se torna uma disputa feroz, com cada parte tentando domi­ nar a outra”.15

Nenhuma dessas interpretações possui as implicações universais que o relato parece querer transmitir. Novamente a questão parece ser principal­ mente relacional. Os desejos dela não serão satisfeitos da maneira como ela quer. Nunca mais desfrutará comunhão impecável como a de Gênesis 2.25. Claus Westermann capta o peso da passagem ao escrever:

o que ele [o autor de Gênesis 3.16] realmente quer dizer é muito mais sério: exatamente onde a mulher encontra realização na vida, honra e alegria, a saber, em seu relacionamento com o marido e como mãe de filhos, ali também ela descobre que isso não é felicidade absoluta, mas dor, peso, humilhação e subordinação.16

À dor espiritual e física acrescentou-se a dor emocional. As pressões causadas pelo pecado continuam a se alastrar.

Adão não se sai melhor. Além dos problemas que enfrentará devido ao castigo dado à serpente e à mulher, ele aprende que nem sempre será bem- sucedido no trabalho. Ele suará e trabalhará arduamente, contudo enfren­ tará lutas e revezes em seu esforço por fazer a terra produzir. O trabalho

13Lectures on Genesis 1— 5, em L uther’s works, vol. 1, p. 203. 14Genesis, vol. 1, p. 108-9.

15 The book o f Genesis, p. 202. 16Genesis, vol. 1, p. 263.

não é o castigo, pois em Gênesis 1.28 Deus diz aos seres humanos para trabalhar. De maneira que o pecado não torna as coisas mais fáceis para Adão, pois ele tem de lutar com a serpente, lidar com as frustrações que ele e sua família criam e também encarar a certeza de que jamais haverá certe­ za de sucesso no trabalho.

Com as conseqüências do pecado claramente expressas e com a pro­ messa de que serpente será derrotada a longo prazo, Deus age com miseri­ córdia ao amparar o casal caído (3.21). Deus os veste (3.21). O Senhor também os retira do jardim para protegê-los de comer da árvore da vida, que não lhes fora proibida anteriormente, para que não vivam eternamen­ te na condição de pecado (3.22-24). Nem mesmo o pecado deles é capaz de separá-los da preocupação e do compromisso total de Deus com o bem- estar das pessoas que criou.

Rápida e inexoravelmente o pecado se espalha. Eva dá à luz dois filhos, Caim e Abel, que crescem e se tornam agricultor e pastor de ovelhas, res­ pectivamente (4.1,2). Embora o texto não explique como sabem fazê-lo, ambos trazem oferendas apropriadas às suas profissões. Novamente sem dizer exatamente por quê, o texto conta que o Senhor aceita o sacrifício de Abel, mas não o de Caim.; Conquanto Deus advirta um Caim carrancu­ do de que deve dominar o pecado, Caim não apenas ignora o alerta do Senhor, mas também mata o irmão (4.5-8). Aqui o pecado se revela como violência, assassinato cruel e a sangue frio, como injustiça. Obviamente também um dos resultados do pecado é a possibilidade de sofrimento da parte inocente por causa dos pecados de outros.

Como seus pais, Caim reage de acordo com seus padrões e não os de Deus. Como seus pais, recebe castigo, neste caso a necessidade de viver uma vida nômade e instável (4.9-14). Apesar disso Deus reage com mise­ ricórdia para com Caim, da mesma maneira como o Senhor reage com misericórdia com os pais de Caim (4.15,16). Caim tem sua família, que depois de algumas gerações gera Lameque, um homem tão violento quan­ to o próprio Caim (4.17-24). A tecnologia humana avança (4.17,21,22), mas essa engenhosidade não reduz em nada os efeitos do pecado. Em sua graça Deus substitui Abel por uma nova vida (4.25), e as pessoas apren­ dem a invocar o Senhor (4.26). Apesar disso não há o retorno à “bondade” de Gênesis 1 e 2 — nem poderia haver.

