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DOENÇA CELÍACA: CUIDADO COM A PODEROSA MIGALHA DE PÃO

No documento Barriga de trigo - William Davis.pdf (páginas 62-65)

A doença celíaca não é brincadeira. É realmente incrível que uma enfermidade tão debilitante, potencialmente fatal, possa ser desencadeada por algo tão pequeno e aparentemente inocente quanto um pouco de farinha de rosca ou um crouton.

Cerca de 1% da população é incapaz de tolerar o glúten do trigo, mesmo em pequenas quantidades. Dê glúten a essas pessoas e o revestimento interno de seu intestino delgado, a barreira delicada que separa a matéria fecal incipiente do resto do corpo, entrará em colapso – o que provoca cólicas, diarreia e a eliminação de fezes amareladas que boiam no vaso sanitário, porque contêm gorduras não digeridas. Caso se permita que essa condição perdure por anos, o celíaco torna-se incapaz de absorver nutrientes, perde peso e desenvolve deficiências nutricionais como carência de proteínas, ácidos graxos, vitaminas B12, D, E, K, folato, ferro e zinco3.

A lesão no revestimento intestinal permite que vários componentes do trigo cheguem onde não deveriam chegar, como a corrente sanguínea, fenômeno usado no diagnóstico da afecção:

anticorpos contra as gliadinas do trigo, um dos componentes do glúten, podem ser detectados no sangue. A lesão do órgão também leva o corpo a produzir anticorpos contra componentes do próprio revestimento intestinal, como a transglutaminase e o endomísio, proteínas da camada muscular do intestino que são a base de outros dois testes de diagnóstico da doença celíaca, os testes de anticorpos da transglutaminase e do endomísio. A lesão também permite que bactérias que normalmente estão instaladas no trato intestinal e que, em outras circunstâncias, seriam “benéficas” enviem seus produtos para a corrente sanguínea, iniciando outra série de respostas inflamatórias e imunológicas anormais4.

Até alguns anos atrás, a doença celíaca era considerada rara, afetando apenas uma entre alguns milhares de pessoas. Com o aperfeiçoamento das técnicas de diagnóstico da doença, o número de doentes aumentou, chegando a 1 caso a cada 133 pessoas. Os parentes mais próximos de pessoas com a doença celíaca têm a probabilidade de 4,5% de também desenvolvê-la. Os que apresentam sintomas intestinais sugestivos da doença têm uma probabilidade maior, em torno de 17%5.

Como veremos, o número de casos da doença celíaca tem aumentado não apenas porque houve melhora nos exames de diagnóstico, mas também porque a própria incidência da doença aumentou. Não obstante, essa doença é um segredo bem guardado. Nos Estados Unidos, 1 caso a cada 133 pessoas equivale a pouco mais de 2 milhões de pessoas com a doença celíaca. No entanto, menos de 10% delas têm conhecimento disso. Um dos motivos pelos quais 1,8 milhão de norte-americanos não sabem que têm a doença celíaca é que ela é “a grande imitadora” (honra anteriormente conferida à sífilis), pois se manifesta de muitas formas. Enquanto 50% dos afetados sentirão as clássicas cólicas, diarreias e, com o tempo, perda de peso, a outra metade deles terá anemia, enxaqueca, artrite, sintomas neurológicos, infertilidade, baixa estatura (em crianças), depressão, fadiga crônica ou uma variedade de outros sintomas e perturbações que, à primeira vista, parecem não ter nada a ver com a doença celíaca6. Em outras pessoas, a doença pode não causar absolutamente nenhum sintoma, mas manifestar-se mais adiante na vida como comprometimento neurológico, incontinência, demência senil ou câncer gastrointestinal.

Os modos pelos quais a doença celíaca se manifesta também estão mudando. Até meados da década de 1980, a doença costumava ser diagnosticada em crianças com sintomas como “dificuldade para crescer” (perda de peso, crescimento insuficiente), diarreias e distensão abdominal, antes dos 2 anos de idade. Mais recentemente, é mais provável que ela seja diagnosticada em razão de uma anemia, dor abdominal crônica, ou mesmo na ausência de sintomas, e isso só quando a criança já está com 8 anos de idade ou mais7, 8, 9. Num grande estudo clínico realizado no Stollery Children’s Hospital [Hospital Pediátrico de Stollery], em Edmonton, Alberta, o número de crianças em que a doença celíaca foi diagnosticada aumentou onze vezes de 1998 a 200710. O interessante é que 53% das crianças que foram diagnosticadas por meio de exames de anticorpos ainda não apresentavam nenhum sintoma celíaco, e ainda assim disseram estar se sentindo melhor com a eliminação do glúten.

Mudanças análogas na doença celíaca foram observadas em adultos, com um menor número de pessoas se queixando dos sintomas “clássicos” de diarreia e dor abdominal, mais pacientes com diagnóstico de anemia, outros se queixando de diversos tipos de urticária, como a dermatite herpetiforme e alergias, e ainda outros que não apresentavam absolutamente nenhum sintoma11.

Os pesquisadores não conseguiram chegar a um consenso sobre o que teria provocado essas mudanças na doença celíaca ou por que ela está em ascensão. A hipótese mais aceita atualmente é que um número maior de mães está amamentando. (É, eu também ri.)

