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Plano do capítulo

3.2 Mudança de paradigma no contexto das marcas

3.2.1 Do conceito ‘moderno’ de marca…

No princípio “a marca é o produto” (Goodyear, 1999, s.p.; Grassl, 1999, p. 316). Grassl (1999, p. 316.) descreve esta ideia de marca como um “subconjunto de uma determinada categoria de produtos”, e Levitt (1980, p. 83) como “produto genérico”. Nesta fase, a marca está profundamente associada ao ‘real’ (alguns preferirão a designação ‘material’ ou ‘físico’) se bem que de uma forma acrítica. A ‘marca equivalente a produto’ é um conceito ‘uno’ (não dual), mas não holístico. Em face da abordagem holística, este conceito de marca é ‘uno’, mas ainda pouco ‘diferenciado’ (como uma criança em comparação com um adulto individuado). As definições de marca como instrumento legal, logo e organização (versão clássica), traduzem esta visão da marca fundamentalmente como indicador de origem. Com o tempo, o conceito de marca irá afastar-se do produto tangível e ‘autonomizar-se’ em torno dos seus

intangíveis. Nesta caminhada a marca irá enfrentar o desafio do dualismo (a separação produto/símbolos), surgindo ao longo do tempo como um produto cada vez mais

‘aumentado’, na perspectiva de Levitt (1980), mas também cada vez mais dividido entre o ‘produto material’ e o ‘símbolo ideal’. Neste processo, a participação do consumidor é ainda reduzida pois, não obstante este ser ‘ouvido’, a marca é fundamentalmente o resultado de elaboração por parte do fabricante.

Segundo uma visão popular nos anos 80, as marcas resultam da aplicação de ferramentas de marketing, em particular de publicidade, usadas de forma a influenciar a

percepção do consumidor. Levitt (1980), por exemplo, preconizava que o instrumento mais poderoso de criação de vantagem competitiva consistia no modo como as

organizações geriam o seu marketing, salientando as virtualidades da gestão desenvolvida a partir de acrescentos ao produto, em oposição à gestão meramente funcional característica das décadas anteriores. Com base em investigação publicitária ainda fortemente vinculada à teoria comportamentalista, o fabricante esforça-se por induzir a aprendizagem de hábitos ou a satisfação de necessidades a um consumidor fundamentalmente passivo. A marca como produto acrescentado traduz esta

perspectiva. Neste contexto as marcas são apreendidas pelos consumidores,

essencialmente, como facilitadoras da decisão de compra enquanto redutoras de risco.

Progressivamente, o significado simbólico das marcas irá sendo apreendido pelos consumidores no seu processo de socialização, sendo as marcas usadas como

mecanismos não verbais de comunicação (pensamentos, sentimentos, status) (De

Chernatony e McWilliam, 1989a). Nesta fase, as marcas são descritas como “vivendo na mente dos consumidores” ou como entidades que “representam o tipo de vida que se leva” (Hanby, 1999, p. 10). As definições de marca como unidade de informação, sistema de valores ou imagem traduzem esta a visão idealista do conceito. Esta perspectiva, embora assuma tacitamente a existência de um substrato que é

transformado em algo mais, concebe a marca como aquilo que acresce a este substrato, ou seja, como muito mais do que um mero indicador de origem.

Evoluindo a partir do pensamento de teóricos como Levitt (1980), a gestão idealista das marcas recusa a sua definição com base em quaisquer características funcionais do produto, sustentando que os aspectos que efectivamente a distinguem da concorrência estão para além do produto genérico. Em vez de definirem as marcas no âmbito do espaço do produto, os idealistas propõem definições operacionais e ‘accionáveis’, com base no pressuposto de que não são os benefícios genéricos do produto que interessam aos consumidores (e.g. ‘transporte’ no caso dos automóveis), mas os seus benefícios adicionais (e.g. estilo, imagem ou reconhecimento social) (Grassl, 1999). Sob esta influência, as marcas irão surgir como construções teóricas, muito para além das características físicas do produto, fundadas em elementos intangíveis percepcionados pelos consumidores a partir das acções de marketing desenvolvidas pelas empresas. A

este propósito Levitt (1980) sustentava que qualquer produto pode ser diferenciado, porquanto ser marca significa ser conhecida ou percepcionada como marca ou ter sido engendrada como tal, não havendo limites para esta manipulação. Os idealistas

defendem a origem mental das marcas partilhando com Searle (1995, p. 28) a crença de que o “contar como” constitui a essência da realidade social. Para este autor (op. cit.) regras do tipo “X conta como Y no contexto C” são constitutivas da realidade social, do mesmo modo que as regras do xadrez são definidoras do jogo. Neste contexto, o facto de um produto X contar como uma marca Y no contexto de um mercado C constitui a única realidade que interessaria ao branding.

