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O realismo sistémico/ecológico 3.6 Resumo das posições

Plano do capítulo

3.5 O realismo sistémico/ecológico 3.6 Resumo das posições

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Alguns cenários apresentados neste capítulo referem-se a condições que vão para além do pós- modernismo no sentido estrito do relativismo/construtivismo. Quando necessário faremos referência a estes cenários como ‘pós-pós-modernos’. Porém, por simplificação de linguagem, utilizamos

Implicações no conceito de marca

3.1 Introdução

A expressão mudança de paradigma foi originalmente usada por Khun (1962) para descrever a ruptura com a matriz disciplinar ou, dito de outro modo, com ‘a forma de fazer ciência’, vigente numa determinada época. Segundo o autor (op. cit.), a ruptura surge da acumulação de anomalias e problemas que não sendo resolvidos por um paradigma o vão debilitando nos seus próprios fundamentos, abrindo espaço para um período de crise que só encontra o seu termo quando um novo paradigma é adoptado. Na sua visão particular, Wilber (2004) sustenta, a este propósito, que um novo

paradigma não traz de facto novas formas de ver um mundo único e preexistente, mas sim novas mundividências que vão surgindo à medida que o homem se conhece melhor a si próprio. Diferentes mundividências promulgam mundos diferentes, não constituindo apenas o mesmo mundo visto de formas diferentes. Segundo o autor (op. cit.), as

mudanças de paradigma decorrem da evolução da própria consciência, pois à medida que se revelam e desenvolvem novas capacidades cognitivas, o homem não só olha para si mesmo com olhos diferentes, como vê coisas diferentes. Independentemente da profundidade da mudança, sobretudo epistemológica conforme Khun (1962), ou também ontológica conforme Wilber (2004) e Harman (1996), num aspecto as duas perspectivas tocam-se: a história da ciência não é contínua, podendo ao longo da sua evolução encontrar-se alguns destes ‘saltos qualitativos’ ou mudanças de paradigma. Por exemplo, com raízes na filosofia pré-socrática, o pensamento geocêntrico

(ptolemaico) que sustentava que a terra era o centro do universo irá dominar a ciência até ao final da idade média, tendo dado origem a uma vasta produção intelectual coerente com esta visão do mundo. Contudo, no século XVI, esta visão é posta em causa pela teoria heliocêntrica de Copérnico (1473-1543), ainda que venham a ser as observações telescópicas levadas a cabo por Galileu (1564-1642) somente no século seguinte a destronar o sistema ptolemaico e a substituí-lo pelo sistema heliocêntrico (copernicano). Este modelo, percebido por sua vez como imperfeito em resultado dos avanços da astronomia, virá a ser aperfeiçoado já no século XVII após a descoberta da força de gravitação universal de Newton (1642-1727). Em particular, o ano de 1543, data da publicação da obra seminal de Copérnico1 e, por coincidência, o ano da sua morte, constitui um marco de particular importância neste continuum, assinalando o início da grande revolução científica que irá eclodir, sob o impulso de Bacon (1561- 1626) e Descartes (1596-1650), entre outros, na grande revolução do Iluminismo.

3.1.1 O modernismo

Independentemente dos seus efeitos, qualquer fase do pensamento científico é bem sucedida durante um período mais ou menos prolongado de tempo, propondo novas perspectivas para a compreensão da realidade física, e condicionando a atitude científica em função dos critérios de pesquisa do paradigma vigente. Neste sentido, o Iluminismo foi importante por ter aprofundado muitas das ideias da Renascença, mas também por dele terem surgido algumas ideias originais e importantes para o Humanismo.

Caracterizado pelo primado da ciência e da razão como forma de explicar o universo, e pela crença no progresso cultural e tecnológico, o desenvolvimento alcançado pela ciência sob a influência do Iluminismo irá implicar a perda do ‘controlo do

conhecimento’ por parte da igreja. Em resultado desta revolução, a ciência deixa de ser vista como um dos ramos da árvore do conhecimento para se tornar na única via para a ‘verdade’, abolindo credos religiosos e relativizando outras áreas do conhecimento. Porém, ao longo dos últimos três séculos, não só a ciência funcionou com base nos mesmos (ou quase) fundamentos iluministas, como se assumiu serem estes os únicos alicerces sobre os quais o desenvolvimento científico pode e deve ser edificado. Estes

