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TRIGO: O SUPERCARBOIDRATO

No documento Barriga de trigo - William Davis.pdf (páginas 31-35)

A transformação da gramínea silvestre domesticada do Neolítico nos rocamboles de canela, churros e rosquinhas macias contemporâneos exige mais que um pouco de prestidigitação. Essas apresentações modernas não seriam possíveis com a massa feita com o trigo antigo. Uma tentativa de fazer uma rosquinha recheada de geleia com o trigo einkorn, por exemplo, resultaria num produto sem liga, que se esfarelaria à toa e não conseguiria segurar o recheio; e seu sabor, sua aparência e sua impressão ao tato, bem, seriam os de um produto esfarelento. Além de hibridar o trigo em busca de um aumento na produtividade, os geneticistas de plantas também procuraram gerar híbridos que tivessem propriedades mais adequadas à transformação em, por exemplo, um cupcake de chocolate e creme azedo ou um bolo de casamento de sete andares.

A farinha do Triticum aestivum moderno tem, em média, 70% de seu peso de carboidratos; as proteínas e as fibras indigeríveis representam, cada uma, de 10 a 15% do peso total da farinha. A pequena parcela de peso que sobra dessa farinha é gordura, na maior parte fosfolipídios e ácidos graxos poli-insaturados1. (É interessante constatar que o trigo antigo tem um teor mais alto de proteína. O trigo emmer, por exemplo, contém 28% ou mais de proteína.)2

“Complexo”, neste caso, significa que os carboidratos do trigo são polímeros (cadeias repetitivas) de um açúcar simples, a glicose, ao contrário dos carboidratos simples, como a sacarose, que são estruturas formadas de uma ou duas unidades de açúcar. (A sacarose é uma molécula formada de dois açúcares, a glicose e a frutose.) O senso comum, como o manifestado por seu nutricionista ou pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, afirma que todos nós deveríamos reduzir o consumo de carboidratos simples, sob a forma de balas e refrigerantes, e aumentar o consumo de carboidratos complexos.

Dos carboidratos complexos encontrados no trigo, 75% correspondem à amilopectina, carboidrato de cadeia ramificada, e 25% correspondem à amilose, carboidrato de cadeia linear. No trato gastrointestinal humano, tanto a amilopectina quanto a amilose são digeridas pela amilase, uma enzima que está presente na saliva e no intestino delgado (produzida pelo pâncreas). A amilopectina é digerida de modo eficiente pela amilase, transformando-se em glicose, mas a eficiência da enzima na digestão da amilose é menor; por isso parte desse carboidrato chega ao cólon sem ter sido digerida. Assim, o carboidrato complexo amilopectina é convertido rapidamente em glicose e absorvido pela corrente sanguínea; e, por ser digerido com mais eficiência, é o principal responsável por um dos efeitos do trigo, o aumento do nível de glicose no sangue.

Outros carboidratos presentes na alimentação também contêm amilopectina, mas não o mesmo tipo de amilopectina do trigo. A estrutura ramificada da amilopectina varia conforme sua fonte3. A amilopectina proveniente de leguminosas, chamada de amilopectina C, é a menos digerível – daí os versinhos repetidos pelas crianças em idade escolar: “Beans, beans, they’re good for your heart, the more you eat’em, the more you…”a A amilopectina não digerida chega ao cólon, e então as bactérias simbióticas que ali vivem se banqueteiam felizes com os amidos não digeridos, e nessa atividade geram gases, como o nitrogênio e o hidrogênio; ou seja, os açúcares dessa amilopectina não se tornam disponíveis para a assimilação por seu organismo.

A amilopectina B é a forma encontrada em bananas e batatas; e, embora seja mais digerível que a amilopectina C, do feijão, também resiste um pouco à digestão. A mais digerível das amilopectinas, a amilopectina A, é a forma encontrada no trigo. Por ser a mais digerível, ela é a que aumenta o nível de glicose no sangue de modo mais extraordinário. Isso explica por que, para quantidades iguais de alimento, o aumento no nível de glicose no sangue provocado pelo consumo de trigo é mais acentuado do que, digamos, o provocado pelo consumo de feijão comum ou de batatas fritas. A amilopectina A dos produtos de trigo, carboidrato complexo ou não, poderia ser considerada um supercarboidrato, um carboidrato altamente digerível, que é convertido em glicose no sangue de modo mais eficiente que quase todos os outros carboidratos presentes na alimentação, sejam eles simples ou complexos.

Isso significa que nem todos os carboidratos complexos são iguais, e que a amilopectina A contida no trigo é o carboidrato que mais aumenta o teor de glicose no sangue, mais que outros carboidratos complexos. No entanto, a digestibilidade singular da amilopectina A do trigo também indica que os carboidratos complexos dos produtos feitos de trigo, se compararmos o mesmo peso de alimento, não são melhores que os carboidratos simples, como a sacarose, e com frequência são mesmo piores que eles.

