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Deus que castiga e renova: Números 13.1—2

Levítico

Deus que castiga e renova: Números 13.1—2

Situada no centro do livro, essa passagem de Números relata aconteci­ mentos que possuem trágicas implicações pessoais, históricas e teológicas. Nesses capítulos praticamente cada indivíduo do povo chamado e corrigi­ do revolta-se contra Deus e sofre as conseqüências de suas ações. Aqui nem mesmo Moisés transcende a descrença, de modo que nem mesmo esse grande líder e pensador evita castigo de dilacerar o coração. Assim mesmo Yahweh revela-se fiel às alianças abraâmica e sinaítica ao começar da estaca

zero com a geração seguinte de Israel. Tais são o propósito e a prerrogativa do Deus santo e auto-existente.

Estacionado nas imediações de Canaã, por ordem de Deus Israel envia espiões para examinar a Terra Prometida (13.1-16). Doze líderes tribais, dos quais Josué é o mais conhecido, são escolhidos para a tarefa. Recebem instruções para apresentar um relatório completo sobre Canaã (13.17-20) e fazem-no conforme determinado (13.21-27). Nenhum deles tem qual­ quer palavra negativa sobre a frutuosidade da terra. A palavra primeira, com que Deus se comprometera com Moisés, de dar a Israel “uma terra boa e vasta” parece estar na iminência de se concretizar (v. Êx 3.7-10). Yahweh tem sido fiel.

Os espiões de Israel não interpretam que a exatidão da descrição divina da terra, a obra salvadora divina no êxodo, a oferta divina da aliança ou a direção divina no deserto signifiquem que Israel pode, de fato, possuir a terra que viram. Não acreditam que o Deus que dirigiu seu passado histó­ rico seja capaz de determinar seu futuro imediato. Nessa nova situação enxergam apenas as cidades fortificadas de Canaã e os exércitos experien­ tes, facilmente esquecendo-se do Deus que afogou os carros de faraó no mar Vermelho. Desse modo, com exceção de Calebe e Josué (13.30; 14.6), os líderes aconselham o povo a permanecer no deserto em vez de atacar os cananeus (13.31-33).

É bem compreensível que as pessoas se entristeçam, mas na grande maioria acreditam no relatório em vez de na sua herança teológica (14.1- 4). Tornam a desejar que ainda fossem escravos, temem pela vida dos filhos e decidem escolher um novo líder e voltar para o Egito. Uma última vez Moisés Arão, Josué e Calebe exortam o povo a abraçar a promessa de terra (14.7), a aceitar a liderança de Yahweh (14.8), a obedecer a Deus (14.9) e a escolher fé em vez de medo (14.9). Como reação ao esforço desses líderes, o povo ameaça apedrejá-los (14.10). Chegou-se a um impasse. A fé e a obediência sumiram da maioria do povo. Resta apenas um grupo remanescente pequeno e fiel.

Yahweh resolve a situação decisivamente. Deus declara que o problema de Israel não é falta de poderio militar ou a força dos inimigos. O proble­ ma deles é o desprezo para com Deus, alimentado apesar de tudo o que o Senhor tem feito por eles (14.10-12). As demais motivações são secundá­ rias. John Sailhamer comenta:

o povo com certeza fracassou em muitos aspectos, mas o escritor apon­ ta especificamente para o fracasso de crer em Deus e esforça-se por extrair lições. Desse modo essa passagem quer mostrar que o povo

fracassou em herdar a Terra Prom etida e, por esse m otivo, m orreu no deserto sem herdar a bênção, não tanto por um ato específico de deso­ bediên cia ou por m edo das batalhas por travar, m as sim pelo sim ples ato de sua descrença. Fracassaram em confiar em D eu s.16

Devido à descrença deles, o Senhor renova a promessa, feita pela pri­ meira vez durante o incidente do bezerro de ouro, de destruir Israel e de fazer uma grande nação a partir de Moisés (14.12; v. Ex 32.9,10). Como no episódio anterior, com base em seu amor por Israel e em sua preocupa­ ção com a reputação de Yahweh, Moisés rejeita a idéia (14.13-16; v. Ex 32.11-14). Moisés também repete a auto-revelação de Deus encontra­ da em Êxodo 34.6,7, ressaltando a paciência, o amor, o perdão e a justiça de Yahweh, e então pede que Israel seja poupado (14.17-19). Uma vez mais Yahweh cede, mas desta vez Deus decide mesmo começar tudo de novo com uma nova geração, embora nem todos sejam descendentes de Moisés. Israel não possuirá Canaã até que passem quarenta anos desde o êxodo e até que, com exceção de Josué e Calebe, morram todas as pessoas de vinte anos para cima ou com idade para lutar (14.20-34; v. Nm 1.5- 46). Os israelitas aprenderão a sinistra lição do que significa ter Deus como inimigo (14.34). Ademais, os dez espiões que não tiveram fé morre­ rão imediatamente, mas Josué e Calebe viverão para habitar na Terra Pro­ metida (14.34-38). Tardiamente, Israel parte para a guerra. É tarde de­ mais para mudar sua maneira de pensar, e o povo sofre uma derrota humi­ lhante (14.39-45).

