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O debate realismo versus relativismo/construtivismo

Plano do capítulo

3.3 O debate realismo versus relativismo/construtivismo

3.4 O realismo científico

3.5 O realismo sistémico/ecológico

3.3 O debate realismo versus relativismo/construtivismo

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Na perspectiva realista de Hunt (1994, 1990), o objectivo da ciência consiste na produção de conhecimento válido a partir da evidência empírica, entendido

conhecimento válido como ‘generalizações’ (leis, princípios e teorias) susceptíveis de

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Embora Hunt (1990) designe o ‘seu’ realismo como científico, reservamos o termo para a proposta com o mesmo nome de Zinkhan e Hirschheim (1992), designando o realismo científico de Hunt por ‘realismo crítico’ ou, quando não houver risco de confusão, simplesmente por ‘realismo’.

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Em virtude das posições dos contendores ter evoluído ao longo de mais de dez anos, as perspectivas reproduzidas referem-se às derradeiras versões.

descrever, explicar e predizer o funcionamento do mundo exterior. Contudo, não obstante admitir que é através dos nossos processos perceptuais que geramos

conhecimento válido acerca do mundo exterior, Hunt (1994, 1990) argumenta a favor de um realismo falibilístico e crítico, rejeitando enfaticamente o realismo ‘directo’,

segundo o qual a evidência da realidade é resultado directo da nossa percepção. Neste sentido, o realismo crítico de Hunt afasta-se do realismo clássico, aproximando-se da posição relativista. Contrariamente porém à posição relativista, a perspectiva crítica de Hunt repousa no método científico por forma a garantir a qualidade dos processos perceptuais (medições), a distinguir o real do ilusório e a melhorar a nossa descrição e compreensão do mundo exterior. Segundo Malhotra (1994, s.p.), no contexto do

realismo crítico, “afirmar que uma proposição é verdadeira não significa dizer que esta está certa, mas sim que o mundo é conforme a afirmação”.

Na figura 3.2 (Peter, 1992, p. 73) é representada graficamente a perspectiva realista de Hunt (1994, 1990).

Figura 3.2

A perspectiva realista da ciência

Mundo exterior

Adaptada de Peter (1992, p. 73).

A visão de Hunt (1994, 1990) é resumida pelo próprio em quatro pontos: i) existe um mundo exterior que é independente das representações que dele fazemos (realismo clássico); ii) é tarefa da ciência desenvolver conhecimento válido acerca desse mundo, pese embora a certeza possa estar fora do nosso alcance (realismo falibilístico); iii) todo o conhecimento deve ser testado e avaliado por forma a determinar em que medida

Testes e avaliação científica

Conhecimento válido

verdadeiramente representa ou corresponde àquele mundo (realismo crítico); iv) o sucesso de teorias com provas dadas desde há muito é razão suficiente para acreditar que as entidades postuladas por estas teorias e a sua estrutura de relações existem, ou seja, verdadeiramente representam ou correspondem a uma realidade exterior ao investigador (Hunt, 1994, 1990).

Na perspectiva relativista/construtivista de Anderson (1992), esta visão da ciência, aparentemente plausível e convidativa, que se presume capaz de validar o

conhecimento, discriminando entre o que está, e o que não está, em conformidade com o mundo exterior, encerra um problema de base – é que a não ser que a ciência saiba de antemão em que consiste o mundo exterior, não lhe é possível saber em que medida o conhecimento é representativo desse mundo. Por outras palavras, se não houver

conhecimento independente susceptível de funcionar como referencial científico (de nos dizer o que de facto é a realidade) não é possível aos cientistas saber em que medida se aproximam desse referencial. Na perspectiva relativista, esta constitui a falácia do realismo: presumir que se pode saber em que medida o conhecimento representa a realidade (i.e. é verdadeiro) não se sabendo em que consiste a realidade (Peter, 1992). Os relativistas evitam esta falácia sustentando que os critérios de aceitação do

conhecimento devem ser consignados pela comunidade científica; exemplo de critério no âmbito da investigação em marketing é o nível de significância estatística imposto pela comunidade científica ao teste de hipóteses de uma teoria. Esta divergência a propósito da natureza da verdade constitui um dos aspectos fundamentais de dissensão entre realistas e relativistas. Outro destes aspectos diz respeito à natureza da própria realidade.

Contrariamente à interpretação que normalmente é feita da posição relativista, em particular pelos que defendem a posição realista, os relativistas/construtivistas não levantam objecções à existência de uma realidade empírica independente do observador (Peter, 1992)7, residindo a diferença da sua posição, no que concerne à natureza da realidade, no facto de considerarem que a interpretação dessa realidade não pode deixar

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Hunt (1990) insiste na dissemelhança entre as duas posições, em virtude de os relativistas sustentarem que a ciência não conecta a realidade exterior em si mesma, mas sim uma “realidade” feita de construções humanas, tais como a linguagem, a matemática e outros códigos.

de levar em conta o paradigma científico vigente e a visão particular do observador, sob a forma de sensações, percepções, processamento da informação, sentimentos ou

acções. De facto, na perspectiva de Peter (1992), uma filosofia da ciência não só deve assumir que as sensações e percepções do homem são parte integrante da ciência, como deve ser capaz de avaliar o papel destas sensações e percepções na produção do

conhecimento científico. Segundo o autor (op. cit.), a interacção com o

cientista/investigador ocorre a três níveis, envolvendo i) a ‘sua’ visão particular do mundo, ii) o ‘seu’ paradigma de investigação e iii) a ‘sua’ interpretação mental da realidade. Uma representação gráfica desta perspectiva é apresentada na figura 3.3 (Peter, 1992).

Figura 3.3

A perspectiva relativista/construtivista da ciência

Mundo exterior Visão do cientista Paradigma de investigação Interpretação mental da realidade Construção pública da realidade

Adaptada de Peter (1992, p. 74).