As pessoas costumam ficar chocadas quando lhes digo que o pão de trigo integral provoca um aumento no teor de glicose no sangue maior que o provocado pela sacarose4. Exceto pelas fibras a mais, na realidade não há muita diferença entre comer duas fatias de pão de trigo

integral e tomar uma lata de refrigerante açucarado ou comer uma barra recheada repleta de açúcar; e com frequência é pior.

Essa informação não é novidade. Um estudo de 1981 da Universidade de Toronto lançou o conceito de índice glicêmico, isto é, uma análise comparativa dos efeitos dos carboidratos sobre a glicemia: quanto maior o nível de glicose no sangue depois do consumo de um alimento específico, em comparação com a glicose, maior o índice glicêmico (IG) desse alimento. O estudo original revelava que o IG do pão branco era igual a 69, enquanto o do pão integral era 72; e que o IG do cereal de trigo aerado era 67, enquanto o da sacarose (açúcar comum) era 595. Isso mesmo, o IG do pão integral é maior que o da sacarose. Por sinal, o IG de uma barra de chocolate recheado da marca Mars – nougat, chocolate, açúcar, caramelo e tudo o mais – é igual a 68. Melhor que o do pão integral. O IG de uma barra Snickers de chocolate ao leite recheado com torrone e amendoim é 41 – muito melhor que o do pão integral.

Na verdade, o grau de processamento, do ponto de vista da glicose no sangue, faz pouca diferença. Trigo é trigo, com várias formas de processamento ou sem processamento, simples ou complexo, com alto ou baixo teor de fibra, todas elas gerando taxas similarmente elevadas de glicose no sangue. Da mesma forma que “moleques serão sempre moleques”, a amilopectina A será sempre amilopectina A. Em voluntários saudáveis e esbeltos, duas fatias de tamanho médio de pão de trigo integral provocam um aumento de 30 mg/dL (de 93 para 123 mg/dL) da taxa de glicose no sangue, nem um pouco diferente do efeito provocado pelo pão branco6. Em pessoas com diabetes, tanto o pão branco como o pão de trigo integral elevam o nível de glicose no sangue em 70 a 120 mg/dL acima dos níveis iniciais7.

Uma observação compatível, também produzida no estudo original da Universidade de Toronto, bem como por pesquisas subsequentes, revela que o IG de um macarrão é mais baixo quando medido duas horas depois da ingestão, sendo que o espaguete de trigo integral apresenta um IG igual a 42, enquanto o IG do espaguete de farinha branca é 50. O macarrão destaca-se de outros produtos do trigo, em parte, provavelmente, por causa da compressão da farinha de trigo que ocorre durante o processo de extrusão, o que retarda a digestão pela amilase. (Massas frescas passadas por rolo, como o fettuccine, têm propriedades glicêmicas semelhantes às das massas moldadas por extrusão.) Além disso, o macarrão é geralmente feito com Triticum durum, não com o Triticum aestivum, o que aproxima esse alimento do trigo emmer em termos genéticos. Contudo, até mesmo o IG favorável do macarrão é enganoso, uma vez que a medição é feita duas horas após a ingestão; além disso, o macarrão tem a curiosa capacidade de gerar altos níveis de glicose no sangue por períodos de quatro a seis horas após o consumo do alimento, elevando os níveis glicêmicos em 100 mg/dL por longos períodos em pessoas com diabetes8, 9.

Esses fatos desagradáveis não passaram despercebidos aos cientistas agrícolas nem aos pesquisadores de alimentos, que têm tentado, por meio de manipulação genética, aumentar o teor do chamado amido resistente (amido que não é completamente digerido) e reduzir a quantidade da amilopectina do trigo. A amilose é o amido resistente mais comum, chegando a uma porcentagem de 40 a 70% do peso em algumas variedades de trigo hibridadas com esse propósito10.

Portanto, os produtos de trigo aumentam os níveis de glicose no sangue mais que praticamente qualquer outro carboidrato, desde feijões até barras de doces. Isso tem

implicações importantes para o peso corporal, uma vez que a glicose inevitavelmente se faz acompanhar da insulina, o hormônio que permite a entrada de glicose nas células do corpo, convertendo a glicose em gordura. Quanto mais alto for o nível de glicose no sangue após o consumo de alimentos, maior será o nível da insulina, e mais gordura será depositada no corpo. É por isso que, digamos, uma omelete de três ovos, que não causa nenhum aumento no nível de glicose, também não aumenta a quantidade de gordura corporal, enquanto duas fatias de pão de trigo integral elevam demais o nível de glicose no sangue, disparando a ação da insulina e provocando deposição de gordura corporal, especialmente gordura abdominal e gordura visceral profunda.