A concepção idealista da marca representa um passo gigantesco relativamente à visão da marca como produto/indicador de origem, visto reconhecer a forma como os múltiplos mecanismos do marketing se integram na mente do consumidor para formar a ‘marca’. Não obstante, na perspectiva de Grassl (1999) esta definição apresenta também alguns problemas. Em primeiro lugar, Grassl (op. cit.) associa a esta visão da marca as desvantagens de se tratar de um chunk. Entendido como um constructo que reúne em torno do nome da marca o resultado de múltiplas actividades do marketing (chunk), este conceito não introduz eficácia no plano da gestão, pois não habilita o marketer para decidir que atributos em particular devem ser desenvolvidos e associados ao nome. Em segundo lugar, no caso de alguns produtos (como o leite ou o pão) é comum verificar-se uma certa apatia do consumidor relativamente às marcas, não estando a maior

relevância de algumas marcas (e.g. Perrier) necessariamente relacionada com qualquer vantagem competitiva. Em terceiro lugar, esta definição não é susceptível de explicar a existência de marcas (ou categorias de produtos) ‘naturais’, tais como o vinho do Porto, o champanhe, o cognac ou o queijo da serra, já que nestes casos os nomes das marcas não surgem como resultado de acções de branding. Em quarto lugar, alguns produtos mantêm o seu valor de marca, mesmo quando eliminado o ‘emblema’. O valor dos pólos Lacoste ou dos relógios Rolex é superior às suas imitações, mesmo depois de suprimida a ‘marca’, porque esta ‘está presente’ mesmo quando não pode ser vista (Kapferer, 2005). Este fenómeno mostra como até mesmo a antiga presença de uma marca é, de alguma forma, susceptível de transformar um produto, mostrando ao mesmo tempo como não é possível reduzir uma marca a um sinal, como um nome ou uma

etiqueta. Em quinto lugar, em alguns casos a marca reside exclusivamente no design dos produtos. Por exemplo, a marca Swatch usa o design para diferenciar a sua gama de relógios altamente estilizada. O design é, portanto, condição necessária para ser um Swatch, sendo a marca registada condição suficiente. No entanto, a marca não pode ser reduzida nem à percepção do consumidor nem à marca registada. Por último, a visão idealista conduz à assunção de que a diferenciação dos produtos é induzida ou criada pelo marketing mix e, particularmente, pela publicidade. Ora, se as marcas fossem diferenciáveis unicamente a partir de características acidentais, seria possível criar marcas ad libitum. No entanto, a investigação tem demonstrado que independentemente do marketing mix nem todos os produtos são susceptíveis de ser transformados em marcas. Os insucessos são numerosos, e a publicidade não é a panaceia universal que é acusada de ser por muitos dos seus críticos. Na perspectiva de Grassl (1999), o sucesso de uma marca depende de condições ancoradas em estruturas da realidade. Na mesma linha de pensamento, Ries e Ries (1998), por exemplo, postularam a existência de “leis imutáveis do branding”, algumas das quais ancoradas em estruturas da psicologia da percepção e da psicologia cognitiva, outras dependentes da gestão estratégica do produto – em ambos os casos, estruturas reais.