A ira de Deus atinge o âmago de todo pecado, a saber, a incredulidade. Durante um período de 38 anos Yahweh remove cada pessoa responsável por esse fiasco. Deus recomeça em Números 15 exatamente como no mo­ mento do chamado a Abrão para sair de Ur, pois aqui Deus oferece leis relacionadas à posse da terra (v. esp. Nm 15.2). Wenham assevera que essas leis abordam os temas principais de Levítico e demonstram que

... sua in cred u lid ad e [de Israel], foi focalizada na h istó ria dos espias, não an u lo u estas prom essas do pacto. U m arrependim ento de todo o coração e a oferta de sacrifícios podem restaurá-los a u m a posição em que eles podem experim entar plenam ente a bênção de D eus.17

A descrença não é uma doença transmitida geneticamente. A fé da geração seguinte pode ultrapassar a dos predecessores.

u'The P entateuch as narrative, p. 388.

É notável que Israel continue a se revoltar mesmo depois da ira do Senhor em Números 14 e as promessas renovadas em Números 15. Uma coalizão de levitas e líderes comunitários seculares opõe-se a Miriã e Arão com o objetivo de conquistar a posição de sumo sacerdote para Coré, que não é um filho de Arão (16.1-3). Ao que parece, esse grupo encara o papel do sumo sacerdote mais como um cargo de destaque do que como um ministério teológico dedicado à proclamaão da santidade de Deus. Deus afasta os rebeldes (16.4-40), o que leva a comunidade a acusar Moisés de matar o povo de Deus (16.41)! Yahweh responde a essa insolência, envi­ ando uma praga (16.42-50), ressaltando de forma marcante o chamado de Arão para ser sumo sacerdote (17.1-13), reafirmando os deveres dos sacerdotes e levitas (18.1-32) e enfatizando o valor da pureza ritual (19.1- 22). O chamado de Moisés, o chamado de Arão e a permanência dos mandamentos do Sinai — tudo isso é assim reafirmado. As revoltas de Israel não alteram os planos de Deus, a aliança de Yahweh ou o caráter pessoal de Yahweh. Para Israel tudo o que a revolta alcança é o fim terrível de miséria e morte.

Sem dúvida as revoltas de Números 13 e 14 e 16 têm origens trágicas e conseqüências horríveis. A incredulidade de Israel e a desobediência re­ sultante custam caro. Embora tenham sido chamados a constituir o povo de Deus, incorrem na ira de Deus. Nem mesmo o povo escolhido pode negligenciar a instrução de Yahweh e escapar ileso. Números 20.1-13 prova que nem mesmo o próprio Moisés pode desobedecer a Deus sem pagar um preço espiritual, físico e emocional.

Números 20 começa anunciando a morte de Miriã (20.1) e em segui­ da conta uma situação conhecida. Israel precisa de água, quer morrer, odeia o deserto (20.2-5). Moisés e Arão recebem de Yahweh instruções específi­ cas para falar a uma rocha, da qual sairá água para atender à necessidade de Israel. Mas, ao contrário do que lhe foi ordenado, Moisés faz duas coisas que não lhe são características. Primeiro, em vez de dar crédito a Yahweh pelo milagre, ele pergunta se ele e Arão devem dar-lhes água (20.10). Segundo, ele não fala com a rocha, mas fere-a (20. II ).18 A água flui da rocha, mas Moisés não honrou a Deus no seu coração, pois deixou de obedecer ao Se­ nhor, nem glorificou a Deus na presença do povo, pois deixou de atribuir todo o poder miraculoso a Yahweh. Deus diz que Moisés não confiou em Deus e não levou Israel a entender a santidade divina.19

,8Jacob Milgrom, Numbers, p. 454. I9Cf. Harrison, N umbers, p. 267.