O primeiro nível abrange experiências, formação, crenças, conhecimento da linguagem e dos seus significados, bem assim como competências. O segundo resulta do paradigma de investigação usado pelo cientista na resolução de cada problema. Pese

embora o mais provável seja o cientista favorecer o paradigma segundo o qual foi educado e/ou que é dominante no seu campo de investigação, em face de cada problema específico ele é livre de eleger o paradigma que melhor se adeqúe à investigação. Por último, ao terceiro nível, resultado de múltiplas observações, revisão de bibliografia, discussão com colegas, construção de variáveis, análise de dados e, eventualmente, criação de conceitos, incluindo invenção de nomes e símbolos a fim de melhor

descrever as suas ideias, o investigador está em condições de retirar conclusões acerca do fenómeno estudado e, subsequentemente, apresentar uma interpretação pessoal e mental da realidade, obviamente influenciada pela sua visão do mundo e pelo paradigma usado na investigação.

No entanto, segundo Peter (1992), a interacção com o meio não se esgota na intervenção do investigador. Em ciência, as ‘interpretações mentais’ produzidas pelos investigadores são tornadas públicas na forma de artigos e apresentações orais,

resultando deste processo a interacção com os pares. Um factor crítico neste processo prende-se com a consistência entre a teoria do investigador e a visão dos outros

cientistas, os seus próprios paradigmas de investigação e as suas interpretações pessoais dos fenómenos. Uma possibilidade é a comunidade científica inferir significados

distintos da intenção do investigador, em resultado da sua própria interpretação da evidência empírica. No melhor dos cenários, aquela comunidade pode no entanto ser positivamente influenciada pelos insights oferecidos pela investigação, pelo seu rigor, pelo brilhantismo da estratégia de pesquisa, pela clareza da exposição, bem assim como por factores de ordem psicológica e social tais como o estatuto profissional do

proponente, a qualidade percebida da revista científica em que o artigo é publicado, a revisão pelos pares ou o número de investigadores que a adoptam e/ou citam.

Fundamental na posição relativista/construtivista é o facto de a construção da realidade não ser ‘equivalente’ à realidade exterior, uma vez que os significados atribuídos aos fenómenos são humanamente construídos e balizados por limitações culturais, históricas e teóricas. Alguns significados, tais como os ‘rótulos’ atribuídos a alguns objectos estão tão enraizados na sociedade que a sua partilha entre indivíduos se torna fácil (e.g. maçã, cadeira, etc.); porém, o significado de termos mais complexos, tais como ‘atitude’, ‘fidelidade à marca’ ou ‘capital-marca’, difere em função das teorias

e dos paradigmas de investigação, mesmo em contexto cultural e linguístico idêntico. Na discussão entre relativistas/construtivistas e realistas, este ponto é fulcral, com os primeiros a advogarem que rótulos e significados, mesmo os relativos aos objectos mais simples, não passam de construções do homem na forma de linguagem, matemática ou outros códigos, não constituindo os objectos em si. Não obstante, os conceitos são facilmente confundidos com a realidade que pretendem descrever. Por exemplo, Hunt (1994) argumenta que a história da mecânica de Newton é razão suficiente para acreditar que algo como maçãs, peras, planetas e estrelas realmente existe. Já na perspectiva relativista/construtivista, as palavras não passam de conceitos cujo

significado depende do contexto em que se inserem; por exemplo, o significado e o que distingue os conceitos ‘estrela’ e ‘planeta’ no contexto do sistema solar difere do significado e do que distingue os conceitos ‘estrela’ e ‘vaca leiteira’ no contexto da gestão de marca. Do mesmo modo, os dados empíricos que no curso de uma investigação são recolhidos pelo cientista por meio de processos de medição e

amostragem não são ‘equivalentes’ à realidade exterior, i.e., não constituem o fenómeno em si. Por um lado, qualquer processo de medição só tem significado em face de uma teoria, nem que seja implícita, susceptível de o orientar; por outro, o significado da medida (resultante daquele processo de medição) depende da interpretação que lhe é dada pelo cientista tendo em conta o que é medido, o rigor da medição e o ponto de vista teórico. Não há linguagens de observação neutras ou, nas palavras de Peter e Olson (1983, p. 122) “os dados não falam por si” e, neste sentido, os dados empiricamente recolhidos não devem ser considerados como critérios de aproximação de uma teoria à realidade exterior.

Em oposição a esta perspectiva, a visão realista de Hunt contrapõe que enquanto existirem teorias com provas dadas desde há muito tempo, seja na explicação e previsão de fenómenos, seja na resolução de questões sociais concretas, há razão suficiente para crer que as entidades postuladas pelas teorias e a sua estrutura de relações existem, ou seja, verdadeiramente representam ou correspondem a uma realidade exterior ao investigador (Hunt, 1990).

Sumariamente, as duas perspectivas podem ser descritas em quatro pontos, o primeiro relativo à natureza da realidade, o segundo e o terceiro à natureza da verdade,

e o quarto à questão da incomensurabilidade. Na tabela 3.1 resumem-se estes quatro pontos segundo as duas abordagens.

Tabela 3.1

O debate realismo versus relativismo/construtivismo

Realismo Relativismo/Construtivismo NATUREZA DA REALIDADE

(1) Existe um mundo exterior que é independente das representações que dele fazemos (realismo clássico).

(1) Existe uma realidade empírica

independente do investigador; porém, o que os cientistas efectivamente analisam, avaliam, discutem e comparam com as suas próprias crenças é uma ‘realidade’ feita de construções humanas, tais como a linguagem, a

matemática e outros símbolos, e não a

realidade exterior em si mesma.

NATUREZA DA VERDADE