Na figura 3.1 é apresentada uma representação gráfica do conceito ‘moderno’ de marca. Tendo como referencial os três agentes intervenientes na definição do conceito – Fabricante/Produto material, Sociedade/Símbolo ideal e Consumidor/Auto-imagem – o espaço conceptual da marca ‘moderna’ pode ser representado pelo triângulo em

destaque. Dependendo, no entanto, da importância relativa de cada agente, assim o conceito irá ocupar ‘lugares’ relativamente diferenciados no espaço geométrico

delimitado por este triângulo. No princípio a marca confunde-se com o produto (vértice inferior esquerdo4), não passando de um mero indicador de origem (uma marca

registada, um logo, uma organização) susceptível de identificar o produto e distingui-lo de outros produtos da mesma categoria. Nesta fase, a perspectiva em relação às marcas é realista e determinista. Realista, em virtude de as marcas constituírem estruturas rígidas, tangíveis e relativamente imutáveis que existem e actuam independentemente da

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Por simplificação de linguagem usaremos as designações ‘vie’ para referir o vértice inferior esquerdo do triângulo, ‘vid’ para referir o vértice inferior direito e ‘vse’ para referir o vértice superior esquerdo.

percepção do consumidor. Neste contexto o significado das marcas é obviamente independente do consumidor. Determinista, em virtude de os comportamentos de consumo serem consequência de estímulos ambientais. Neste contexto o mundo impõe- se à consciência do indivíduo de ‘fora para dentro’ (Hudson, 1986). Os fabricantes em particular esforçam-se por induzir hábitos e comportamentos a uma massa de

consumidores fundamentalmente passivos.

Figura 3.1

O espaço conceptual da marca ‘moderna’

idealismo realismo Consumidor Auto- imagem Sociedade Símbolo ideal Fabricante Produto material MARCA ‘MODERNA’

Porém, em face do aumento da concorrência, que se traduz em maior liberdade de escolha para os consumidores, o fabricante irá cada vez mais ‘ouvir’ o consumidor, tornando-se o conceito de marca mais subjectivo (vid). As definições de marca como produto acrescentado ou como redutor de risco pertencem já a esta fase. Com o tempo, o conceito irá entretanto afastar-se dos seus aspectos tangíveis, deixando de ser o ‘produto’, com atributos e acrescentos, para se transformar na ‘marca’ em si, e nos seus benefícios para o consumidor. Nesta fase as marcas (já só) “vivem na mente dos

Definições de marca como unidade de informação, sistema de valores ou imagem traduzem esta a visão idealista do conceito. Tendo iniciado o seu percurso no terreno dos ‘factos’ (vie), a marca moderna entra neste estádio no território das ‘metáforas’ (vse). Na primeira fase deste percurso (vie), a razão de ser das marcas prende-se exclusivamente com o fabricante. Ao longo do eixo vid-vse, a sua razão de ser é

explícita (vid) ou implicitamente (vse) a satisfação do consumidor; porém, não obstante as marcas poderem surgir como produtos acrescentados susceptíveis de dar resposta aos anseios dos consumidores (vid), ou como protagonistas na vida do consumidor (vse), o fabricante reserva-se ainda o papel de intérprete fundamental daqueles anseios e estilos de vida (idealizados ou aspiracionais). Neste sentido pode dizer-se que o conceito ‘moderno’ de marca resulta fundamentalmente de um ‘monólogo’ do fabricante.

3.2.2 … ao conceito ‘pós-moderno’ de marca

Comprometida com uma visão relativista do mundo, menos rígida e mais complexa do que a defendida pela definição positivista da AMA (Hirschman, 1986; Peter, 1992; Peter e Olsen, 1983), uma nova visão de marca irá emergir a partir do princípio dos anos 80 do século passado. Em boa verdade, quase dez anos antes, King (1973, 1970, ap. Hanby, 1999, ap. Ruão, 2006, 2003) tinha já declarado que uma marca não podia ser reduzida a um simples conjunto de acrescentos ao produto. Na concepção do autor (op. cit.), uma marca era uma entidade complexa ‘construída’ pelos consumidores com base na sua experiência com o produto. Alguns anos mais tarde, Lannon e Cooper (1983, ap. Hanby, 1999) vêm afirmar que o que torna um produto numa marca é uma combinação de produto físico com algo mais – símbolos, imagens, sentimentos – que se traduz numa ideia que representa mais do que a soma das suas partes. Produto e símbolos convivem e crescem numa relação de proveito mútuo, ou seja, uma relação simbiótica.

