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INFLUÊNCIAS CULTURAIS DE MIA COUTO

Nas águas do tempo faz parte do livro Estórias abensonhadas, publicado dois anos após o término da Guerra Civil Moçambicana. O conto faz uma série de referências a esses confrontos vividos em terras africanas. Essa narrativa, que possui como personagens principais a figura de um avô e um neto, tem como cenário um rio, cujas margens são dotadas de mistério.

Inicialmente, ao apresentar aspectos da vivência dos protagonistas e seus traços de personalidade, o autor já deixa explícita a boa relação entre ambos. De um lado, temos um senhor astucioso e fascinado pelo curso da água, do outro, um garoto, o narrador da história, devoto a seu progenitor:

O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.

— Mas vocês vão aonde?

Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem (COUTO, 1994, p. 9).

O respeito e admiração das gerações presentes para com as passadas é algo bastante notório nas sociedades mais remotas da África. Acerca desse tema, Dias (2014, p. 3), em seu artigo Um olhar sobre a velhice em “Sangue da avó manchando a alcatifa”, de Mia Couto, afirma que:

O idoso era visto como uma fonte de sabedoria e, por consequência, digno de atenção redobrada por parte das outras pessoas, visto que todo o aprendizado e experiências já vividos pelo ancião eram ensinados aos mais jovens com o intuito de as novas gerações propagarem os hábitos comuns da comunidade.

Assim, no caso do conto, o avô representa a geração mais velha, isto é, simboliza uma espécie de “guardião de tradição”, o que possui a responsabilidade de transmitir todos os conhecimentos culturais adquiridos - mitos, lendas, ritos - ao longo do seu ciclo vital para o seu neto, geração mais nova.

No entanto, o ciclo vital não é referenciado no texto apenas quando se observam as idades distintas entre os personagens, como também quando o autor estabelece metáforas que relacionam o passar dos anos ao fluxo das águas do rio. O trecho abaixo aborda a água com a própria vida, partindo do princípio de que os acontecimentos ocorrentes durante a existência humana já se encontram definidos. Em face disso, contrariar o destino significaria desorganizar a lógica que rege o cosmos:

— Sempre em favor da água, nunca esqueça!

Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem (COUTO, 1994, p. 7).

Seguir o fluxo da água, ou nesse caso, da própria vida, significaria encontrar a única certeza vital que existe, a morte. Isto, no conto, é simbolizado através do pano branco que se encontra na margem do rio. Este, que é apenas visualizado pelo avô, representaria os espíritos das vítimas da guerra clamando por paz. Já o pano vermelho serviria para lembrar o sangue derramado dos antepassados.

Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões (COUTO, 1994, p. 14).

Mais uma vez, é notória a presença de aspectos vinculados à cultura moçambicana no conto abordado. A bandeira desse país configura-se da seguinte maneira: horizontalmente, há faixas verde, preta e amarela, as quais são alternadas por listras brancas. Em destaque, encontra-se um livro branco, sobre o qual se cruzam uma arma e um machado. Tal ilustração está sobreposta em uma estrela amarela, que está desenhada sobre um triângulo vermelho.

Ao estudar as cores que compõem essa insígnia nacional, é possível constatar que a cor vermelha simboliza os séculos de luta contra o colonialismo e a soberania portuguesa, isto é, representa, de forma mais realista, a morte e a agressão sofrida pelo povo. Em contrapartida, o significado dessa cor, em outros países africanos, pode estar associado com a boa sorte e essência da vida. Já o branco, similar ao que ocorre no território brasileiro, é associado à paz.

Ademais, o autor é bastante conhecido por sua constante criação e utilização de neologismos, fenômeno linguístico que origina palavras derivadas de outras. A apropriação desses termos torna os seus contos, mais especificamente o Nas águas do tempo, mais próximos da linguagem popular (muito embora não necessariamente a linguagem falada de modo efetivo pelo povo, mas essa linguagem refratada pela arte ficcional da literatura), estabelecendo um diálogo criativo com o leitor e enaltecendo as propriedades da oralidade da população moçambicana.

Mia Couto transporta para as páginas das suas obras aquilo que o povo africano tem de mais valioso nas suas tradições: a oralidade. Verifica- se na sua escrita uma manifestação do falar do africano, expressa pelo grande contingente de palavras e expressões de línguas autóctones, além dos vários desvios das normas prescritivas do português europeu, como, por exemplo, as frases iniciadas por pronomes oblíquos (CARNEIRO, 2015, p.6).

Este fato pode ser comprovado por intermédio das seguintes expressões:

Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado (COUTO, 1994, p. 9, grifo nosso).

O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:

— Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades. (COUTO, 1994, p. 12; grifos nossos).