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fundamentos, reunidos num conjunto de procedimentos designado por método científico (surgido no Renascimento e usado pela ciência até aos nossos dias), pressupõem a preexistência de um mundo único que pode ser ‘cartografado’ através do método

empírico. O paradigma fundamental do iluminismo, o paradigma representativo2, parte da ideia de que se tem o sujeito (o “cartógrafo”) de um lado e o mundo sensível do outro, consistindo o conhecimento na elaboração de mapas do mundo empírico, simples, preexistente e único. Se o mapa estiver correcto, se representar correctamente o mundo empírico, ou lhe corresponder, é “verdadeiro” (Wilber, 2004). Sob o impulso de uma burguesia economicamente emergente em rota para a industrialização, a racionalidade das ciências naturais irá conquistar reconhecimento crescente em virtude de prometer desvendar as leis naturais do mundo físico (e posteriormente até mesmo do social), tornando possível a previsão e o controlo dos acontecimentos (naturais e económicos). Este avanços irão dar-se, contudo, a duras penas do homem e do meio ambiente. Não sendo suposto o analista identificar-se subjectivamente com o objecto da análise, a relação que se estabelece entre sujeito e objecto é de separação. Neste contexto,

‘conhecer’ significa possuir, a fim de controlar, sendo a atitude do homem relativamente ao ‘outro’ fundamentalmente defensiva e agressiva, ou seja, de oposição. Os objectos são domináveis e, consequentemente, manipuláveis. A realidade idealizada é mecânica, determinística, material e, por analogia, o universo é percepcionado como um todo fragmentável em partes conectáveis de modo preciso.

As raízes do pensamento Iluminista são profundas; porém, quatro séculos após a emergência da revolução científica, a insuficiência do modelo modernista está à vista. Independentemente dos objectivos úteis e extraordinários que serviu (Wilber, 2004) (e.g. a ascensão da democracia, a abolição da escravatura, a emergência do feminismo liberal, a emergência generalizada das ciências empíricas, o aumento do tempo médio de vida), a herança modernista é devastadora para as pessoas e para o meio ambiente, estando na origem dos problemas globais que hoje afectam a vida humana e a biosfera. “O mal estar em face de cenários como o excesso de especialização, a ‘coisificação’ da natureza, a ênfase no racionalismo e na objectividade, a desvinculação dos valores

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Outras designações usadas são: paradigma moderno, newtoniano, cartesiano, mecanicista, do espelho da natureza ou da reflexão (Wilber, 2004).

humanistas, a abordagem comercial na exploração da natureza, a ideologia do consumismo desenfreado, filosoficamente fundamentados numa pretensa visão

‘científica’ de um universo mecanicista tem, no entanto, levado ao desenvolvimento de um diálogo entre pessoas, grupos interdisciplinares, países e organizações (como a ONU ou a UNESCO)”, como refere Guimarães (2002, s.p.). Esta demanda de uma visão de conjunto, uma visão do todo (possuidor de características próprias diferentes das características das suas partes constituintes) está na génese da emergência de um novo modelo de relação com o ‘outro’. Por esta razão a ruptura com o paradigma moderno é também uma questão ética e política, para além obviamente de uma questão

epistemológica. No que se refere à questão relacional, as propostas têm vindo dos sectores que defendem o modelo ecológico-holístico e, no que respeita à epistemológica, dos teóricos do construtivismo. Outros, como Wilber (2004), preconizam uma

abordagem integral, susceptível de abarcar as anteriores. Muito simplificadamente, estas são as linhas com que se tece o pós-modernismo.

3.1.2 O pós-modernismo

Perto do final da sua carreira, o Nobel da química Erwin Schrödinger terá afirmado (Schaefer III, 2004, p. 21): “O quadro científico do mundo à nossa volta é muito

deficiente. Faculta grandes quantidades de informação factual, organiza a totalidade das nossas experiências de uma forma maravilhosamente consistente, mas mantém um silêncio chocante sobre o que se passa nos nossos corações, e que é de facto importante na nossa vida.” O cientista acreditava nos limites da ciência, na incapacidade da ciência nos ajudar a compreender temas como o belo e o feio, o bem e o mal, Deus e a

eternidade. Segundo Schrödinger, embora a ciência pretenda por vezes responder a questões desta natureza, as respostas são frequentemente tão tolas que acabamos por não levá-las a sério.

3.1.2.1 A perspectiva ontológica holística/sistémica e ecológica

Na verdade, as palavras de Schrödinger não reflectem senão a intuição generalizada de que a janela científica permite ver apenas uma ínfima parte da realidade, intuição que tem estimulado a procura de um modelo mais humano, fundado numa visão ecológica e