A genealogia de Gênesis 5 e o estranho relato de Gênesis 6.1-4 conclu­ em o texto que traz a descrição inicial do pecado humano e conduzem à

próxima divisão importante do livro. De Adão a Lameque a raça humana começa, gera filhos e morre (5.1-31). Os seres humanos enchem a terra com sua descendência, cumprindo o mandamento divino (1.26-31), e partilham da maldição da morte e do trabalho árduo e doloroso sobre a terra (5.29). Apesar da aparente monotonia e mesmice de criação, vida e morte, sob a superfície do texto existe um fato triste: o pecado continuar a crescer e nunca morre. Esse fato é evidente em Gênesis 6.1-4, onde o mundo parece totalmente fora de controle. Interpretações deste texto vão desde a idéia de que os versículos são basicamente mitológicos18 até a idéia de que significam que os seres humanos “envolveram-se em casamentos não santos, e o pecado logo se tornou a característica dominante da raça”.19 Todos os estudiosos concordam que a passagem demonstra a difusa peca- minosidade humana, cujas conseqüências vêm à tona em Gênesis 6.5 e o texto que segue.

Síntese canônica: pecado difuso

Quem é responsável por todo esse pecado? É fundamental concluir que o indivíduo é responsável por suas ações. Embora Deus tenha criado a ser­ pente, esta não recebeu ordens para tentar os seres humanos. Deus adver­ tiu as pessoas a não comer do fruto de uma árvore, mas a Eva e Adão faltou a fé necessária para crer no Senhor em vez de na serpente. Quando têm de crer em Deus o bastante para obedecer uma única lei, os seres humanos fracassam. Esse fracasso é, no entanto, responsabilidade exclusiva deles, visto que foram advertidos e a serpente não possuía poder algum de coer­ ção física.

Quão contínuo é esse pecado? Quão ininterrupto é? Estudiosos judeus e cristãos vêm afirmando há séculos que depois da queda de Adão e Eva os seres humanos nascem em pecado. Mas muitos pensadores têm questio­ nado essa interpretação. Embora os textos de Gênesis não façam afirma­ ções explícitas favorecendo uma interpretação ou outra, depois de Gênesis 3 nenhum ser humano evita o pecado. Ninguém é sem pecado; todos são afetados por viver no mundo pecaminoso. Por nascimento, por escolha ou por ambos, o resultado continua sendo que cada ser humano peca e sofre espiritual, física, emocional, relacional e vocacionalmente por causa desse pecado.

I8Walter A. Brueggemann, Genesis (Interpretation: a Bible commentary for teaching and preaching), p. 71-2.

Qual a importância da prevalência do pecado no restante do cânon do AT? Num sentido bem real, o restante das Escrituras trata da solução para o problema do pecado. No Pentateuco, Moisés intermedeia uma aliança que inclui sacrifícios oferecidos com fé por pecadores penitentes por seus pecados. Os Profetas Anteriores apresentam uma breve descrição de como o pecado continuado e habitual, não-contestado, gradualmente empurra Israel para a destruição. Profetas como Isaías e Jeremias lamentam estar no meio de um povo impuro (Is 6.5) e ser alguém com um coração corrompi­ do e enfermo (Jr 17.9). Isaías 13—27, Jeremias 46—51, Ezequiel 25—32, Amós 1.2—2.3 e outras passagens anunciam a pecaminosidade de todas as nações. Os salmistas declaram não haver pessoas retas (p.ex., SI 14.1-3; 53.1- 3; 140.3). Jó e Provérbios aconselham sabedoria à luz do erro e tolice huma­ nos, enquanto o restante dos Escritos descreve os efeitos do pecado nos exi­ lados de Israel (v. Ester e Daniel) e a tentativa de a nação vencer o próprio pecado (v. Eclesiastes, Ezequiel, Neemias, 1 e 2Crônicas).

Assim o pecado nunca poupa — seja uma geração, seja um único indi­ víduo. E possível que essas histórias específicas sejam recontadas não com o objetivo de explicar o motivo do implacável pecado humano, mas a par­ tir desta passagem o cânon certamente se debate com os resultados desses relatos.20 O ponto de partida, o lugar onde o pecado entra na raça huma­ na, é Gênesis 3, fato que em Romanos 5.12 Paulo realça como contraste com a obra de Cristo.