Ao analisar o contexto em que estão inseridas as palavras em destaque nos trechos acima, é possível atribuir alguns possíveis significados às mesmas. O termo “crepusculando”, por exemplo, advém do substantivo “crepúsculo”, que se refere, conforme o Dicionário Houaiss (INSTITUTO, 2011, p. 245), à “1. claridade entre a noite e o nascer do sol ou entre o pôr do sol e a noite 2. p. ext. o tempo de duração dessa claridade”. Portanto, esse verbo utilizado por Mia Couto refere-se ao período de transição entre o dia e a noite, ao escurecimento do céu.

Em seguida, o autor faz uso do vocábulo “desbengalado”, que deriva do substantivo “bengala” acrescido do prefixo “des-”, que estabelece um sentido de negação, como em “desestruturado” ou “desestabilizado”. Dessa forma, é plausível imaginar que o avô estava em um estado de perturbação, pois ele tateava o neto tão desorientado quanto o faz um cego sem o seu instrumento de guia, a bengala.

Além disso, ainda há a presença da expressão “pedacito” e do seu plural, “pedacitos”. Em espanhol, a palavra em questão significa “pouco”. Mas o leitor falante da língua portuguesa facilmente associará tal expressão ao substantivo “pedaço”, devido à similaridade entre os seus radicais. “Pedacito”, nesse caso, assume caráter enfático ao retratar a parte de um todo.

Essa linguagem, que pode ressoar o popular, também ecoa o mítico, conforme testemunhamos no próprio adjetivo qualificador do substantivo “estórias” que encabeça a coletânea: abensonhadas. Linguagem mítica, portanto, na medida em que esses termos (“pedacito”, “crepusculando”, “desbengalado”) são inexistentes como material concreto e virtualmente disponível aos utentes da língua para seu uso cotidiano, mas, uma vez enunciados, ficam carregados de potenciais significados inteligíveis a serem apreciados e interpretados por seus leitores.

CONCLUSÕES

O meio social apresenta-se como elemento essencial para o desenvolvimento dos textos de Mia Couto. O conto referenciado no presente documento, Nas águas do Tempo, é constituído por uma série de elementos referentes à cultura moçambicana, o que configura uma peculiaridade da escrita miacoutiana.

Ao narrar uma intensa admiração e obediência de um neto a um avô, experimenta-se, por meio da peculiar estética ficcional do escritor, o processo de ensinamento das tradições entre gerações (inclusive daquelas que encerram o mistério, o aparentemente insondável, e que, pela ótica exclusiva da razão, poderia ser compreendido como reflexos de uma possível

insanidade), o autor relata um importante aspecto da população africana: o respeito aos antepassados. A epígrafe deste trabalho, portanto, retrata essa característica, uma vez que este é um elemento imprescindível não apenas para o desenvolvimento do enredo em questão, como também para a compreensão dos fatos abordados.

Diante disso, ao ler o trabalho de Mia Couto, o leitor torna-se conhecedor de muitos elementos que constituem a rica cultura africana. As guerras, crenças e hábitos desse povo podem ser considerados a matéria-prima de onde se origina a beleza e a grande sabedoria encontradas nas obras do autor moçambicano.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

CARNEIRO, L. Fusões vocabulares, expressividade e identidade cultural em A varanda do frangipani, de Mia Couto. In: I SIMPÓSIO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS, 2015, Fortaleza. Anais... Fortaleza: UECE, 2015. Disponível em: <http://uece.br/eventos/siel2015/anais/trabalhos_completos/150-31773-30092015-

184335.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2018.

COUTO, M. Entrevista de Mia Couto ao G1. G1, [S. l.], 26 jun. 2009. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL1207946-7084,00-

A+AFRICA+QUE+EXISTE+NA+CABECA+DAS+PESSOAS+E+FOLCLORIZADA+DIZ +MIA+COUTO.html>. Acesso em: 5 nov. 2018.

COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

DIAS, M.A.N. Um olhar sobre a velhice em “Sangue da avó manchando a alcatifa”, de Mia Couto. In: VII ENCONTRO NACIONAL DE LITERATURA INFANTO-JUVENIL, 2014, Campina Grande, Anais... Campina Grande: UFCG, 2014. Disponível em: < http://www.editorarealize.com.br/revistas/enlije/trabalhos/Modalidade_1datahora_09_06_201 4_16_17_45_idinscrito_892_9342df0289e81767a18b979ebeff59af.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2018.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2000.

INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Houaiss conciso. São Paulo: Moderna, 2011. PAULO, Atson. A ética entre a Razão e as emoções. Apostila de Filosofia (IFRN Campus Pau dos Ferros). 2018.

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