Com efeito, de acordo com o prenúncio daqueles autores o conceito de marca irá evoluir para se tornar mais inclusivo. Neste novo contexto, a marca é percepcionada como uma combinação do produto físico e símbolos, imagens e sentimentos, construída a partir da experiência de consumo dos indivíduos. Uma linguagem holística e orgânica, que recorre a termos como ‘entidade viva’, ‘personalidade’ ou ‘simbiose’, começa a emergir na literatura dedicada à marca (Hanby, 1999), num processo natural de

antropomorfismo gnosiológico resultante da incapacidade natural de apreender o conceito sem o subjectivizar. A este propósito, Hanby (1999) chama a atenção para a mudança na metáfora de marca que acompanha a mudança de paradigma: a visão clássica percebe a marca como um artefacto sem vida facilmente manipulável; a pós- moderna, como uma entidade viva.

A concepção holística das marcas, entendida como a de um todo que excede a soma das suas partes, explica o fenómeno da brand equity – o valor da marca excede a soma dos valores dos seus aspectos tangíveis. Em particular, a inclusão ou exclusão do valor do próprio produto, não sendo este despiciendo, tem obviamente repercussões ao nível da brand equity. Alguns autores mais preocupados com as implicações do conceito de marca ao nível da sua valorização, como por exemplo Ambler (1996), irão

fundamentalmente debater a questão da inclusão versus exclusão do produto,

distinguindo neste âmbito entre abordagem holística (produto incluído) e não holística (produto excluído). Esta constitui, não obstante a sua relevância para o cálculo da brand equity, uma perspectiva trivial de holismo aplicado às marcas. Desenvolvimentos mais profundos se seguirão; a saber:

i) Grassl (1999) aprofunda a hipótese holística das marcas, elaborando uma ontologia das marcas (i.e. a realidade das marcas em si) com fundamentos num realismo sistémico/ecológico à escala mesoscópica. A realidade de todos os dias, também designada por realidade de senso comum, da qual os produtos e as marcas fazem parte, é feita de objectos à ‘nossa’ escala. As leis e as técnicas da física são frequentemente usadas para explicar as propriedades deste mundo ‘mesoscópico’, com base na compreensão das correspondentes estruturas ‘microscópicas’ (a física da cor é um exemplo). Porém, na maior parte dos casos, a relação entre o mundo mesoscópico e o mundo microscópico escapa à nossa compreensão, o que põe obviamente em causa a validade da física como ciência da realidade. Neste contexto, pensadores como o psicólogo ecológico J.J. Gibson vêm propor uma abordagem alternativa, fundamentada num modelo de percepção directa da realidade à escala mesoscópica Smith (1995).

ii) Antes porém, outros autores irão sobretudo discutir a concepção filosófica do marketing, com repercussões óbvias na epistemologia das marcas (i.e. o conhecimento das marcas), num confronto entre a hipótese realista (moderna) e a hipótese

relativista/construtivista (pós-moderna). A partir de 1983 esta polémica irá ser enriquecida pelo debate entre Hunt (1994, 1992a, 1992b, 1991, 1990, 1989, 1984), a favor de uma visão realista (realismo crítico), e Anderson (1986, 1983), a favor de uma visão relativista (relativismo crítico).

iii) Mais de dez anos após o início das ‘hostilidades’ entre Hunt e Anderson, autores como Zinkhan e Hirschheim (1992) e Kavanagh (1994) virão propor uma saída para este confronto na forma da hipótese do realismo científico, na versão do filósofo contemporâneo Roy Bhaskar.

De facto, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, podem identificar-se (pelo menos) quatro perspectivas filosóficas de enquadramento teórico do conceito de marca; a saber: i) a perspectiva realista, próxima da visão clássica; ii) a perspectiva

relativista/construtivista, a que melhor representa a epistemologia construtivista pós- moderna; iii) a perspectiva do realismo científico5, uma saída para a clivagem entre o realismo e o relativismo/construtivismo; iv) a perspectiva sistémica do realismo ecológico, em rigor uma abordagem que deve ser considerada já como ‘pós-pós-

moderna’. Tendo como objectivo substanciar o quadro teórico do nosso próprio modelo de análise, as quatro abordagens são delineadas em seguida ao longo de três secções:

3.3 O debate realismo versus relativismo/construtivismo