holística da realidade. Segundo Capra (1997), a ciência necessita urgentemente de uma ética ecológica (ecoética), uma vez que grande parte da produção científica não actua no sentido da promoção e da preservação da vida, mas no sentido da sua destruição. Uma das heranças da modernidade consiste em pensar nos factos científicos e tecnológicos separadamente dos valores humanos, quando na realidade os valores constituem os seus alicerces e força motriz. A produção científica e tecnológica espelha os valores de quem a produz e, por maioria de razão, um paradigma científico, reflecte os valores de toda uma comunidade científica, intelectual e moralmente responsável pelo trabalho que leva a cabo. Na visão de Capra (1997), a natureza e o homem são um só, emergindo os factos científicos de uma constelação de percepções, valores e acções humanas da qual são indissociáveis3. Efectivamente, quanto mais estudamos os grandes problemas da nossa época, mais somos levados a perceber que estes problemas são sistémicos, ou seja, estão interconectados e são interdependentes, não podendo ser entendidos isoladamente, razão pela qual a sua solução requer uma mudança profunda na nossa percepção, pensamento e valores, uma mudança de paradigma tão radical quanto o foi a revolução copernicana. Como nos diz Guimarães (2002), o novo paradigma ecológico-holístico baseia-se no conceito de relação, mais amplo do que o conceito de análise subjacente ao pensamento moderno. Neste contexto, já não são somente as partes constituintes de um objecto que são importantes para a compreensão da sua natureza, mas o modo como se expressa o seu todo (perspectiva holística/sistémica) e como o todo se insere no seu meio

(perspectiva ecológica). As características das partes são importantes, mas o todo possui frequentemente características que vão para além da soma das características das partes. Por exemplo, o hidrogénio e o oxigénio são ambos constituintes fundamentais do processo de combustão, mas se forem combinados de forma a produzir água, esta já só pode ser usada no combate à combustão. O todo não elimina as características das partes, mas as relações entre as partes geram o substrato de uma nova forma, cujas características transcendem as das partes constituintes. Enquanto o mecanicismo

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Segundo Capra (1997), a ecologia profunda reconhece o valor intrínseco dos seres vivos, concebendo os seres humanos como um fio particular na teia da vida e, em última análise, a percepção da ecologia profunda como a percepção espiritual ou religiosa. Se o espírito humano for concebido como o modo de consciência em que o indivíduo tem uma sensação de pertença e de ligação com o cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda, não sendo de surpreender o facto de esta visão da realidade ser consistente com a chamada filosofia perene das tradições espirituais.

reducionista do paradigma newtoniano-cartesiano vê o universo como uma imensa máquina determinística (a partir da análise), a abordagem holística/sistémica, sem negar a componente ‘mecânica’ da natureza, percebe o universo como uma rede de relações dinâmicas (a partir da síntese).

3.1.2.2 A perspectiva epistemológica relativista/construtivista

Na perspectiva de Wilber (2004), a principal lição do pós-modernismo não se confina contudo à solução ecológica-holística, preferindo o autor destacar o papel e influência do observador no processo de produção do conhecimento – a morte do mito da objectividade modernista. Nas palavras de Wilber (2004, p. 55), “o

observador/sujeito, situado em determinado momento dos seus próprios contextos e correntes de desenvolvimento, da sua história e do seu processo evolutivo, oferece do mundo imagens que em grande medida dependem não tanto do mundo como da sua própria biografia”. Para o autor, a grande descoberta pós-moderna consiste na

descoberta de que nem o ‘eu’, nem o ‘mundo’, são preexistentes, existindo de facto em contextos e passados com história e evolução. A realidade não é única e os seres humanos não se confrontam com realidades iguais ou sequer parecidas. Em face deste cenário impõe-se uma epistemologia de ‘realidades abertas’ em que os sujeitos se mantenham em estado hermenêutico, como ‘aprendizes da realidade’. Os princípios básicos desta nova epistemologia são dois: i) o conhecimento não é recebido

passivamente através dos sentidos, mas antes construído activamente pelo sujeito cognoscente; ii) a função do conhecimento é adaptativa, estando ao serviço da organização do mundo experiencial do sujeito, e não da descoberta de uma realidade ontológica objectiva. A abordagem epistemológica relativista/construtivista realça o facto de o conhecimento ser limitado, já que se trata de construção, esboço e tentativa de aproximação à verdade, mantendo-se os observadores em estado hermenêutico ou de descoberta contínua da realidade, visto as experiências de aprendizagem jamais

poderem ser consideradas como saberes definitivos, totalmente delimitados e adquiridos.

Traçado o quadro geral do pós-modernismo, e definidas as principais condições da pós-modernidade – a abordagem relativista/construtivista e a abordagem

holística/sistémica e ecológica, a primeira fundamentalmente epistemológica (i.e. do conhecimento da realidade), a segunda fundamentalmente ontológica (i.e. da realidade em si) – iremos aprofundar em seguida os seus efeitos em termos da concepção de marca. Para tal, começamos por resumir as principais características dos conceitos ‘moderno’ e ‘pós-moderno’ de marca, para nos determos em seguida na descrição das abordagens filosóficas que explícita ou implicitamente enquadram o debate do

‘marketing como ciência’ que animou o meio académico e profissional ao longo dos últimos vinte e cinco anos.