Há ainda mais a ser dito sobre o interessante comportamento do trigo em relação à glicose. O pico de glicose e de insulina induzido pela amilopectina A após o consumo de trigo é um fenômeno que dura 120 minutos e produz “animação”, com o pico da glicose, seguida de “depressão”, com a inevitável queda do nível desse açúcar. A oscilação entre o pico e a queda gera uma montanha-russa de duas horas de duração entre a saciedade e a fome, fenômeno que se repete ao longo do dia. A “baixa” no nível de glicose é responsável pelos roncos do estômago às 9 da manhã, apenas duas horas depois de um desjejum composto por uma tigela de cereal ou um pãozinho amanteigado. Segue-se então a fome incontrolável das 11 horas, antes do almoço, com o nublamento mental, a fadiga e os tremores que caracterizam o ponto mais baixo da hipoglicemia.

Caso a elevação do nível de glicose no sangue seja provocada repetidas vezes e/ou ao longo de períodos constantes, o resultado será uma maior deposição de gordura. As consequências do ciclo de glicose-insulina-deposição de gordura são especialmente visíveis no abdome – resultando, sim, na barriga de trigo. Quanto maior sua barriga de trigo, mais fraca sua resposta à insulina, pois a gordura visceral profunda da barriga de trigo está associada a baixa suscetibilidade, ou “resistência”, à insulina, o que exige níveis cada vez mais altos desse hormônio: uma situação que propicia o aparecimento do diabetes. Além disso, nos homens, quanto maior a barriga de trigo, mais estrogênio é produzido pelo tecido adiposo, e maiores ficam as mamas. Quanto maior sua barriga de trigo, maior o número de respostas inflamatórias acionadas, ou seja, maior a probabilidade de desenvolver doença cardíaca e câncer.

Por causa do efeito semelhante ao da morfina provocado pelo trigo (examinado no próximo capítulo) e do ciclo da glicose e insulina gerado pela amilopectina A desse cereal, o trigo de fato age como um estimulante do apetite. Por essa razão, as pessoas que eliminam o trigo de sua dieta consomem menos calorias, algo que examinarei mais adiante no livro.

Se o ciclo glicose-insulina-deposição de gordura estimulado pelo consumo de trigo é um fenômeno importante subjacente ao ganho de peso, a eliminação do trigo da dieta deveria reverter o fenômeno. E é exatamente isso o que ocorre.

Há anos, a perda de peso relacionada ao trigo vem sendo observada em pacientes com doença celíaca, que precisam eliminar da dieta todos os alimentos com glúten para controlar uma resposta imunológica que não está funcionando corretamente, o que, nos pacientes celíacos, significa lesões no intestino delgado. O que acontece é que as dietas sem trigo e sem glúten são também isentas da amilopectina A.

Contudo, a perda de peso resultante da eliminação do trigo não fica imediatamente clara a partir de estudos clínicos. Muitos pacientes celíacos são diagnosticados depois de anos de

sofrimento e começam a mudança na dieta quando já estão num estado de desnutrição grave, decorrente de diarreia prolongada e da deterioração da capacidade de absorção de nutrientes. Como estão desnutridos e abaixo do peso, os pacientes celíacos podem de fato ganhar peso com a eliminação do trigo, graças a uma melhora na função digestiva.

Entretanto, se considerarmos apenas pessoas com sobrepeso que não estejam seriamente desnutridas no momento do diagnóstico e que eliminam o trigo de sua dieta, torna-se claro que isso lhes permite uma perda significativa de peso. Um estudo conjunto da Clínica Mayo e da Universidade de Iowa com 215 pacientes celíacos obesos mostrou que houve perda de mais de 12 quilos de peso nos primeiros seis meses de uma dieta sem trigo11. Em outro estudo, no prazo de um ano, a eliminação do trigo reduziu pela metade o número de pessoas classificadas como obesas (índice de massa corporal, ou IMC, igual a 30 ou acima)12. O estranho é que os pesquisadores que realizam esses estudos geralmente atribuem a perda de peso em dietas sem trigo e sem glúten à falta de variedade nos alimentos. (Por sinal, a variedade nos alimentos ainda pode ser bastante grande e maravilhosa depois que o trigo é eliminado, como será discutido.)

O conselho para aumentar o consumo dos grãos integrais saudáveis, portanto, leva ao aumento do consumo da amilopectina A dos carboidratos do trigo, uma forma de carboidrato que praticamente pouco difere do açúcar retirado direto do açucareiro e, sob certos aspectos, pode ser pior.

No documento Barriga de trigo - William Davis.pdf (páginas 31-35)