Grande parte da mudança no aspecto da doença celíaca pode, sem dúvida, ser atribuída ao diagnóstico precoce do problema propiciado pelos exames de sangue amplamente disponíveis em busca de anticorpos. Contudo, parece ter havido também uma mudança fundamental na própria doença. A aparência mutante da doença celíaca não se deveria a uma mudança no próprio trigo? Essa ideia poderia fazer o doutor Norman Borlaug, que desenvolveu o trigo anão, revirar no túmulo, mas há dados sugestivos de que em algum momento dos últimos cinquenta anos alguma coisa de fato mudou no trigo.

Um estudo fascinante realizado na Clínica Mayo fornece um retrato sem precedentes da incidência de celíacos na população dos Estados Unidos de meio século atrás, o mais próximo que poderemos chegar de uma máquina do tempo para responder nossa pergunta. Os pesquisadores obtiveram amostras de sangue coletadas cinquenta anos antes para um estudo de infecção por estreptococos e mantidas congeladas desde então. O sangue das amostras congeladas foi retirado de mais de 9 mil recrutas do sexo masculino da Base Aérea de Warren (WAFB), no Wyoming, no período entre 1948 e 1954. Depois de estabelecer a confiabilidade das amostras congeladas havia tanto tempo, eles as testaram em busca de marcadores para a doença celíaca (anticorpos antitransglutaminase e antiendomísio) e compararam os resultados com amostras de dois grupos atuais. Foi formado um grupo “de controle” composto de 5.500 homens com datas de nascimento semelhantes às daqueles recrutas militares (média de idade de 70 anos), com amostras obtidas a partir de 2006. Um segundo grupo de controle era constituído de 7.200 homens com idade próxima à dos recrutas da Força Aérea na época da coleta do sangue (média de 37 anos de idade)12.

Embora anticorpos característicos da doença celíaca tivessem sido identificados em 0,2% dos recrutas da WAFB, apenas, 0,8% dos homens com datas de nascimento semelhantes e 0,9% dos homens jovens atuais apresentaram esses marcadores para a doença celíaca. O resultado sugere que desde 1948 a incidência de doença celíaca quadruplicou nos homens à medida que envelheciam, e também quadruplicou em homens jovens atuais (É provável que a incidência seja ainda mais alta entre mulheres, já que há mais mulheres que homens com a doença celíaca, mas todos os recrutas incluídos no estudo original eram do sexo masculino.) Os recrutas com resultado positivo para marcadores celíacos também estiveram quatro vezes mais propensos a morrer, em geral de câncer, ao longo dos cinquenta anos transcorridos desde que forneceram as amostras de sangue.

Perguntei ao doutor Joseph Murray, pesquisador principal do estudo, se ele esperava encontrar esse aumento acentuado na incidência da doença celíaca. “Não. Minha hipótese inicial era que a doença celíaca estava presente o tempo todo e nós simplesmente não a estávamos encontrando. Embora isso em parte fosse verdadeiro, os dados me disseram outra coisa: a incidência da doença realmente está aumentando. Outros estudos que mostram que a doença celíaca ocorre pela primeira vez em pacientes idosos corroboram a suposição de que alguma coisa está afetando a população de qualquer idade, não apenas os hábitos alimentares da primeira infância.”

Um estudo de parâmetros semelhantes foi realizado por um grupo na Finlândia como parte de um esforço maior para registrar mudanças na saúde ao longo do tempo. De 1978 a 1980,

cerca de 7.200 finlandeses, homens e mulheres, com mais de 30 anos de idade forneceram amostras de sangue para a pesquisa de marcadores da doença celíaca. Vinte anos depois, em 2000-2001, outros 6.700 finlandeses, homens e mulheres, também com mais de 30 anos de idade, forneceram amostras de sangue. Ao serem medidos os níveis de anticorpos antitransglutaminase e antiendomísio em ambos os grupos, a frequência de marcadores da doença celíaca aumentou de 1,05% nos primeiros participantes para 1,99%, quase o dobro, no segundo grupo13.

Temos, portanto, boas provas de que o aumento aparente na incidência da doença celíaca (ou pelo menos nos marcadores imunológicos para a sensibilidade ao glúten) não se deve apenas a melhores técnicas de exames. A frequência da doença em si quadruplicou ao longo dos últimos cinquenta anos, tendo dobrado nos últimos vinte anos. Para piorar a situação, o aumento na incidência da doença celíaca apresenta um paralelo com o aumento de casos de diabetes do tipo 1, de doenças autoimunes, como a esclerose múltipla e a doença de Crohn, e de alergias14.

Dados recentes sugerem que a maior exposição ao glúten que ocorre atualmente, por causa do trigo moderno, pode, pelo menos em parte, constituir a explicação para o aumento na incidência da doença celíaca. Um estudo proveniente da Holanda comparou 36 linhagens de trigo com 50 linhagens representantes do trigo cultivado até um século atrás. Ao procurar as proteínas do glúten que provocam a doença celíaca, pesquisadores descobriram que proteínas com essa característica estavam expressas em níveis mais altos no trigo moderno, enquanto proteínas não acionadoras da doença celíaca estavam menos presentes23.

No documento Barriga de trigo - William Davis.pdf (páginas 62-65)